Trecho de Livro: A Vergonha É um Sentimento Revolucionário — Gama Revista

Trecho de livro

A Vergonha É um Sentimento Revolucionário

Em novo livro, filósofo francês Frédéric Gros reflete sobre esse sentimento que angustia de indivíduos a sociedades inteiras

Leonardo Neiva 01 de Setembro de 2023

O calor que sobe, o rosto que enrubesce, aquela sensação de ser diferente, inadequado, de não pertencer. Só quem passou por essa sequência de sentimentos — possivelmente toda a humanidade — sabe o que significa sentir vergonha. Uma experiência, na opinião do filósofo francês Frédéric Gros, até mais profunda e ampla que a culpa, ainda que esta última tenha sido mais largamente celebrada por amantes da literatura clássica em livros como “Crime e Castigo”, de Dostoiévski, e “A Metamorfose”, de Kafka.

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Em parte para remediar essa omissão e destacar o impacto desse sentimento complexo, que move aspectos morais, sociais, psicológicos e políticos, é que Gros lançou “A Vergonha É um Sentimento Revolucionário” (Ubu, 2023), livro que acaba de chegar às prateleiras no Brasil com tradução de Walmir Gois. “Em minha vida, acredito ter sido mais frequentemente atravessado pela vergonha do que pela culpa, tomei mais decisões curvando-me aos ditames da primeira do que às injunções da segunda”, confessa o filósofo já na introdução da obra.

O que significa sentir vergonha? Quais as suas diferentes expressões? O que podemos fazer com esse sentimento e o que ele traz de revolucionário? Essas e outras perguntas o autor de “Desobedecer” (Ubu, 2017) e “Caminhar, uma Filosofia” (Ubu, 2021) vai explorando por meio de referências pop e reflexões que geram outros questionamentos ainda mais aprofundados e complexos. Um panorama conceitual e histórico sobre esse sentimento que afeta de indivíduos a famílias, impactando até mesmo sociedades, num caminho que passa por ícones da arte e da história como Annie Ernaux, Sócrates e James Baldwin.


O desprezo social

Vergonha de ser “pobre” — talvez isso soe abstrato demais. Seria preciso dizer: sem classe, bruto, miserável, jeca, para que a dor do julgamento se fizesse sentir. Qualquer um, por mais distante que esteja de uma origem humilde, poderá listar inúmeros exemplos da própria história, se lembrará de embates dolorosos com o mundo do dinheiro e do bem-estar, com as referências que pegam bem (ópera, free jazz, cinema alternativo), mas que paralisam o provinciano. Vergonha de suas referências, de seus automatismos culturais. Vergonha de seu vestido, de sua camisa, de seus sapatos. Eu, que há pouco me achava bem-vestido, agora flagro olhares ligeiramente enojados, irônicos ou apenas surpresos, que me fazem mal — Lucien de Rubempré, em Ilusões perdidas: quando vai a Paris, o rapaz elegante de Blois se descobre, de repente, amarrotado, desengonçado como um avestruz. Eu me sinto sujo, olhe esse fio branco em meu suéter, o aspecto gasto das mangas, não tinha reparado. Estou mal-vestido aos olhos dos outros.

Depois das roupas (apesar de elas criarem uma estigmatização à primeira vista, antes mesmo de ser possível dizer bom dia), são as formas de falar, de comer e de andar que delatam e denunciam suas raízes no submundo — aquele dos desdentados, deploráveis, desprezíveis, mesquinhos, “os pequenos, os obscuros, os sem eira nem beira”. O vocabulário, a pronúncia, a sintaxe e os movimentos da boca, o andar abestalhado, a forma de pegar na faca como se fosse um pedaço de pau, tudo nos trai.

Há uma idade privilegiada para essas vergonhas iniciáticas, que não afetam tanto a infância, mas sobretudo a pré-adolescência. Quantas ficções, relatos de cenas fatídicas de vergonha no colégio. Onze, doze anos, a idade em que o amor da família não é mais o bastante — ele se torna, no máximo, refúgio ou pesadelo. Quem sou eu se transforma agora em Quanto eu valho e pode ser percebido nos olhos, nas palavras dos outros. Quem sou eu foi vencido, derrotado pelas cartas do mundo. Eu comparo, sou comparado, e encontro pessoas mais ricas, mais fortes, mais bem-vestidas, mais brilhantes. Descubro que sou sem graça.

Essa existência sob o olhar dos outros é nosso inferno, a perda da inocência. Condenado a existir para, por, com os outros, prisioneiro de seus julgamentos, com minha cabeça cheia de autoavaliações e comparações. Sou mais ou sou menos? O que dirão de mim? Os “colegas” de classe, como dizemos.

Annie Ernaux descobre, nessa idade, no olhar dos outros, por seus comentários ácidos, que ela vive em um café-mercearia excêntrico, rodeada por pimentões. Ela se constrange ao corrigir sua dicção, seu léxico, aprendiz espantada do que deve ser feito — o que se faz no outro mundo, que é, ao mesmo tempo, o verdadeiro, quer dizer: o mundo que importa. Mundo aritmeticamente minoritário, mas axiologicamente majoritário: este ao qual gostaríamos, deveríamos pertencer, novo objeto de meu desejo. Quero fazer parte, tenho raiva de me sentir excluído.

Essa existência sob o olhar dos outros é nosso inferno, a perda da inocência. Condenado a existir para, por, com os outros, prisioneiro de seus julgamentos

É a garota ao lado que me ensina. As camas são feitas de manhã, ai meu Deus, todos os dias. “Você deve morar em uma casa engraçada!”. As outras garotas voltaram, cochicham entre elas. O riso, a felicidade, e de repente tudo muda como leite velho, eu me vejo, eu me vejo e eu não sou parecida com os outros…

Até o mais limpo dos pobres fede: fede a água sanitária. Annie Ernaux se recorda. No colégio, em uma manhã de sábado, pouco antes da aula de gramática, ouve-se um grito de horror de Jeanne D., a filha do oculista: “tá fedendo a água sanitária”, “Eu queria me enfiar em um buraco, escondo minhas mãos embaixo da mesa, talvez nos bolsos da minha jaqueta. Estou tremendo de vergonha”. É ela, a pequena Annie, que antes de sair de casa tinha lavado suas mãos na cozinha, em uma bacia d’água impregnada desse cheiro. É o cheiro do mais limpo dos pobres, um “cheiro social”.

Descobrimos espantados, tristes, que nossos gestos, nosso jeito de andar, comer e falar são pesados, rústicos. Ritos desconhecidos, regras improváveis. Tudo pode suscitar um desprezo que nos oprime, e nossa própria família se torna motivo de vergonha.

Na igreja, ela cantava a plenos pulmões o cântico da Virgem, Eu irei vê-la, um dia, no céu, no céu. Isso me dava vontade de chorar e eu a detestava […]. Eu pensava que minha mãe era clarividente. Eu desviava o olhar quando ela abria uma garrafa segurando-a entre as pernas. Eu tinha vergonha de sua maneira brusca de falar e se comportar, e esse sentimento era tão mais forte quanto mais eu sentia que éramos parecidas.

Um gosto de traição na boca. A vergonha social permite descobrir uma dimensão da sociedade que os filósofos, em suas elucubrações abstratas (pacto social, contrato republicano, comunidade de interesses etc.), ou mesmo os sociólogos, não percebem com frequência. A sociedade como sistema de julgamento, organização hierárquica, potência de estigmatização, violência das exclusões simbólicas, experiências sucessivas de humilhação e vergonha. Rico ou pobre, isso logo se transforma em: bom ou mau, interessante ou inútil, belo ou feio, alto ou baixo. Me olham — ou tenho medo de que me olhem. Mesmo que esse olhar seja claramente desdenhoso, levemente condescendente ou apenas um pouco surpreso, quase divertido, esse olhar queima tanto que provamos do atroz isomorfismo sócio-ontológico-moral, tanto que a cruel equação se aplica: eu não tenho grande coisa = eu não valho grande coisa = eu não sou grande coisa. Eu não tenho nada = eu não sou nada. Pirâmide: o topo é reconhecido, desejado, e a base, desprezada. A sociedade é um sistema de lugares e a humilhação coloca cada um em seu, faz cada um sentir: sempre inferior. A experiência da vergonha é, antes de tudo, uma experiência de reatribuição. Eu acreditava estar vivo, leve, “na origem do mundo”, como escreveu Frantz Fanon. E, de chofre, percebo que meu lugar já foi designado. Descubro a pluralidade dos mundos e as barreiras, as soleiras e as portas. A vergonha: sentimento doloroso de deslocamento, perda de traços, desqualificação. Didier Eribon, em seu Retorno a Reims, reconhece que falar publicamente de suas origens sociais foi, no fundo, mais doloroso do que falar de sua homossexualidade (“Foi mais fácil escrever sobre a vergonha sexual do que sobre a vergonha social”).

Rico ou pobre, isso logo se transforma em: bom ou mau, interessante ou inútil, belo ou feio

O desertor de classe aprende rapidamente a não ser notado, a enganar “seu” mundo. Falamos o mínimo possível para não correr muitos riscos, reproduzimos fragmentos de códigos assimilados no percurso e os replicamos com cuidado, fingimos indiferença, refinamos gestos, exclamações, para reproduzi-los com prudência. Aprendizado doloroso e mesquinho que nos esgota. O corpo de Martin Eden no início do romance de Jack London, bobo e desengonçado, como um urso em uma loja de porcelana. As primeiras refeições e as primeiras conversas, a tranquilidade deles no manejo dos talheres e das citações literárias. E eu: como não me trair em todos os sentidos? “A vida é apenas uma gafe e uma vergonha.” A vigilância extrema para não ser notado, não deixar notarem de onde viemos. O esforço para se tornar invisível, substituível, ajustando-se aos outros, transparente.

Estratégia mais rara: abandonar-se à sua própria caricatura, exagerar seus trejeitos, incrementá-los, ser aceito como bobo da corte. Faço com que riam da minha tolice encenada, ressalto meu provincianismo. Me deformo. Ao menos somos reconhecidos, dominamos o ridículo ao provocá-lo, controlamos minimamente a risada dos outros alimentando-a com exemplos pessoais. E espera-se de volta um pouco de carinho, mesmo que disfarçado de desprezo. “Esse aí faz a gente rir”, “Ela é engraçada”. Um jantar de idiotas. Nos fazemos de idiotas para os outros, nosso ridículo é nossa gratidão. Mas eu permaneço ali, abrigado em seu desprezo confortável, mas bem-ajustado. No interior, tudo está prestes a desmoronar, mas pelo menos ainda faço parte do grupo.

A vergonha social nunca é pura. Uma ambiguidade faz dela raivosa — essa raiva que perpassa as frases de Annie Ernaux e lhes dá, apesar da neutralidade aparente, uma tensão formidável. A pobreza pode ser injusta, ou mesmo escandalosa, quando ultrapassa certo limite. Mesmo que ela não seja vergonhosa a priori. Ela não é o resultado mecânico do desprezo. Não tem nada a ver com as lógicas objetivas do opróbrio familiar que exigem vingança após o embate público.

Para sentir o incômodo da vergonha social, é preciso um questionamento interior. Até que ponto é realmente humilhante viver em um café-mercearia, ter uma mãe que trabalha limpando a casa dos outros, ter apenas uma calça que é passada aos domingos, um único par de sapatos grandes demais? A falta de dinheiro seria, sistematicamente, sempre, a priori, degradante?

O pobre pode assegurar sua dignidade desde que não tenha cruzado a linha da miséria, o que o obrigaria a mendigar. O pobre necessitado tem orgulho de sua pouca riqueza, de seu trabalho, de seu suor, de ganhar seu minúsculo salário à custa de muita luta. Esse orgulho é nutrido por uma suspeita renovada: e aquele que se pavoneia, que exibe seus “sinais de riqueza”, de onde ele tira sua fortuna? De seu trabalho? Nada é menos certo. É ele que é desprezível. Pense em como é fácil defletir o desprezo social de volta para o humilhador: basta o humilhado conservar seu semblante, exibir uma dignidade intacta e negar, assim, o julgamento que pretendia rebaixá-lo. Então o humilhador se torna ridículo, lamentável. Mas para quem ele se exibe?

A vida é apenas uma gafe e uma vergonha

Produto

  • A Vergonha É um Sentimento Revolucionário
  • Frédéric Gros
  • Ubu
  • 192 páginas

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