As Pequenas Chances
Em romance com toques autobiográficos, a escritora e psiquiatra Natalia Timerman ficcionaliza a morte do pai numa narrativa sensível, carregada de ternura e drama
Após abordar o fenômento do “ghosting” por meio da protagonista de seu primeiro romance, “Copo Vazio” (Todavia, 2021), submetida a uma intensa violência psicológica depois de o homem pelo qual se apaixonou desaparecer de sua vida sem deixar rastros, a psiquiatra e escritora Natalia Timerman lida com outro tipo de desaparecimento ainda mais doloroso em “As Pequenas Chances” (Todavia, 2023). No livro, que carrega fortes toques autobiográficos, ela encara de frente a tristeza, o luto e as memórias que cercaram a morte do pai, vítima de um câncer.
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“Foi um dia estranho. Meu pai havia morrido, e cada coisa continuava no lugar”, descreve no capítulo que inicia a obra. É dessa impossibilidade de conciliar o tamanho da tragédia que sofreu com a aparente falta de impacto no mundo ao seu redor que parte a trajetória da protagonista, que leva também o nome da autora. Ao longo da leitura, as páginas evocam o longo período de doença e a morte que se infiltra pelo cotidiano da família como uma certeza inescapável, uma consciência do fim que transforma todo momento vivido ao lado do patriarca num acontecimento derradeiro: a última viagem, a última ida ao teatro, a última gargalhada.
Curiosamente, a finitude acaba transportando a personagem ao começo, às origens familiares na Ucrânia, em busca daquilo que ainda a conecta aos antepassados e ao próprio pai. Numa escrita emocionante e profundamente lúcida, singela mas de enorme força, Timerman trilha os caminhos da autoficção, explorando a exemplo de autores como Annie Ernaux e Karl Ove Knausgard as raízes do amor e do luto a partir de sua história pessoal e percorrendo a ficção como única forma de chegar à verdade. Um processo doloroso de autoconsciência que a protagonista resume em dado momento como a descoberta de “ter um corpo, em um mundo no qual meu pai não existe mais.”
Demoro alguns segundos para entender de onde aquele rosto me é familiar, em um contexto tão diferente, o aeroporto, e já passados tantos anos de quando o havia visto pela última vez, no hospital, um dia antes da morte do meu pai. Devo ter sorrido; ele também sorri e se aproxima de mim um pouco mais, um tanto mudado, mas só depois penso que ele me reconheceu mais rápido, o que é estranho, ou deveria ser, pois os médicos têm milhares de pacientes, e os pacientes e seus familiares, apenas um médico em cada situação. Ainda que meu pai fosse médico e eu também; durante aqueles dias, éramos pacientes, ou melhor, meu pai era o paciente do dr. Felipe, médico de cuidados paliativos, e eu, apenas a filha de um homem com uma doença terminal.
É claro que ele não se lembra do meu nome, penso, postada diante dele na fila do café, surpresa com aquele encontro; penso em dizê-lo eu mesma, evitando algum constrangimento, se é que seria constrangedor um médico se esquecer do nome da filha do seu paciente tantos anos depois. Mas não digo nada; sorrio de volta — ou antes, ou ao mesmo tempo —, um sorriso triste, porque esse encontro, essa presença, remete de imediato àqueles dias, já passados faz tanto tempo, mas a morte não passa, ela continua, continua, continua.
O contato com o dr. Felipe nas últimas semanas de vida do meu pai foi tão constante que, nos dias seguintes à sua morte, tive diversas vezes o ímpeto de ligar para ele de novo, como se seu paciente ainda existisse, ou como se falar com o médico pudesse fazer que o paciente continuasse ou voltasse a existir, resolvesse o engano, porque no início (e até hoje, em alguns momentos, quando olho com atenção alguma foto do meu pai, seu rosto tão conhecido, o gesto congelado na imagem, que poderia do lado de fora da foto continuar a se mover, falar, viver) tive a forte impressão de que aquilo era algum tipo de equívoco — morrer, meu pai morrer, palavras que não combinam, que até hoje tenho dificuldade de ver juntas.
Ou como se o dr. Felipe pudesse agora cuidar não da dor do meu pai, que já não existia, mas da minha, da minha dor de não haver mais a dor e a vida do meu pai. Alô, Felipe (eu o chamava pelo nome, nunca consegui chamá-lo de doutor, talvez porque eu mesma odeie ser chamada de doutora), aqui é a Natalia, filha do Artur, bom dia, tudo bem?; então, Felipe, o Artur já não existe, mas eu ainda existo, você poderia me ajudar?; aliás, por acaso ainda sou filha dele?; como é ser filha de alguém que já não está?; não sinto dor, ou melhor, sinto muita, mas não aquela dor insuportável que meu pai sentiu nos últimos meses, aquela para a qual você prescreveu morfina e pregabalina e doses impensáveis de dipirona e depois, como nada disso adiantasse, patches de fentanil; não, minha dor é outra, também insuportável, mas vem em ondas, e, quando vem, é como se me estrangulasse, tirasse meu prumo, e tomo consciência da aberração do meu corpo, de ter um corpo, em um mundo no qual meu pai não existe mais, e percebo meus braços vazios, que o calor do abraço do meu pai já não está, nunca mais estará, e meus braços pendem, murchos, levando meus ombros para baixo, e minha cabeça olha para o chão, onde alguns dias atrás enterramos meu pai, eu ajudei a enterrá-lo, joguei três pás de terra por sobre seu caixão e depois finquei a pá na terra revolvida para que outra pessoa a tomasse e cumprisse o mesmo ritual, como manda o judaísmo, e eu, que nunca fui judia, quer dizer, que desde a adolescência ignorei a religião da minha família, me vi de repente cumprindo cada ritual com um alívio impensável alguns meses antes, como se tudo que eu quisesse ou precisasse naquele momento fosse que simplesmente me dissessem como me portar ou o que fazer, que me dessem uma lista de tarefas para existir.
Meu pai morrer, palavras que não combinam, que até hoje tenho dificuldade de ver juntas
Meu pai morreu num sábado de manhã, às 9h43, no Shabat. E então fomos para casa enquanto o corpo dele ficava na morgue do hospital, esperando ser levado para o cemitério na manhã do dia seguinte, pois durante o Shabat se deve descansar, esta é uma das leis máximas do judaísmo: não fazer esforços, não dirigir carros, não velar corpos ou transportar caixões.
Foi um dia estranho. Meu pai havia morrido, e cada coisa continuava no lugar. Na rua, na praça cheia de árvores na frente de casa, onde os meninos brincam, tudo permanecia do mesmo jeito, se movimentando, as árvores, os pássaros, os barulhos, os carros no asfalto, tudo igual, mas havia um silêncio por trás das coisas. A morte é um silêncio, atrás de cada som há esse silêncio, o telefone que nunca mais vai tocar, sua voz calada, nunca mais a singela mensagem Na/Posso ligar?, e eu nunca mais vou poder ligar direto em vez de responder que sim, pode, pai, porque você não pode mais ligar, eu não posso mais falar com você, e no entanto, tudo como se continuasse.
Gabi veio para minha casa. Minha irmã é engenheira naval, uma profissão que precisa de mar para ser exercida, e há muitos anos não mora mais em São Paulo. Ela sempre ficava na casa do nosso pai quando estava na cidade, mas agora não, agora não mais, não há mais casa do nosso pai, aliás, ainda havia, naquele dia, mas sem nosso pai, que é o mesmo que não haver mais casa dele. Minha irmã passou o dia deitada em silêncio, mal comeu, mal bebeu, mal podia andar.
Ao sairmos do hospital, deixando para trás o corpo, pegamos suas malas. Gabi tinha vindo direto de viagem e, desde que chegara, não arredara pé do quarto do nosso pai, que número era?, já não me lembro, nem em que andar, décimo, sexto? Ela não tinha forças para carregar as malas, ela quase não tinha forças para carregar a si mesma.
Tinha sido assim no enterro e na cerimônia um pouco antes. Minha irmã não conseguia ficar de pé. Alguém veio me perguntar se ela havia tomado algum remédio, já não lembro quem, algum amigo dela. Não havia, simplesmente a força se esvaíra do seu corpo. Ao lado do meu pai até o último instante — Gabi estava com ele quando o coração parou de bater; foi ela quem, de pé junto do leito, enquanto uma enfermeira lhe dava banho, percebeu que ele havia parado de respirar —, ao lado do meu pai ela estava firme. E nos telefonou com uma voz doce, calma, papai descansou, mas assim que saímos de perto dele, assim que nos pediram que levássemos todas as coisas do quarto do hospital pois viriam retirar o corpo, ela desmoronou.
Gabi também cumpriu os rituais judaicos. Não sei quanto ao meu irmão; ela e eu, tudo que nos orientavam a seguir, seguíamos. E aquilo fazia sentido, pela primeira vez me senti amparada pela religião, não por Deus, mas pelos meus antepassados, que conheciam a dor que eu sentia e haviam inventado rituais que tentavam acolhê-la, amenizá-la, circunscrevê-la. O mero fato de que havia regras para a Shivá, a primeira semana de luto, que se inicia depois do enterro, parecia me dizer que a dor, por mais excruciante que fosse, por mais que bagunçasse o sentido de tudo, era conhecida e, de alguma forma, natural.
A morte é um silêncio, atrás de cada som há esse silêncio, o telefone que nunca mais vai tocar, sua voz calada
Foi necessário segurar minha irmã pelo braço para que ela conseguisse ficar de pé diante do rabino, na pequena reza antes do enterro. Havia tanta gente no espaço que o caixão do meu pai ficou no salão de rezas (era uma sinagoga? Não sei, essas horas passadas no cemitério estão todas um pouco borradas), e não nas salinhas do cemitério judaico destinadas aos velórios. Ficamos sentados nas cadeiras da frente — minha irmã, eu, meu irmão, a mulher do meu pai, a filha dela. Um terrível privilégio, esse lugar da frente: bem diante da dor, o lugar da dor. Gabi ficou sentada quase o tempo todo; eu me levantava, ia beber água, sentia uma sede terrível, pegava água para minha irmã, ou alguém aparecia com um copo cheio para cada uma, e eu andava para lá e para cá, perdida.
Eu recebia abraços e, tonta de um cansaço antigo, descobria só depois de separados os troncos quem havia abraçado. Às vezes os rostos eram desconhecidos, mas os abraços me pareciam bons, quentes, um lugar onde eu queria simplesmente dormir. Ou via o rosto de alguém que me lembrava de uma época da minha vida, da vida do meu pai, o cara com quem ele trabalhou durante toda a minha infância, mais magro, muito mais velho, menor que a imagem que eu tinha dele, e então, ao abraçá-lo, chorava de novo, e mais, enquanto o sentia triste, porém rijo, como se estivesse me segurando e amparando meu choro.
Havia quem começasse a chorar já ao me ver, algumas amigas que gostavam muito do meu pai e que misturavam seu choro ao meu quando nos abraçávamos. Esses eram os melhores abraços, eu me sentia um pouco fora de mim, como se parte minha estivesse com elas, e isso me proporcionava algum tipo de alívio, elas sentindo no meu lugar, me oferecendo um descanso do insuportável.
Havia também os abraços protocolares. Não eram ruins; cumpriam seu papel, e cumprir papéis preenche espaços vazios, em geral um pouco estranhos, tanto mais naquela situação.
Havia quem abraçasse demais, não sei por quê, e isso não tinha a ver com a intimidade prévia nem com algum critério, se pudessem existir critérios de abraço; eram abraços que pediam mais do que davam, e naquela hora eu simplesmente não tinha nada a oferecer.
Havia quem me abraçasse com os olhos, de longe, por não conseguir se aproximar muito, seja pela falta de espaço, seja porque não houvesse caminho. Havia tantas partes da minha vida ali, no enterro do meu pai, na presença de tanta gente e do tempo espalhado naquelas pessoas, mas aquilo era um absurdo, havia algo que não se encaixava, tantos amigos de épocas diferentes da vida do meu pai, seria tão óbvio que justo ele estivesse ali, mas não: aquilo estava acontecendo justo porque ele não estava mais.
Havia também os abraços protocolares. Não eram ruins; cumpriam seu papel, e cumprir papéis preenche espaços vazios
- As Pequenas Chances
- Natalia Timerman
- Todavia
- 208 páginas
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