Trecho de Livro: A Economia Feminista, de Hélène Périvier — Gama Revista

Trecho de livro

A Economia Feminista

Economista francesa Hélène Périvier calcula os danos da baixa presença de mulheres na economia e aponta um olhar mais feminino para a área em novo livro

Leonardo Neiva 08 de Março de 2023

Historicamente pensada por homens para um mundo dominado por eles, a ciência econômica é uma das que têm menor presença feminina hoje. De cara, a informação parece não significar tanta coisa, mas na verdade pode ter um impacto enorme na forma como a sociedade funciona. Na introdução de seu livro “A Economia Feminista” (Bazar do Tempo, 2023), a economista francesa Hélène Périvier lembra que “os economistas ocupam um lugar marcante no debate público”, tratando e até determinando os rumos em temas fundamentais como emprego, pobreza e crescimento.

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No livro, a autora relembra mulheres pioneiras como Jane Marcet (1769-1858) e Harriet Martineau (1802-1876) ou mesmo, mais recentemente, Elinor Ostrom (1933-2012) e Esther Duflo, vencedoras do prêmio Nobel de Economia, que fizeram diferença na área, vencendo um longo e duradouro processo de desqualificação da economia com olhar feminista.

Na visão de Périvier, um caminho econômico machista e patriarcal se esconde sob o véu da neutralidade mentirosa. Isso porque, em geral, ele nega tanto as relações de poder e dominação às quais as mulheres são submetidas até hoje quanto o fato de que nem todo mundo é livre para fazer suas escolhas. “Os economistas omitiram o papel do trabalho familiar e doméstico realizado pelas mulheres e negaram o peso das relações de gênero na organização do trabalho”, revela a economista no impactante trecho introdutório, que tem tradução de Maria Alice Doria e Milena Duchiade.


Eu sou uma economista feminista

Qual é o sentido dessa afirmação? Se a economia é uma ciência e o feminismo uma ideologia política, então economia feminista seria um oximoro. Uma ciência não pode se associar ao engajamento militante. A análise científica ficaria contaminada pela subjetividade e perderia a natureza imparcial. Seria desviada de seus objetivos para ser apenas uma ferramenta a serviço de uma luta, uma luta pelos direitos das mulheres e pela igualdade. No entanto, a economia feminista hoje em dia é reconhecida como um braço da ciência econômica e dispõe de uma associação internacional de estatura acadêmica, a International Association for Feminist Economics (IAFFE), e de uma revista científica reconhecida pelos profissionais da área, a Feminist Economics. Esse processo de institucionalização da abordagem feminista não ocorreu nas outras ciências sociais. Várias pesquisadoras adotam uma perspectiva feminista em seus trabalhos, mas não precisam se afirmar como sociólogas feministas, cientistas políticas feministas ou historiadoras feministas. Para compreender por que as economistas feministas acharam que deviam se apresentar como tais, é preciso voltar aos fundamentos normativos da economia e ao conteúdo científico do feminismo.

O feminismo visa a igualdade dos sexos. Ele denuncia o sexismo como um sistema de desqualificação das mulheres e a ordem sexual que faz do patriarcado sua forma mais exitosa. Defende a emancipação e os direitos das mulheres. Por trás dessa abordagem se ocultam múltiplas estratégias, individuais e coletivas, e inúmeras divergências, às vezes intensas. A diversidade dos movimentos sociais e políticos feministas obriga, sobretudo, a aceitar a pluralidade. Os feminismos acumularam análises teóricas e empíricas que explicitam as desigualdades entre os sexos. As diferentes linhas de pesquisa abriram um campo de análise sobre a perpetuação dessas desigualdades e as condições de implementação do princípio de equidade. Essas reflexões mostram que a questão feminista não é uma reivindicação específica de uma categoria, mas uma dimensão incontornável do igualitarismo. Para além desse objetivo comum de igualdade, a perspectiva crítica do feminismo unifica abordagens distintas. Ela se aplica a todos os níveis da sociedade e, em especial, à epistemologia, objeto de estudo deste livro. As críticas feministas à economia levam a uma renovação conceitual, bem como a uma ampliação das temáticas. Elas jogam luz sobre a impossível neutralidade que, por muito tempo, os economistas acreditavam alcançar.

Os economistas ocupam um lugar marcante no debate público em função dos assuntos que tratam (…). Por isso, são mais arrogantes, já que acreditam compreender (…) as grandes questões do mundo

Os economistas ocupam um lugar marcante no debate público em função dos assuntos que tratam (por exemplo, emprego, desemprego, pobreza, crescimento), portanto, eles respondem a algumas das nossas principais preocupações. Por isso, são mais arrogantes, já que acreditam compreender, melhor do que os colegas de outras ciências sociais, as grandes questões do mundo. Eles inspiram autoridade pelas técnicas com as quais quantificam a riqueza de que dispomos e avaliam as políticas públicas, mas também provocam rejeição daqueles que recusam o culto aos números assimilado a uma forma de cinismo despolitizado. O problema não é recorrer à quantificação. Ela é indispensável para a compreensão dos fenômenos sociais, mesmo que comporte uma parte arbitrária e não possa ser assimilada a um método de objetivação perfeito. Portanto, essa acusação passa ao largo da crítica que podemos dirigir aos economistas, a saber, à forma de compreender o método científico.

Considerando que as reflexões acerca de justiça social e ética alteravam a dimensão científica da área, então em seus primórdios, economistas do fim do século XIX se afastaram progressivamente, deixando para a filosofia moral a tarefa de tratar dessas questões. Isso não é apanágio apenas dos economistas liberais. Karl Marx inscreveu sua teoria crítica do capitalismo na linha da economia clássica com o objetivo de construir um socialismo científico centrado nas condições de produção e não nas questões redistributivas, que seriam do campo das considerações morais. A busca por uma neutralidade idealizada levou os economistas a unificar suas abordagens apoiando-se em uma linguagem comum. Mais didático e formalizado, o paradigma neoclássico era um candidato ideal para dominar a área. Esse quadro coerente responde a questões relativas aos intercâmbios mercantis, mas não foi concebido para compreender as trocas de outra natureza (como o trabalho doméstico ou o familiar). Ele se construiu fazendo da racionalidade individual o alicerce da análise econômica. Uma vez que as considerações de justiça social e éticas foram afastadas, as condições nas quais se exerce essa racionalidade não são questionadas. Ao supor que o indivíduo seja livre para fazer suas escolhas, negamos a existência de relações de poder e dominação e descartamos o papel das normas sociais nas decisões individuais. As escolas alternativas de pensamento foram catalogadas como filiadas à heterodoxia. Na classificação das publicações reconhecida pela comunidade dos economistas do Journal of Economic Literature da American Economic Association, a subseção B5 Current Heterodox Approaches compreende o marxismo, o institucionalismo das origens de Thorstein Veblen e de John Commons, como também a escola austríaca liberal de Friedrich von Hayek. A economia feminista completou esse quadro em 2006. As temáticas ligadas às discriminações e aos estereótipos já estavam presentes desde 1990 na subseção J16 Economics of Gender; Non-labor Discrimination. A classificação da economia feminista em meio a escolas heterodoxas parece responder a uma necessidade de especificar as abordagens que se opõem diretamente ao paradigma neoclássico. Levada ao seu paroxismo, a dominação neoclássica fez do homo œconomicus a única grade de leitura dos comportamentos humanos. Esse imperialismo, do qual Gary Becker e Milton Friedman foram os representantes mais conhecidos, tornou o livre mercado o modo de regulação das nossas sociedades. Sob o abrigo do positivismo, ele determina as bases de um neoliberalismo que coloca as liberdades econômicas acima das liberdades políticas. Portanto, não é o paradigma neoclássico que está em jogo, mas sua generalização a toda questão social (casamento, sexo, direitos reprodutivos, criminalidade etc.).

A ciência econômica foi criada por homens para servir a uma sociedade dirigida por homens. Hoje em dia, ainda é uma das ciências com a menor presença feminina

A pesquisa em economia não pode ser limitada por uma acumulação unidirecional de conhecimentos, pois ela produz uma pluralidade de análises marcadas com o selo das diferentes escolas de pensamento. Esses saberes são fruto de questionamentos que se inserem em um contexto histórico e político. A ciência econômica foi criada por homens para servir a uma sociedade dirigida por homens. Hoje em dia, ainda é uma das ciências com a menor presença feminina. O viés masculino por muito tempo foi oculto pela adesão consensual a uma ordem sexuada. Os postulados essencialistas foram alçados à categoria de axiomas científicos, pois, durante muito tempo, ninguém, ou quase ninguém, os contestou. Esses julgamentos de valor permitiram justificar a divisão sexual do trabalho e as desigualdades entre os sexos. Considerando o mercado como a única instituição que permite o intercâmbio e a produção, os economistas concederam pouco espaço à dimensão não mercadológica das nossas sociedades, ou somente por meio dos insucessos do mercado (por exemplo, as externalidades positivas produzidas pela educação levam a que esta seja considerada um bem público). De fato, o mercado desempenha um papel importante na conquista social desde que haja uma regulação que garanta seu status de bem público e que impeça qualquer reapropriação privada (fraude, monopólio, conflitos de interesses, corrupção e retenção de informação). A emancipação das mulheres passa pela independência econômica e, portanto, pela sua participação no mercado de trabalho. No entanto, essa participação é condicionada ao funcionamento da família, o que não acontece com os homens. Os economistas omitiram o papel do trabalho familiar e doméstico realizado pelas mulheres e negaram o peso das relações de gênero na organização do trabalho.

Produto

  • A Economia Feminista
  • Hélène Périvier
  • Bazar do Tempo
  • 184 páginas

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