Trecho de Livro: Angústia, de Graciliano Ramos — Gama Revista

Trecho de livro

Angústia

Livro clássico de Graciliano Ramos, cuja obra acaba de entrar em domínio público, ganha nova edição pela Todavia, com textos de Antonio Candido

Leonardo Neiva 12 de Janeiro de 2024

Dominada pelo tédio e a mesmice, a vida do funcionário público Luís da Silva dá uma súbita guinada com a chegada de uma nova vizinha. É a bela Marina quem motiva planos inéditos para o futuro do homem solitário, planos que envolvem até mesmo casamento e um lar feliz a dois. Mas, quase tão rápido quanto chega, esse sonho de uma vida ao avesso da sua escorre por entre os dedos de Silva, que é engolfado por uma espiral de desengano e desespero. Se essa trama parece familiar, é porque é mesmo. Um dos romances mais reconhecidos do jornalista e escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), “Angústia” (Todavia, 2024) ganha agora nova edição com uma série de extras.

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O volume dá o pontapé inicial na Coleção Graciliano Ramos, com organização do professor e pesquisador Thiago Mio Salla, na qual a Todavia deve reeditar as principais obras do escritor, cuja produção acaba de entrar em domínio público. Além disso, pelo selo infantil Baião, a editora lança o inédito “Os Filhos da Coruja”, que parte de um poema escrito a mão pelo autor e assinado com o pseudônimo J. Calisto. O texto também será ilustrado por pinturas do artista paranaense Gustavo Magalhães.

O posfácio da nova edição de “Angústia” traz os rodapés de jornal escritos pelo sociólogo e crítico literário Antonio Candido (1918-2017), nunca antes publicados em livro. Com notas adicionais de Thiago Mio Salla, especialista na obra de Graciliano, o livro também detalha as diferenças entre as edições publicadas em vida pelo autor, uma janela para seu minucioso processo artístico.

Lançado originalmente em 1936, pouco após Graciliano ser preso pelo Estado Novo, este é um de seus livros mais críticos e inquietantes, alternando com frequência trechos de fluxo de consciência a uma prosa seca e árida. Nas andanças do protagonista pelas ruas de Maceió, o leitor também deve reconhecer locais que vêm afundando em meio aos desabamentos causados pela Braskem, como os bairros de Bebedouro e Farol, ampliando de forma dolorosa as reflexões nostálgicas do personagem.


Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios.

Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, aproximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.

Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da rua da Lama¹.

Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram.

Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida.

À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.

Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua.

Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo.

Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exatamente. Fujo dos negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutem política e putaria.

Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por exemplo. Parece-me que eles cresceram muito

Não posso pagar o aluguel da casa. Dr. Gouveia aperta-me com bilhetes de cobrança. Bilhetes inúteis, mas dr. Gouveia não compreende isto. Há também o homem da luz, o Moisés das prestações, uma promissória de quinhentos mil-réis, já reformada. E coisas piores, muito piores.

O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido.

Dr. Gouveia é um monstro. Compôs, no quinto ano, duas colunas que publicou por dinheiro na seção livre de um jornal ordinário. Meteu esse trabalhinho num caixilho dourado e pregou-o na parede, por cima do bureau. Está cheio de erros e pastéis. Mas dr. Gouveia não os sente. O espírito dele não tem ambições. Dr. Gouveia só se ocupa com o temporal: a renda das propriedades e o cobre que o tesouro lhe pinga.

Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso.

Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas.


Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas viagens. Esta vida monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e das duas às cinco, é estúpida. Vida de sururu. Estúpida. Quando a repartição se fecha, arrasto-me até o relógio oficial, meto-me no primeiro bonde de Ponta da Terra².

Que estará fazendo Marina? Procuro afastar de mim essa criatura. Uma viagem, embriaguez, suicídio.

Penso no meu cadáver, magríssimo, com os dentes arreganhados, os olhos como duas jabuticabas sem casca, os dedos pretos do cigarro cruzados no peito fundo.

Os conhecidos dirão que eu era um bom tipo e conduzirão para o cemitério, num caixão barato, a minha carcaça meio bichada. Enquanto pegarem e soltarem as alças, revezando-se no mister piedoso e cacete de carregar defunto pobre, procurarão saber quem será o meu substituto na diretoria da fazenda.

É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva

Enxoto as imagens lúgubres. Vão e voltam, sem vergonha, e com elas a lembrança de Julião Tavares. Intolerável. Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua.

À medida que o carro se afasta do centro sinto que me vou desanuviando. Tenho a sensação de que viajo para muito longe e não voltarei nunca. Do lado esquerdo são as casas da gente rica, dos homens que me amedrontam, das mulheres que usam peles de contos de réis. Diante delas, Marina é uma ratuína. Do lado direito, navios. Às vezes há diversos ancorados. Rolam bondes para a cidade, que está invisível, lá em cima, distante. Vida de sururu.

Há quinze anos era diferente. O barulho dos bondes não deixava a gente ouvir o sino da igreja. O meu quarto, no primeiro andar, era um inferno de calor. Por isso, à hora em que os outros hóspedes iam para a escola, estudar medicina, eu dava um salto ao Passeio Público e lia, debaixo das árvores, o noticiário da polícia. Naturalmente a pensão se fechou e d. Aurora, que naquele tempo era velha, morreu.

O calor aqui também é grande demais. E faltam plantas. Apenas, um pouco afastados, coqueiros macambúzios, perfilados, como se esperassem ordens.

Cidade grande, falta de trabalho. O meu quarto ficava junto à escada, e à noite o cheiro do gás era insuportável. Quando escurecia, Dagoberto, estudante e repórter, vinha despejar sobre a minha cama um compêndio de anatomia e uma cesta de ossos.³

O bonde chega ao fim da linha, volta. Bairro miserável, casas de palha, crianças doentes. Barcos de pescadores, as chaminés dos navios, longe.

D. Aurora, que tinha sobrenome inglês, às seis horas encostava-se ao guarda-louça e rosnava, agitava os caracóis brancos, pregava os óculos nos hóspedes que comiam demais e nos que estavam em atraso. Havia um rapaz de Minas, dispéptico, que ela adorava e queria casar com a neta. Enquanto os outros mastigavam, Dagoberto esquecia o prato e falava sobre os discursos da câmara.

Retorno à cidade. Os globos opalinos do Aterro iluminam o gramado murcho e a praia branca. Os coqueiros empertigados ficam para trás. Penso numa ditadura militar, em paradas, em disciplina. Os navios também ficam para trás. A pensão, o meu quarto abafado, o focinho de d. Aurora e a cesta de ossos de Dagoberto somem-se.

O carro passa pelos fundos do tesouro. É ali que trabalho. Ocupação estúpida e quinhentos mil-réis de ordenado.

Não sou um rato, não quero ser um rato

Rua do Comércio. Lá estão os grupos que me desgostam. Conto as pessoas conhecidas: quase sempre até os Martírios encontro umas vinte. Distraio-me, esqueço Marina, que algumas ruas apenas separam de mim. Afasto-me outra vez da realidade, mas agora não vejo os navios, a recordação da cidade grande desapareceu completamente. O bonde roda para oeste, dirige-se ao interior. Tenho a impressão de que ele me vai levar ao meu município sertanejo. E nem percebo os casebres miseráveis que trepam o morro, à direita, os palacetes que têm os pés na lama, junto ao mangue, à esquerda. Quanto mais me aproximo de Bebedouro mais remoço.⁴ Marina, Julião Tavares, as apoquentações que tenho experimentado estes últimos tempos, nunca existiram.

Volto a ser criança, revejo a figura de meu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva, que alcancei velhíssimo. Os negócios na fazenda andavam mal. E meu pai, reduzido a Camilo Pereira da Silva, ficava dias inteiros manzanzando numa rede armada nos esteios do copiar, cortando palha de milho para cigarros, lendo o Carlos Magno⁵, sonhando com a vitória do partido que padre Inácio chefiava. Dez ou doze reses, arrepiadas no carrapato e na varejeira, envergavam o espinhaço e comiam o mandacaru que Amaro vaqueiro cortava nos cestos. O cupim devorava os mourões do curral e as linhas da casa. No chiqueiro alguns bichos bodejavam. Um carro de bois apodrecia debaixo das catingueiras sem folhas. Tinham amarrado no pescoço da cachorra Moqueca um rosário de sabugos de milho queimados. Quitéria, na cozinha, mexia em cumbucos cheios de miudezas, escondia peles de fumo no caritó.⁶

Eu andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Minha avó, sinha Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que não existiam. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva tomava pileques tremendos. Às vezes subia à vila, descomposto, um camisão vermelho por cima da ceroula de algodão encaroçado, chapéu de ouricuri, alpercatas e varapau. Nos dias santos, de volta da igreja, mestre Domingos, que havia sido escravo dele e agora possuía venda sortida, encontrava o antigo senhor escorado no balcão de Teotoninho Sabiá⁷, bebendo cachaça e jogando três-setes com os soldados. O preto era um sujeito perfeitamente respeitável. Em horas de solenidade usava sobrecasaca de chita, correntão de ouro atravessado de um bolso a outro do colete, chinelos de trança, por causa dos calos, que não aguentavam sapatos. Por baixo do chapéu duro, a testa retinta, úmida de suor, brilhava como um espelho. Pois, apesar de tantas vantagens, mestre Domingos, quando via meu avô naquela desordem, dava-lhe o braço, levava-o para casa, curava-lhe a bebedeira com amoníaco. Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva vomitava na sobrecasaca de mestre Domingos e gritava:

— Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro!

Eu andava no pátio, arrastando um chocalho, brincando de boi. Minha avó, sinha Germana, passava os dias falando só, xingando as escravas, que não existiam

¹Reduto de prostituição na cidade de Maceió, nos anos 1930.
²Bonde que se dirigia a um dos bairros mais antigos de Maceió, o qual, desde a década de 1920, abrigava sobretudo pescadores em casas modestas, em geral cobertas por palha de coqueiros.
³Em entrevista concedida a Homero Senna em 1948, ao relembrar o período que viveu no Rio de Janeiro, entre 1914 e 1915, quando trabalhava como foca de revisão e morava em bairros “pouco recomendáveis”, Graciliano destaca que a pensão no largo da Lapa onde vivera está em Angústia: “Dagoberto foi meu vizinho de quarto” (Graciliano Ramos, Conversas. Org. de Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 192).
⁴A linha do bonde passava pelo Aterro (localizado à beira-mar); já ao centro, pelo local de trabalho do narrador, situado à praça Dom Pedro II (antiga praça do Tesouro); pela rua do Comércio (uma das mais antigas e importantes de Maceió); e pela praça dos Martírios (na qual se encontrava o Palácio do Governo). Por fim, seguia adiante e estendia-se até Bebedouro, localidade mais afastada, próxima à lagoa Mundaú, que já foi reduto da elite alagoana e onde se construíam casarões.
⁵Referência à obra História do imperador Carlos Magno e dos doze pares de França, muito popular à época, tanto no Brasil quanto em Portugal. O livro é mencionado com recorrência na prosa de Graciliano. Basta ver a crônica “Sertanejos”, de 1931, na qual a referida narrativa era tratada como repositório da ciência e literatura do interiorano de outrora, categoria em que poderia ser incluído o pai do narrador.
⁶Padre Inácio, Amaro vaqueiro e Quitéria aparecem em outra obra do autor, Infância. A cachorra Moqueca é personagem de Histórias de Alexandre.
⁷Personagem de Infância.

Produto

  • Angústia
  • Graciliano Ramos (org. Thiago Mio Salla)
  • Todavia
  • 320 páginas

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