O luto de uma mãe que perdeu o filho por covid — Gama Revista
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Depoimento

O luto de uma mãe que perdeu o filho para o covid

O relato de perda de uma mulher que viu o filho único morrer na pandemia, sua dor, a transformação de suas emoções e de sua visão política

Isabelle Moreira Lima 13 de Novembro de 2022
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O luto de uma mãe que perdeu o filho para o covid

O relato de perda de uma mulher que viu o filho único morrer na pandemia, sua dor, a transformação de suas emoções e de sua visão política

Isabelle Moreira Lima 13 de Novembro de 2022

A aposentada Dione Michels Sá de Souza viu o filho único, com quem tinha uma relação íntima e próxima que ela descreve como “encontro de almas”, morrer de covid em janeiro de 2021. Em uma semana, o piloto de aviação executiva Joaquim Aires Sá de Souza foi diagnosticado com o coronavírus, recebeu tratamento com kit covid — medicamentos comprovados pela ciência como ineficáveis –, teve o quadro agravado e morreu. Nesses quase dois anos, Dione abrigou uma miríade de sentimentos, que ela descreve abaixo no relato a Gama.

*

“Eu vou fazer 65 anos. Meu filho tinha 29 anos quando morreu, em 28 de janeiro de 2021. Ele faria 30 anos em 22 de fevereiro.

Era um menino muito inteligente, eu sempre ouvia isso de pessoas que o conheciam. Ele adorava moto, carro, culinária. Tomou gosto pela coisa, me deu aula, conhecia as especiarias, gostava de cozinha internacional, pratos diferentes.

Quando passávamos um tempo sem nos ver, ele me pegava no colo, me botava no alto, me abraçava, falava: ‘Mãe, eu e você somos um só’. Eu ouvi isso dele muitas vezes. ‘Eu nunca vou te abandonar, vou ficar com você’. Eu falava que ele ia me colocar num asilo. E ele dizia que nunca ia, que ia cuidar de mim para sempre.

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Em casa, sempre o chamamos de Quinzinho. Aprendeu desde pequeno a respeitar a natureza, os animais, as pessoas; não fazia distinção entre cor, orientação sexual. Era um menino bem extrovertido e, na escola, era sempre muito paparicado pelas professoras. Eu olhava para ele e dizia que Deus foi muito generoso comigo, me deu o melhor filho do mundo.

Na aviação era muito querido por todos, voava muito bem e muitas pessoas admiravam a coragem dele. Com 16 anos, foi pros Estados Unidos fazer intercâmbio. Foi muito corajoso, passou um ano com uma família que não conhecia, e eles o amam até hoje, nunca perderam o contato.

Em junho de 2020, ele passou a transportar pacientes graves com covid e trazia de volta os curados. Tinha um protocolo muito rígido a ser seguido e ficou 40 dias fazendo isso lá. ‘Mas filho, você vai voar carregando paciente com covid?’, perguntei. Ele disse: ‘Mãe, nenhum outro piloto quis fazer isso. Eu considero uma missão, a minha missão’. Depois, ele mudou de emprego e foi ali que se contaminou.

Quando ele foi contaminado pelo vírus, era forte, saudável, nunca tinha ido ao hospital

Quando ele foi contaminado pelo vírus, era forte, saudável, nunca tinha ido ao hospital nem com dor de garganta, tinha feito check-up para trocar de emprego, achei que fosse ser tranquilo.

Ele começou a usar o kit covid. Perguntei se não achava que ia fazer mal pra ele. Ele falou ‘É o protocolo e eu vou usar’. Era a política do governo e ele estava muito empolgado para tomar a vacina. Tinha mandado inclusive uma reportagem que dizia que tripulante ia entrar no grupo de prioridade. Ele não era negacionista – vários pilotos são, não querem tomar vacina, só tomam quando a empresa obriga. Ele não: queria ser vacinado e continuar trabalhando, levando os pacientes com covid, era sua missão. Mas ele não teve tempo.

Depois eu comecei a entender o que tinha acontecido com meu filho, por que ele morreu, por que aconteceu isso com ele. Foi aí que me despertei para o mundo político.

Eu me dediquei muito, desde que ele nasceu, a ser mãe – era o meu principal papel. Eu queria fazer tudo o que eu pudesse pra ele, por ele. Quando ele queria ser piloto, começamos a fazer programação financeira. Nos matávamos de trabalhar. Tínhamos uma pousada em Ilhéus, foram 17 anos sem férias, sem folga.

Nunca nos distanciamos. A nossa ligação era muito forte. Ele nos queria perto dele. Dizia para fecharmos a pousada, porque se ficássemos tocando não poderíamos ficar com ele. Ele sempre fazia vídeo chamada. Eu estava acostumada a trocar mensagens o dia inteiro com ele.

Foi tudo muito rápido. Ele estava bem e, em uma semana, não tínhamos mais o nosso filho. Quando eu recebi a notícia da morte dele, eu queria me suicidar, pular de cima do prédio, não queria mais viver. Mas hoje nós frequentamos um centro espírita, procuramos ajuda. Tem uma psicóloga que me atende voluntariamente, um psiquiatra também, e eu fui fazendo uma rede de apoio, de pessoas que se aproximaram de mim com o intuito de me ajudar. Agora, muitas pessoas que pensei que seriam meu apoio, se afastaram de mim.

O luto ensina muito. Tem pessoas que se afastam de você como se fosse uma coisa contagiosa

O luto ensina muito. Entendemos que há pessoas boas, que chegam a sua vida, e outras se afastam de você como se o luto fosse uma coisa contagiosa. É uma coisa muito difícil.

Eu comecei a querer ser ouvida, eu queria que as pessoas soubessem o que aconteceu com meu filho. E entrei pra associação das vítimas da covid, a Avico. Fui à Brasília falar em audiência pública para formalizar uma data nacional em memória às vítimas da covid. Falei no lançamento do documentário “Eles Poderiam Estar Vivos”, na PUC, em São Paulo. Gravei vídeos, falei com todo mundo.

Tive um outro olhar para a política, a minha visão mudou. O comportamento de um presidente do Brasil, de uma nação, ele não podia imitar uma pessoa com falta de ar quando tantas pessoas morriam justamente de falta de ar. Ele falou que não era coveiro. Essas coisas me revoltam, eu tenho que me posicionar. Nunca fui eleitora do PT, nunca tinha votado no Lula, mas votei nesta eleição. Não consigo entender como pessoas que perderam gente próximas votassem no Bolsonaro. Se ele tivesse comprado a vacina lá no começo, meu filho poderia ter tomado antes de ser contaminado. Ele vacinado podia ter se protegido. Fazendo uso do kit covid, o quadro se agravou e ele acabou perdendo a vida.

O último abraço que dei no meu filho foi no aeroporto de Fortaleza, onde ele morou e de onde estava se mudando para São Paulo. Eu estava chorando. Ele secou meus olhos, deu um beijo e falou: ‘Não chora, logo vamos estar juntos de novo’.

Fui a São Paulo, mas já o encontrei intubado, sedado. Não tive coragem de vê-lo morto, o corpo dele. Fui duas vezes à UTI, ele teve o pulmão perfurado, o que agravou muito seu quadro de saúde.

Fiquei com muita raiva de Deus quando Ele levou meu filho de mim

Fiquei com muita raiva de Deus quando ele levou meu filho de mim. Hoje passou, mas no começo achava muito injusto Deus não ter me ouvido, minhas orações e minhas súplicas, implorando pela vida dele. Foi muito difícil. É difícil até hoje e vai ser muito difícil para o resto da minha vida.

Hoje eu sobrevivo, um dia depois do outro, para honrar a memória dele. Preciso contar a história dele, da pessoa maravilhosa que foi, do menino gentil, amoroso, educado, que abria a porta, puxava a cadeira.

Quando votei, pensei nele. Gravei um vídeo em que dizia: votem por ele, votem pelo meu filho, votem pelo Joaquim, ele não teve chance de ser vacinado.

Eu não vou ter mais netos. Eu só tinha o Joaquim de filho. Sonhava com netos, mas meu filho não deixou descendentes. Encerra-se a minha participação neste planeta na hora em que eu me for, a minha sementinha era ele.

Foi um alívio saber que íamos ficar livre desse presidente, não ouvir a voz dele, aquelas declarações horríveis

Ao final das eleições, foi um alívio saber que íamos ficar livre desse presidente. Um alívio não ouvir a voz dele, aquelas declarações chulas, horríveis, que machucam as pessoas, que vão contra qualquer sentimento, que mostram falta de humanidade, de generosidade com as pessoas. Vai ficar gravado pra sempre, ninguém nunca vai esquecer. Aquele vídeo em que ele imita uma pessoa morrendo com falta de ar é o que me dói mais porque meu filho teve parada cardíaca e morreu porque não conseguia respirar.

E me dói saber que ele poderia ter comprado a vacina em setembro, quando recebeu mais de 80 e-mails e ele falou que não precisava, que a vacina era pegar a doença. Quando eu votei, votei por mim, pelo meu filho e por todas as outras famílias que perderam pessoas nas mesmas condições. Entendi que ficamos na mão de um genocida, de um fascista. Passei a vê-lo com os olhos de uma mãe enlutada, que perdeu um filho e que poderia ter sido diferente. Ele poderia estar aqui conosco.

Hoje, me sinto na obrigação de contar a história do meu filho. Votei, sim, pelo meu filho.”