‘É preciso olhar para a própria infância para não repassar violência aos filhos’ — Gama Revista
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‘É preciso olhar para a própria infância para não repassar violência aos filhos’

Psicanalista Thais Basile defende que pais acessem seus traumas para romper com educação baseada em gritos, ameaças e medo

Amauri Arrais 02 de Dezembro de 2021

Quem de nós nunca ouviu de amigos ou parentes a frase: “Apanhei quando criança e estou bem”? A ideia de que a violência educa, ensina limites e até fortalece é tão disseminada que muitos pais não sabem como agir com os filhos — já que “não se pode mais bater” — e tendem a acreditar que faltam limites às crianças de hoje.

“A violência contra a criança é mais naturalizada do que a violência contra a mulher. A violência contra a mulher ninguém defende, apesar de os números mostrarem que ainda existe muito, infelizmente. Mas a violência contra a criança, que é um braço dessa cultura patriarcal e machista que a gente vive, é abertamente defendida”, compara a psicanalista Thais Basile.

Em seus artigos, livro e redes sociais, como o perfil Educação para a Paz no Instagram, a especialista em psicopedagogia defende que é possível, sim, criar filhos fora dessa ideia de uma educação “tradicional” baseada em gritos, ameaças, críticas e medo. E que parte desse trabalho consiste na disposição dos pais de revisitarem a própria infância. Não que seja uma tarefa fácil, já que, como a frase que relativiza as palmadas na infância sugere, tendemos a idealizar esse período da vida e evitamos certos traumas. “É muito difícil acessar o tanto de violência que a gente sofre, se ver como vítima”, diz Basile. No entanto, é fundamental acessar essas memórias e entender como essas violências foram cometidas contra nós para conseguirmos parar de agir no automático e de repassá-las aos nossos filhos.

Para a psicanalista, ter sido vítima não significa continuar sendo. Tampouco achar que, se nossos pais já foram violentos, não houve amor. “É necessário que a gente consiga aguentar essa ambivalência: posso ter raiva, um profundo luto por tudo que passei e ainda continuar amando esses pais”, observa.

A partir desse processo de autoconhecimento, Basile acredita que é possível enxergar outros caminhos para lidar com os filhos fora da lógica punitivista — que não inclui só castigos físicos, mas ofensas, coação e outras microviolências que naturalizamos. ”Um amor saudável não é livre de conflito, mas a questão é: como eles são resolvidos?”, questiona.

Na conversa com Gama, Thais Basile diz como é possível romper com esse modelo ainda tão presente nas nossas relações, explica por que confundimos autoridade com autoritarismo e por que não deveríamos educar filhos numa lógica binária de divisão de gêneros.

O grande problema é que a gente aprendeu a entender que, quanto mais eu fizer a criança se sentir mal, mais ela vai querer ser boa. E a criança fica presa na culpa

Thais Basile  Arquivo pessoal

  • G |Por que é importante olhar para nossa infância na hora de educar nossos filhos?

    Thais Basile |

    A nossa infância é importante porque nos dá base para toda a vida. Em geral, usamos as experiências da infância de uma maneira muito inconsciente, porque grande parte dos nossos atos e pensamentos são assim. Quanto menos a gente percebe que está agindo no automático, maior o potencial de traumatizar, de repetir o que não queremos. Outro dia postei um meme engraçado que era alguém dizendo assim: “O que esse defeito da minha mãe está fazendo aqui em mim?” É assim que acabamos repassando as coisas que vivemos na nossa infância, principalmente porque quando somos crianças não temos condições de elaborar a violência verbal. A violência contra a criança é mais naturalizada do que a violência contra a mulher. A violência contra a mulher ninguém defende, apesar de os números mostrarem que ainda existe muito, infelizmente. Mas a violência contra a criança, que eu vejo como um braço dessa cultura patriarcal e machista em que a gente vive, é abertamente defendida. Então, é importante que a gente olhe tanto para as estruturas que fazem a nossa família usar da violência para coagir, manipular, facilitar a vida da mãe que muitas vezes está presa numa tripla jornada, mas também para a nossa infância, que é de onde vão vir de forma automática coisas que racionalmente a gente não quer fazer, mas acabamos fazendo.

  • G |Ainda é muito comum ouvir pessoas de gerações mais velhas defenderem os castigos hoje dizendo, por exemplo, que as palmadas formaram seu caráter ou supostamente ajudaram a lidar com o bullying. Por que esse tipo de teoria ainda é tão disseminada?

    TB |

    O castigo não é só o físico, é tudo aquilo que envergonha a criança para que ela faça algo. Não importa se vai vir na forma de uma palmada, um grito, uma ofensa, uma coação, uma humilhação, uma manipulação (“se você não fizer isso, vou jogar seus brinquedos fora”), tudo isso são microviolências que a gente passou e naturaliza. O que está por trás do castigo é sempre uma boa intenção. Até hoje não encontrei um pai ou mãe que acorde e diga: “Hoje eu quero destruir o emocional dos meus filhos e vou castigar mesmo”. O grande problema é que a gente aprendeu a entender que, quanto mais eu fizer a criança se sentir mal, mais ela vai querer ser boa. Só que, em geral, quando a gente dá um castigo, envergonha a criança, ela fica tão presa naquela culpa, porque ela não tem condições de olhar para aqueles cuidadores e dizer que estão errados, que são violentos. Ela depende deles para ficar viva, então vai se culpar. No egocentrismo infantil, a criança tende a entender que causou algo terrível para sofrer algo terrível. Ninguém consegue agir melhor depois disso. O que pode acontecer é a criança paralisar de medo frente a uma ameaça de castigo ou mesmo de uma retirada de afeto. Mas em algum outro momento aquele sintoma volta num mau comportamento, um sintoma de algo que ela não tem capacidade ainda de verbalizar. Ela faz o outro se sentir mal tanto quanto está se sentindo. Mas não vai conseguir agir melhor porque o motivo não foi acessado, elaborado.

  • G |Mas por que ainda existe uma certa idealização desse período? Ninguém quer ver a própria infância como um trauma?

    TB |

    Ninguém. O que aprendi nesses anos todos conversando com famílias é que as pessoas não conseguem, não é que não querem. É muito difícil acessar o tanto de violência que a gente sofre, de perceber que aqueles adultos muitas vezes não tinham condições de educar, de cuidar. Assim como é difícil para as mulheres assumirem a violência que elas sofrem na sociedade, por isso muitas se dizem antifeministas. É muito difícil se perceber nesse lugar de vítima. E não é porque a gente foi vítima um dia que continuamos sendo para sempre. Inclusive, se perceber vítima é o primeiro passo para fazer algo. É preciso que a gente entenda que foram repassadas muitas violências, mas isso não quer dizer que não havia amor. Se a gente divide de maneira muito binária — quando tem violência não tem amor –, fica difícil de lidar com a questão porque a gente ainda ama o pai e a mãe mesmo tendo sofrido com eles. É necessário que a gente consiga aguentar essa ambivalência: eu posso ter raiva, um profundo luto por tudo que passei e ainda continuo amando esses pais. Uma coisa não anula a outra.

A violência contra a criança é mais naturalizada do que a violência contra a mulher. No caso da criança, ela ainda é abertamente defendida

  • G |Entre os meninos existe ainda o peso do machismo, essa ideia passada de geração a geração de reprimir emoções e afeto. Como romper com essa cultura que ainda é tão incrustada na nossa sociedade?

    TB |

    Rola uma fake news por aí de que os homens são impedidos de sentir. Eles dominam as artes, todas as áreas, com afetos positivos, negativos… O que o homem não pode demonstrar é fraqueza. Tudo que está associado ao feminino. Se o choro o aproxima dessa ideia de feminino, ele vai evitar. Não é que vai evitar a tristeza. Ele vai demonstrar de outra maneira, com a raiva, que é mais permitida. A gente aprende a masculinidade e a feminilidade vendo os homens e as mulheres se comportarem no mundo. Uma analogia muito fácil de perceber isso é aquele menino que foi criado por lobos. Se existisse alguma essência masculina ou feminina, ele não seria um menino lobo. Ele vestiria azul e jogaria futebol no meio da selva, e não foi isso o que aconteceu. A masculinidade que é ensinada é uma forma de dominância. Não acho que possa existir, no contexto em que a gente vive, uma masculinidade bonita e boa porque o próprio conceito já está incrustado com a dominância e o feminino com a subserviência. Essa educação por gênero não deveria existir. Falo muito que os meninos não têm que brincar com brinquedos ditos de meninos e as meninas com os ditos de menina. Isso não existe na infância, ainda que o conservadorismo queira empurrar goela abaixo. Criança é criança. Se quiser usar um vestido, pintar a unha, continua sendo um menino que está experimentando, fantasiando, isso não define nada. É importante que a gente comece a educar crianças de uma outra maneira, mais livre, sem essas duas caixinhas tão separadas que vão fazer com que esse menino em algum momento perceba que as meninas devem algo para ele, que tem mais privilégios, espaço, voz. É preciso começar bem do início e é na educação que se faz isso.

  • G |Como os pais conseguem lidar com a violência que não é física? Há uma corrente que diz que é importante mostrar aos filhos quando não se está bem. Qual o limite entre um rompante de raiva e a agressão verbal, por exemplo?

    TB |

    A gente não pode confundir a violência que às vezes vem com mostrar nossa humanidade. Todo mundo tem agressividade, mas ela pode ser mostrada de forma não violenta. Na nossa sociedade fomos aprendendo que a raiva tem a ver com violência e não precisa estar atrelada. A raiva pode ser usada para colocar limites, para ser mais assertivo, falar mais forte, acessar coisas em você que sente que são injustas, te colocar em ação… Acho que isso é um treino, precisa de análise, terapia, apoio. É um treino muito grande para se perceber, ver qual é o limite. Se, por exemplo, quando estiver com fome eu virar bicho, eu já sei e vou avisar todo mundo que pode ser que esteja um pouco mais mal educada nessas horas. Mas isso não me dá o direito de todo dia gritar com alguém porque estou com fome. A linha é sempre muito tênue e, se um dos nossos fantasmas vêm e nos assombra, a gente pode pedir desculpa, deixar a criança falar do que ela está sentindo. Muitos pais me perguntam: Mas o que eu faço com a criança depois que explodi, gritei, falei alguma ofensa? Mais importante do que isso, é deixar a criança elaborar o que ela viveu. Se ela conseguir isso, é ótimo. Estamos mostrando para ela que aquilo não é o nosso normal. É importante mostrar que passou do próprio limite, a criança precisa ter esse contraponto. Um amor saudável não é livre de conflito, mas a questão é: como esses conflitos são resolvidos? E isso não envolve só pai, mãe e criança, mas entre os adultos da casa também.

  • G |Você já disse em entrevistas que a intenção de quem grita e de quem bate nos filhos muitas vezes é se livrar da própria dor. O caminho para uma relação mais saudável com a parentalidade passa necessariamente pelo autoconhecimento, a terapia?

    TB |

    A gente nunca vai conseguir varrer o nosso inconsciente. No filme “Divertidamente” aparece uma parte do inconsciente da personagem que é toda escura, cinza. Muitas coisas em nós vão permanecer assim porque a gente não teria nem condições de trazer à tona e está no inconsciente por um motivo. A ideia na terapia ou análise não é trazer tudo à tona, mas começar a perceber nossos padrões frente a algumas dores. Entender os padrões de resposta a essas dores, que chamamos de mecanismos de defesa. A defesa principal do ser humano é negar, atacar o outro. Mas a ideia é se perceber: o que eu estou fazendo com o que essa sociedade superviolenta fez de mim e com a minha família, que acabou repassando parte dessa violência pra mim? A partir daí a gente começa a achar outros caminhos. Então, não preciso sempre explodir com a criança, posso sentar, jogar água na cara e escrever, por exemplo. Começo a ter outro padrão de resposta e minha raiva continua lá, muitas vezes. O que eu estou fazendo diante dela é que vai mudar um pouco. Isso é aos poucos, com muita vontade, a gente tem que se implicar em fazer algo, não vai vir naturalmente. O natural nosso é não fazer nada, deixar aquele sintoma permanecer. Existem outras formas de estar em terapia que não é psicoterapia — que envolve uma demanda econômica e não é todo mundo que vai conseguir fazer. Tem pessoas que se juntam, por exemplo, num coletivo feminista, num sindicato, num grupo e ali conseguem elaborar algumas coisas, ter o apoio que precisa. Mas se a pessoa acha que precisa desse apoio, procurar análise e terapia é essencial.

A ideia da terapia é achar outros caminhos. Não preciso sempre explodir com a criança, posso jogar uma água na cara e ir escrever. A raiva continua lá, o que muda é a resposta

  • G |Você tem centenas de milhares de seguidores e compartilha muitas dicas nas suas redes, coluna e livros. Esse filtro natural das redes, de priorizar as experiências exitosas, não pressiona outras mães e pais a idealizarem a parentalidade?

    TB |

    Eu não mostro a minha filha. Falo da minha vida, de mim. Acho que mostrei o rosto da Lorena uma vez para falar do contra exemplo, de uma explosão minha, e me permiti mostrar uma foto dela. Mas ela já me falou que não quer e, se a gente quer ensinar consentimento para as crianças, respeitá-los de verdade, tem que começar pela imagem deles. A imagem da minha filha não pertence a mim. A minha vida privada não é um produto, então não gosto que as pessoas consumam a minha vida, prefiro que consumam as minhas ideias. As leituras que eu faço, questões que trago da clínica e coletivizamos. Mas falo bastante da minha vida. Falei quando fiquei em depressão. Não gosto de mostrar só o bonito. Inclusive, acho que se as pessoas que trabalham com saúde mental e física se humanizassem mais seria muito bom para todo mundo. Existe uma grande mentira de que esse profissional está bem porque sabe as teorias todas, logo não sofre e não tem problemas. Isso não é verdade. Os nossos afetos nos afetam e nós também precisamos de apoio.

  • G |Na pandemia, ouvimos muitas histórias de violência durante o confinamento, mesmo em lares que antes eram pacíficos, mas que com a dinâmica alterada se desequilibraram. O que podemos fazer para reconstruir relações de confiança?

    TB |

    Gosto muito dessa palavra reconstruir porque a gente muitas vezes fica preso na culpa, principalmente quem é mulher. Vejo muitos pais paralisados nessa ideia de “eu estraguei a minha criança”. Eu gritei, castiguei, estou batendo, não tenho mais o que fazer. Muitas pessoas chegam para mim com filhos de 10, 11 anos perguntando se não tem mais o que fazer. Sempre tem o que fazer! Até se fosse um adulto com 50 anos. Sempre podemos voltar a situações e reescrevê-las na nossa memória e na memória das crianças, mesmo se não for mais criança, para ela elaborar aquilo de uma outra maneira, para verbalizar diferente. O que sempre falo para os pais fazerem é contextualizar as coisas para as crianças. Não é se justificar para colocar a culpa na criança, não é também se vitimizar, mas mostrar o que está acontecendo, a realidade mesmo. Propor também soluções para a criança, que não só precisa entender a contextualização como também sentir segurança que aquele adulto está fazendo alguma coisa, que aquilo não vai mais acontecer ou que vai acontecer menos, que o adulto está tomando conta de si e dela. A criança tem muitos acessos de birra quando é pequena ou uma reatividade muito grande quando é pré-adolescente. E às vezes os pais não conseguem conversar com a criança sobre o que aconteceu. Também é importante contextualizar para a criança que ela fez aquilo dentro de uma situação, de um estresse de uma pandemia, que está presa em casa sem amigos. É bom que as famílias separem quem a criança é do que ela fez. Junto com quem a criança é estão as emoções que ela sente: está tudo bem sentir raiva, ter muito medo, ficar triste. Agora o que a gente faz com isso é o que temos que direcionar. É preciso dizer que está tudo bem, que ela é normal porque, senão, essa sensação de inadequação, de que ela é péssima para os pais, separa, corta conexão com a família. E aí fica mais difícil que ela aja melhor, que ela entenda o que aconteceu com ela e com os pais.

  • G |Quando a autoridade paterna ou materna tem que se impor? Muitos pais têm essa dúvida de identificar o que é uma situação de abuso ou de impor um limite para os filhos.

    TB |

    Nossa noção de autoridade está muito contaminada pela de autoritarismo. O autoritarismo traz medo, essa ideia de “sou maior e você menor”, de que como eu tenho dinheiro e idade sempre vou mandar no outro. A autoridade está posta a partir de algo que a gente entende por segurança e proteção. Ela é natural. Se a gente pensar em alguém que influenciou positivamente a nossa vida, um professor ou professora, um chefe, essa pessoa tem autoridade sobre nós. Os pais precisam começar a ir para esse outro lado da autoridade que vem com base na influência positiva e não no medo do autoritarismo. Essa é a postura de um líder, de uma autoridade: dar um limite que seja para a proteção e segurança. Quando você dá um limite para uma criança tem que ser sempre para a segurança e proteção dela e dos outros que estão ao redor. Não precisa ser feita de forma agressiva. Se a criança sente que a raiva e o medo dela contaminam sempre os pais, que eles perdem a linha, não sabem o que fazer e partem para a agressividade, a segurança emocional e o vínculo ficam comprometidos. Então é bom que a gente aprenda a sustentar o limite porque a criança não vai gostar. A criança vai detestar que você chegue para pedir que desligue o videogame mesmo que isso tenha sido combinado antes. É em casa que a criança vai tentar ir um pouco além, impor a vontade dela. E o nosso papel é manter, é ser esse bloco e dizer: daqui você não passa e tudo bem se tiver raiva. Essa é uma rejeição momentânea da criança, mas a gente já entende como ingratidão, algo que ela está fazendo para nos machucar e, na verdade, ela só não está sabendo lidar com aquela frustração de ter que obedecer o limite.

logo Fundação José Luis Egydio Setubal

Este conteúdo é parte de uma série especial sobre violência e maus-tratos contra crianças e adolescentes, produzida com apoio da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.

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