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SemanaO prazer de ver sofrer
Do No Limite às videocassetadas, reality shows, programas de TV e a cultura pop atraem público por meio do sofrimento alheio, um prazer conhecido como schadenfreude
Assistir a uma mulher rolando por um enorme monte de areia sob o sol escaldante, depois de um longo tempo tentando escalá-lo, é algo que você chamaria de diversão? Ou acharia graça em ver um grupo de pessoas insones, passando frio e fome, obrigadas a dormir ao relento enquanto uma tempestade despenca ao redor? E que tal assistir a um casal tendo que sobreviver por semanas na natureza selvagem sem recursos, alimentos nem roupas?
Sempre vai surgir alguém nas redes sociais defendendo que tortura não é entretenimento, mas reality shows como No Limite — aposta atual da Globo para preencher a lacuna deixada pelo fim do BBB —, o famoso e infame Largados e Pelados e o próprio Big Brother dependem da nossa disposição para ver outras pessoas sofrerem.
Esse fenômeno, no entanto, não foi inventado pelos realities — apesas de muitos se beneficiarem de sua existência —, mas já vem sendo estudado a sério por psicólogos, filósofos e pesquisadores há mais de um século. E tem até nome em alemão, daqueles difíceis de pronunciar por quem não é nativo: schadenfreude.
Reality shows como No Limite, o famoso e infame Largados e Pelados e o próprio BBB dependem da nossa disposição para ver outras pessoas sofrerem
Uma das primeiras aparições do termo em inglês aconteceu em 1853, no livro “On the Study of Words”. Na obra, o arcebispo da cidade de Dublin, RC Trench, dizia considerar a palavra “uma lamentável lembrança da estranha perversidade que o gênio humano criou”. Em termos etimológicos, a expressão ganha sentido justamente por meio da contradição. Schaden significa dano. Freude, alegria. Schadenfreude, portanto, seria a alegria que surge do sofrimento.
De acordo com o doutor em psicologia e estudioso do tema Shensheng Wang, embora as definições possam divergir em alguns pontos, schadenfreude pode ser descrito como o prazer que sentimos ao ver algo ruim acontecer a outra pessoa.
Na internet, é comum encontrar o fenômeno associado a um quadro do artista espanhol Eduardo Zamacois y Zabala (1841-1871), chamado “O Monge e o Burro Rebelde”. Na composição, um monge tenta domar pelas rédeas o tal animal endiabrado enquanto, no fundo, colegas zombam de seus esforços. Um deles, mãos postas na cintura, dá uma gargalhada ao mesmo tempo em que aprecia a cena.
“Cedo ou tarde, todos damos de cara com uma experiência de schadenfreude em nossas vidas. Há pesquisas que revelam que até crianças de dois anos podem sentir isso, assim que têm suas primeiras experiências com ciúmes”, afirma Wang.
Pimenta nos olhos dos outros
O psicólogo austríaco Fritz Heider (1896-1988) dividia em quatro as formas como podemos nos sentir em relação ao outro. As duas primeiras são concordantes, ou empáticas: podemos nos sentir bem ao presenciar alguém tendo uma experiência positiva ou ficar mal com o sofrimento alheio “Mas há também duas condições discordantes”, lembra Wang. “Se alguém tem uma experiência positiva e você sente algo negativo, é o que chamamos de inveja. E, quando alguém passa por algo negativo, mas você tem um sentimento positivo, trata-se do schadenfreude.”
Esse sentimento pode emergir em contextos e por razões diferentes. Se exultamos ao ver um malfeitor indo parar atrás das grades ou sofrendo uma punição aparentemente justa, o schadenfreude tem um fundo moralista. Outro tipo de prazer moral surge da queda de alguém de grande status financeiro ou social, mas que não parece ter alcançado esse sucesso de forma merecida. Por exemplo, um esportista flagrado em exame de doping ou, algo cada vez mais comum, uma celebridade virtual “desmascarada” na internet.
Muitas vezes, em vez de sentirmos inveja de uma pessoa com mais status ou dinheiro que nós, desejamos que algo ruim aconteça a ela para igualar a situação
As motivações sociais, no entanto, não param por aí. “Existe também a questão da comparação social. Muitas vezes, em vez de sentirmos inveja de uma pessoa com mais status ou dinheiro que nós, desejamos que algo ruim aconteça a ela para igualar a situação.”
Querer ver o outro se dar mal também é um sentimento profundamente ligado à formação de grupos na sociedade. Num exemplo simples, pode ter a ver com torcer pela derrota do rival numa competição, mesmo que seu time já tenha sido eliminado. Um estudo realizado em 2015 na cidade de Würzburg, na Alemanha, apontou que torcedores de futebol abriam sorrisos maiores e em menos tempo quando seu rival perdia uma penalidade do que quando sua própria equipe marcava.
Numa sociedade complexa como a nossa, porém, o sentimento grupal pode ter implicações bem mais relevantes do que uma partida de futebol.
Meu grupo é mais bonito
Poucas experiências podem ser mais schadenfreudianas do que aproveitar um domingo em frente à TV assistindo às videocassetadas do Faustão. Enquanto você ri do cara caindo na piscina ou sendo atingido nas partes íntimas por uma bola de beisebol, no entanto, há também um outro processo em curso, que tem a ver com nossas noções de grupo, preconceito e pertencimento.
“A família dá gargalhadas no sofá da sala não só porque a pessoa caiu, mas porque uma pessoa gorda caiu. O gordo sempre foi associado à figura do palhaço. Então geralmente vai surgir aquele comentário preconceituoso chamando a pessoa de obesa, feia, desnecessária…”, destaca Saulo Santos Menezes, professor de psicologia da Universidade Salvador, na Bahia.
O mesmo vale para diversos grupos marginalizados, seja em videocassetadas, reality shows, filmes ou programas de TV em geral, segundo o docente. Isso porque a valorização do grupo, na cabeça de alguns, ganha ainda mais força a partir da desvalorização e até humilhação daqueles que não compartilham das mesmas características físicas ou ideais. E o prazer sentido com esse sofrimento tende a ser maior.
Quando passam por situações ruins em reality shows, pessoas negras, gordas e pertencentes a grupos vulneráveis costumam causar um impacto maior no público
“Perceba que, quando passam por situações ruins em reality shows, pessoas negras, gordas e pertencentes a grupos vulneráveis costumam causar um impacto maior no público”, diz Menezes. Um exemplo, segundo o professor, seria Karol Conká, que, tendo feito coisas ruins no BBB, acabou sendo vítima de um ódio desproporcional fora dele. “Não foi só pelos atos que ela cometeu, mas também por vir da periferia, ser negra e artista, elementos que fortalecem ainda mais o discurso de ódio.”
Um sentimento parecido teria sido despertado com a eliminação de Mahmoud Badoun, o primeiro participante a deixar a nova temporada de “No Limite”. Segundo Menezes, por ser homossexual, suas capacidades físicas e psicológicas foram colocadas em dúvida por algumas pessoas nas redes sociais. “Foi considerado uma ‘bicha fraca’, que não é macho o suficiente para suportar aquilo, estereótipo muito semelhante ao que costuma ser impingido às mulheres.”
Desde guri
Wang descreve uma pesquisa realizada em 2013. No estudo, crianças foram orientadas a apertar um botão sempre que uma determinada imagem aparecesse na tela do computador. Antes de iniciar, elas eram informadas de que estariam competindo com outra criança. O resultado foi que, mesmo tendo feito tudo certo, a maior parte dos jovens se sentia melhor ao saber que seu oponente tinha ido mal. E os que falharam se mostraram ainda mais amargos ao descobrir que seus competidores haviam se dado bem.
Embora haja razões para apontar comportamentos típicos de schadenfreude em crianças pequenas, o pesquisador ressalta que os estudos estão no começo e ainda não é possível dizer a partir de que idade esse sentimento emerge. Outra dúvida é se suas características são iguais na infância, na adolescência e na maturidade. “Na fase adulta, por exemplo, podem existir tipos diferentes de schadenfreude, aos quais alguns pesquisadores dão nomes diferentes.”
O mais provável é que o sentimento apareça no momento em que a criança inicia seu processo de socialização, de acordo com Menezes. “Quando ela começa a imitar e internalizar comportamentos dos adultos e de outras crianças, passa a racionalizar suas ações e já consegue fazer comparações muito mais amplas.”
Imaginando-se um evento hipotético, em que um colega de sala cai de bunda no chão, alguns dos fatores sociais dentro da turma podem ajudar a definir se o prazer momentâneo que a criança sente tem origem no schadenfreude. “Pode ser algo normal, por se tratar de uma situação engraçada. Mas, se a criança pertencer a um outro grupo, esse prazer pode ter uma origem diferente…”
No limite?
Mas afinal, existe um limite para o tipo de sofrimento que motiva o schadenfreude? Para Wang, sim. E a linha pode ser traçada no ponto em que esse prazer começa a ter origem em coisas mais pesadas, como tortura e até morte. Esses casos, de acordo com o pesquisador, seriam melhor definidos pelo que a psicologia moderna chama de sadismo cotidiano. “É uma construção mais abrangente do que o sadismo. Pode incluir diversas ações, como se divertir esmagando insetos.”
Trata-se de uma questão de intensidade, segundo o professor de psicologia da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Silvio Vasconcellos. Quando você ri de alguém se esborrachando no chão, não significa que tem algum distúrbio. Mas, se continuar rindo mesmo depois de perceber que a pessoa teve uma fratura séria, o buraco pode ser mais embaixo. “Ela riu e persistiu conforme a desgraça se tornou mais significativa. Estudos mostram que o psicopata não consegue fazer a divisão entre uma coisa e outra”, diz o docente, que é coordenador do PAACS (Pesquisa e Avaliação de Alterações da Cognição Social).
Menezes, por outro lado, relativiza a existência desse limite. Segundo ele, nem tudo pode ser caracterizado como distúrbio. Sentir prazer pela morte de um inimigo declarado, que pode se tornar uma grande ameaça, nada mais é do que um movimento natural, diz o especialista. O que não significa que se deve abraçar essa tendência, mas sim combatê-la sempre que possível.
Demasiado humano
Desde o famoso Largados e Pelados e sua versão brasileira — consideravelmente mais romântica — Se Sobreviver, Case, passando pelos “idiotas” de Jackass, até programas de aventuras cheias de perrengues, como os estrelados pelo britânico Bear Grylls, fica claro que o sofrimento de alguma forma nos atrai. Ou não estaríamos rindo há séculos da comédia pastelão, toda baseada em protagonistas que sofrem danos bastante físicos, e que no cinema foi elevada por pessoas como Charlie Chaplin e Buster Keaton.
Vasconcellos defende que, entre milhões de outros exemplos, o uso do schadenfreude para o entretenimento faz parte da comunicação humana. A exemplo de um comediante stand-up que decide fazer chacota de um dos integrantes da plateia. “Ele às vezes faz isso de forma até exagerada, porque sabe que quanto mais esculachar a pessoa, mais visibilidade vai ganhar.”
No caso dos realities, diz o professor, a conta é simples. A partir do momento em que torce para um grupo de pessoas, você passa a sentir um certo prazer em ver seus oponentes se darem mal. Não à toa, em seu livro “Ecce Homo” o filósofo Friedrich Nietzsche lembra por que ver os outros sofrerem nos faz felizes. “É algo difícil de dizer, mas um princípio poderoso, humano, demasiado humano. Sem crueldade, não há festival.”