A Invenção da Solidão
Vítima de um câncer, Paul Auster reflete sobre a morte do pai, a relação com o filho e a própria literatura em livro que alavancou sua carreira
Um dos grandes autores da literatura contemporânea, o escritor norte-americano Paul Auster morreu na terça-feira (30), aos 77 anos, devido a um câncer de pulmão, que foi diagnosticado ainda em 2022. Entre seus livros mais reconhecidos, estão “A Trilogia de Nova York” (Companhia das Letras, 1985) — cidade que marcou toda sua obra, tornando-o talvez o mais nova-iorquino dos autores — “Timbuktu” (1999), “O Livro das Ilusões” (2002) e o recente “4 3 2 1” (2018), em meio a um total de 34 obras publicadas. Ainda em 2024, deve sair no Brasil o último deles, “Baumgartner”. Os fãs também têm acompanhado o avançar da doença de Auster por meio da escrita delicada e sóbria da esposa, a também escritora Siri Hustveldt, em seu perfi no Instagram.
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Apesar da vasta obra que se seguiu, pode-se dizer que sua carreira foi alavancada com a publicação do livro de memórias “A Invenção da Solidão” (Companhia das Letras, 1999) — até então, o autor trabalhava principalmente com traduções. O volume trata, em sua primeira parte, do luto pela morte do pai, a partir de uma reflexão sobre sua ausência ao longo de toda a vida de Auster e o impacto dela na formação pessoal do escritor. Já a segunda metade é tomada por uma espécie de ensaio crítico que adianta vários dos temas que o autor trataria ao longo da carreira, como o acaso, o absurdo, destino e a relação entre pai e filho. O filho do escritor, aliás, foi o centro de uma grande tragédia familiar. Em 2022, Daniel Auster morreu de overdose após ser acusado do homicídio culposo da própria filha de apenas dez meses, também por overdose.
Roteirista de longas como “Cortina de Fumaça” (1995) e “Sem Fôlego” (1995), Auster ficou conhecido por um estilo de escrita confessial e límpido, geralmente protagonizado por heróis desorientados em meio a um mundo tão familiar quanto incerto. Com a invariável Nova York como plano de fundo, emprestava com frequência elementos de gêneros como suspense e autobiografia para construir tramas emocionalmente complexas, refletindo sobre o limiar entre acaso e livre arbítrio, entre coincidência e destino.
A seguir, Gama publica trecho de um dos primeiros e mais emblemáticos livros do autor que chegou a ser presença ilustre na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, em 2004. Nas memórias de “A Invenção da Solidão”, Auster inaugurava — se não inventava — um estilo de escrita que marcaria uma geração.
Retrato de um homem invisível
Num dia, há vida. Um homem, por exemplo, em perfeita saúde, nem sequer é velho, sem nenhum histórico de doenças. Tudo é como era, e sempre será. Ele segue de um dia para o outro, cuidando das suas coisas, sonhando apenas com a vida que se estende à sua frente. E então, de repente, acontece que há morte. Um homem solta um pequeno suspiro, tomba da cadeira, e é a morte. O inesperado da coisa não deixa espaço para nenhum pensamento, não dá nenhuma chance para a mente procurar uma palavra capaz de consolar. Somos deixados sem nada a não a ser a morte, o fato irredutível de nossa própria mortalidade. A morte após uma longa doença é algo que podemos aceitar com resignação. Mesmo a morte acidental podemos atribuir ao destino. Mas um homem morrer sem nenhuma causa aparente, um homem morrer apenas porque é um homem, nos leva para tão perto da fronteira invisível entre a vida e a morte que não sabemos mais de que lado estamos. A vida se transforma em morte e é como se essa morte tivesse possuído essa vida o tempo todo. Morte sem aviso. Em outras palavras: a vida para. E pode parar a qualquer momento.
A notícia da morte de meu pai chegou faz três semanas. Era um domingo de manhã e eu estava na cozinha preparando o desjejum do meu filho pequeno, Daniel. No andar de cima, minha esposa ainda estava na cama, aquecida debaixo das cobertas, se regalando com algumas horas extras de sono. Inverno no campo: um mundo de silêncio, fumaça de lenha, brancura. Minha mente estava repleta de pensamentos sobre o texto que escrevia na noite anterior e eu aguardava com ansiedade a tarde, quando poderia retomar o trabalho. Então o telefone tocou. Adivinhei na mesma hora que havia alguma coisa errada. Ninguém liga às oito horas da manhã de um domingo, a menos que seja para dar uma notícia que não pode esperar. E uma notícia que não pode esperar é sempre uma má notícia.
Não consegui evocar nenhum pensamento dignificante.
A morte após uma longa doença é algo que podemos aceitar com resignação
Antes mesmo de fazermos as malas e partirmos na viagem de três horas de carro até Nova Jersey, compreendi que eu teria de escrever sobre meu pai. Não tinha plano algum, nenhuma ideia mais precisa do que isso podia significar. Nem sequer consigo me lembrar de ter tomado uma decisão a respeito do assunto. Simplesmente estava ali, uma certeza, uma obrigação que começou a se impor a mim no instante em que recebi a notícia. Pensei: meu pai se foi. Se eu não agir depressa, sua vida inteira vai desaparecer junto com ele.
Recordando essas coisas, agora, mesmo a uma distância tão curta como são três semanas, me parece uma reação bastante curiosa. Sempre imaginei que a morte iria me entorpecer, me imobilizar com a tristeza. Mas agora que havia acontecido, eu não derramava lágrimas, não me sentia como se o mundo fosse desmoronar à minha volta. De uma forma estranha, eu estava muito bem preparado para aceitar essa morte, apesar do inesperado. O que me perturbava era outra coisa, algo que não tinha a ver com a morte nem com minha reação a ela: a compreensão de que meu pai não deixara vestígios.
Não tinha esposa, nenhuma família que dependesse dele, ninguém cuja vida fosse alterada por sua ausência. Um breve momento de choque, talvez, da parte dos amigos dispersos, abalados tanto com a ideia da morte caprichosa quanto com a perda do amigo, seguido de um curto período de luto, e depois mais nada. Enfim, seria como se ele nunca tivesse sequer existido.
Mesmo antes de sua morte, ele estivera ausente, e desde muito tempo as pessoas mais próximas a ele aprenderam a aceitar sua ausência, a tratá-la como a característica fundamental da sua pessoa. Agora que meu pai se fora, não seria difícil para o mundo assimilar o fato de que ele partira para sempre. A natureza de sua vida havia preparado o mundo para essa morte — foi uma espécie de morte por antecipação — e se, e quando, ele fosse lembrado, seria de forma obscura, apenas obscura.
Destituído de paixão por uma coisa, por uma pessoa ou por uma ideia, incapaz ou sem ânimo de se revelar em nenhuma circunstância, ele conseguiu se manter longe da vida, evitar a imersão no âmago das coisas. Comia, ia para o trabalho, tinha amigos, jogava tênis e no entanto, em tudo isso, não estava presente. No sentido mais profundo, mais inalterável, meu pai era um homem invisível. Invisível para os outros e, muito provavelmente, invisível também para si mesmo. Se, enquanto estava vivo, eu andava sempre em busca dele, sempre tentando encontrar o pai que não estava presente, agora que ele está morto ainda tenho a sensação de que devo continuar à sua procura. A morte não mudou nada. A única diferença é que meu tempo se esgotou.
Sempre imaginei que a morte iria me entorpecer, me imobilizar com a tristeza. Mas agora que havia acontecido, eu não derramava lágrimas
Durante quinze anos, ele viveu sozinho. Arredio, opaco, como que imune ao mundo. Não parecia um homem que ocupa um espaço, mas antes um bloco de espaço impenetrável na forma de um homem. O mundo ricocheteava nele, se espatifava de encontro a ele, às vezes aderia a ele — mas nunca entrava. Durante quinze anos, meu pai assombrou uma casa enorme, completamente sozinho, e foi nessa casa que morreu.
Por um breve tempo, moramos lá como uma família — meu pai, minha mãe, minha irmã e eu. Depois que meus pais se divorciaram, todo mundo se dispersou: minha mãe começou uma vida nova, eu parti para a faculdade e minha irmã ficou com minha mãe, até que ela foi embora também, para estudar. Só meu pai ficou. Por causa de uma cláusula no acordo do divórcio, a qual determinava que minha mãe ainda detinha uma parte da propriedade da casa e receberia metade do dinheiro no momento em que fosse vendida (o que fazia meu pai relutar em vendê-la), ou em razão de alguma recusa secreta de mudar sua vida (de modo a não ter de mostrar para o mundo que o divórcio o havia afetado de uma forma que não conseguia controlar), ou simplesmente por inércia, uma letargia emocional que o impedia de levar adiante qualquer ação, ele foi ficando, morando sozinho em uma casa que podia acomodar seis ou sete pessoas.
Era um lugar impressionante: uma construção sólida, antiga, no estilo Tudor, com janelas chumbadas, telhado de ardósia, quartos de proporções monárquicas. Comprá-la representou um grande passo para meus pais, um sinal de prosperidade crescente. Era o melhor bairro da cidade e embora não fosse um lugar agradável de se morar (sobretudo para crianças), seu prestígio sobrepujava o tédio. Levando em conta que ele acabou passando o resto da vida nessa casa, é irônico que meu pai, a princípio, tenha resistido à ideia de mudar-se para lá. Reclamou do preço (um tema constante), e quando enfim cedeu, foi com um mau humor ressentido. Mesmo assim, ele pagou à vista. Tudo de uma só vez. Nada de hipoteca, nada de prestações mensais. Foi em 1959, e os negócios andavam bem, para ele.
Sempre um homem de hábitos rotineiros, meu pai saía de manhã cedinho para trabalhar, dava duro o dia todo e aí, quando voltava para casa (nos dias em que não trabalhava até mais tarde), tirava um cochilo antes do jantar. A certa altura de nossa primeira semana na casa nova, ainda antes de termos nos mudado para lá propriamente, ele cometeu um engano interessante. Em vez de dirigir o carro para a casa nova depois do trabalho, seguiu direto para a casa antiga, como fizera durante anos, estacionou na entrada para carros, entrou na casa pela porta dos fundos, subiu a escada, entrou no quarto, deitou-se na cama e adormeceu. Dormiu durante mais ou menos uma hora. Nem é preciso dizer que quando a nova dona da casa voltou e encontrou um estranho dormindo na sua cama, ficou um tanto surpresa. Mas ao contrário de Cachinhos Dourados, meu pai não se levantou de um salto e fugiu às pressas. A confusão foi logo explicada e todo mundo deu uma boa gargalhada. Ainda hoje, isso me faz rir. E no entanto, apesar de tudo, não posso deixar de ver o caso como uma história patética. Uma coisa é um homem, por engano, dirigir seu carro para a casa antiga, mas é algo bem diferente, eu creio, ele não reparar que as coisas mudaram dentro da casa. Mesmo a mente mais cansada ou distraída preserva um reduto de reações puras, animais, e consegue transmitir ao corpo a sensação do local onde está. Seria preciso estar quase inconsciente para não enxergar, ou pelo menos não sentir, que a casa já não era a mesma de antes. “O hábito”, como diz um dos personagens de Beckett, “é um grande entorpecente.” E se a mente é incapaz de reagir diante de um evidência física, o que fará ao se confrontar com uma evidência emocional?
O hábito é um grande entorpecente
- A Invenção da Solidão
- Paul Auster (trad. Rubens Figueiredo)
- Companhia das Letras
- 200 páginas
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