Como a inflação te impactou? — Gama Revista
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Mariana Simonetti

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Depoimento

Como a inflação te impactou?

Um empresário, uma esteticista, um porteiro e um professor de história compartilham as dificuldades do real desvalorizado, e um especialista comenta os preços nas alturas e a desigualdade brasileira

Manuela Stelzer* 10 de Julho de 2022

Como a inflação te impactou?

Manuela Stelzer* 10 de Julho de 2022
Mariana Simonetti

Um empresário, uma esteticista, um porteiro e um professor de história compartilham as dificuldades do real desvalorizado, e um especialista comenta os preços nas alturas e a desigualdade brasileira

No supermercado, na padaria, no posto de gasolina ou mesmo sem sair de casa – quando o assunto é dinheiro, o brasileiro tem se visto em um beco sem saída. O barril do petróleo atingiu seu maior valor em 14 anos (US$ 139 em março deste ano), as embalagens de produtos no mercado têm ficado menores e mais caras, e o prato feito, que considera os valores do arroz, feijão, bife, batata frita e salada de alface e tomate, além de temperos e gás de cozinha, teve um aumento de 23% desde abril de 2021.

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“O mercado de trabalho e a condição socioeconômica do país ainda não se recuperaram do choque causado pela pandemia”, explica o doutor em economia Leonardo Santos de Oliveira, que é membro da IARIW (International Association for Research in Income and Wealth). “O preço alto do barril e do dólar trazem consequências diretas na vida das pessoas porque produtos derivados do petróleo, transportados por rodovias ou importados ficam mais caros.” Segundo ele, toda vez que o valor do dólar sobe é como se o país ficasse um pouco mais desfavorecido em termos de trocas.

A inflação, que aparece em boa parte dos preços ao consumidor e há nove meses segue rodando acima dos dois dígitos, pode até ter pego algumas pessoas de surpresa no início, mas à medida que os novos preços são internalizados nas contas a pagar, fica mais difícil desacelerar o aumento. “Vamos nos organizando para conviver com custos mais altos, tanto do lado da oferta, como da demanda. É como uma expectativa de inflação que vai se concretizando.” E tudo fica ainda mais complexo em um país que, como o Brasil, navega em um mar de incertezas: “Essas imprecisões quanto ao comportamento de variáveis econômicas determinam custos de produção, seja do cenário externo, condições do próprio país, atitudes do Banco Central, do Congresso. Tudo isso influencia em decisões de investimento, que futuramente podem reduzir, em alguma medida, a inflação”.

Gama conversou com pessoas de diferentes realidades para entender como e quanto a inflação, que chegou a 11,73% em maio, perturbou as contas, os negócios e os carrinhos do supermercado.

‘Todo mês é um item a menos no carrinho’

A esteticista Carlla Souza tem uma filha de quatro anos e vive com a mãe e a irmã. Ela conta que desistiu de morar sozinha e adquirir um carro justamente por conta dos preços estrondosos. “Esse cenário de inflação é como um pesadelo, trabalhamos para comprar o mínimo.” A frequência no mercado, segundo ela, diminuiu, e agora opta por marcas genéricas e produtos de pequenos fabricantes – tentativas de baixar o valor gasto com alimentos e mercadorias do dia a dia. O entretenimento, para ela, se tornou uma realidade distante. “O brasileiro vive para pagar as contas e se priva do lazer por dinheiro.”

Conseguir um espaço para atender clientes, investir em especializações e ferramentas de trabalho foi uma missão impossível, diz ela. “Os materiais de estética tiveram um aumento absurdo. A gente tenta segurar para não repassar o valor para o cliente, mas não dá para evitar por muito tempo”, conta. “A sensação é que o dinheiro não compra como antigamente, e por ser autônoma, o impacto é ainda maior.”

O economista Leonardo de Oliveira também comenta sobre a renda dos brasileiros que, de acordo com os índices da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), teve queda de 2020 para 2021. “Em torno de 7%. A renda média domiciliar foi de R$ 1454 para R$ 1353. Mas se olhar para os mais pobres, a queda foi maior, de mais ou menos 15%. De R$ 489 caiu para R$ 415.” Empregos informais ou com menor grau de qualificação tiveram ainda mais dificuldades. “Acerta em cheio as pessoas com menores rendimentos.”

‘A vida se tornou muito mais difícil, mesmo tendo um salário’

Para Gilson Santos, que é porteiro em um condomínio na região central de São Paulo, falar sobre inflação é algo cotidiano. “Enquanto a gente, que é trabalhador, não tem um aumento, o preço de todo o resto vai crescendo com frequência.” Ele conta que seu vale refeição costumava ser suficiente para os gastos da família por 15 dias. “Hoje, vou no mercado com esse dinheiro e quase não dá para uma semana.”

O carro, segundo ele, fica parado na vaga por não conseguir abastecer. Pai de dois, tem se assustado cada vez mais com as contas de luz e água, mas se demonstra aliviado por pelo menos conseguir quitá-las e ter comida na mesa – ainda que não sobre para gastos extras. “Ia no mercado e comprava bolacha e outras coisas que meus filhos gostavam. Agora, não consigo.”

Por mais que a inflação seja a mesma para todos os brasileiros, pesa de diferentes maneiras no bolso das famílias. “Atinge muito mais aquela parcela da população que dedica uma fração maior da sua renda com alimento, transporte, etc”, aponta Leonardo de Oliveira, que relembra também o poder de mecanismos de proteção à inflação. “Pessoas com menos dinheiro podem não ter acesso a serviços bancários e financeiros com as mesmas taxas de juros e remuneração, e podem ter mais dificuldade de proteger seus recursos da alta de preços.”

‘Minha impressão é que voltamos para as décadas de 80 e 90’

Mesmo que lembre pouco do período, o empresário Thiago Visconti diz que, quando começou a trabalhar, no início dos anos 2000, “esse fantasma não existia com o mesmo tamanho que hoje”. “Não duvidávamos se seria possível fazer algo. Tínhamos o famoso ‘poder de compra’.” Conta que teve o aluguel ajustado em 24% (seria, na verdade, 30%, mas conseguiu negociar) de 2020 para 2021, e foi impactado pelo aumento na conta de luz e pela crise de apps de transporte, como Uber e 99 Táxi.

Visconti ilustra o que o doutor em economia já havia adiantado: por mais que o acréscimo nos preços seja uma realidade de todos, impacta o bolso de acordo com a realidade dele. “Saídas com os amigos se tornaram menos frequentes. No almoço diário fora de casa, precisei procurar ofertas em outros estabelecimentos a fim de manter a média de valores.”

O empreendimento do qual Tiago é sócio, o bar Caracol, sofreu com o aumento dos insumos, assim como 37% dos pequenos negócios brasileiros, como apontou o Sebrae. “Cortamos carne vermelha do cardápio. Nas bebidas, a próxima carta será bem mais focada em ingredientes nacionais, como cachaça e outros destilados produzidos aqui.” Sobre o reajuste e como chega para o cliente, Visconti diz que, eventualmente, precisa repassar para o consumidor a mudança no panorama. “Há um limite do quanto se pode apertar as margens de um tipo de negócio conhecido por margens apertadas.” Mesmo que alguns drinks mais caros tenham menos saída que outros, admite que não receberam reclamações e o movimento se manteve, ainda que com uma mudança no perfil de consumo.

‘A inflação nos adoece de uma certa maneira, nos restringe’

O professor de arte e cenógrafo Francisco Wille ficou desempregado durante a pandemia e precisou voltar a morar com os pais, no litoral do Paraná. Há poucos meses, paga o aluguel próprio em Florianópolis e segue uma sensação geral: “Está tudo muito caro”. A bicicleta é seu meio de transporte principal e afirma que todo mês fica na dúvida: “Será que vou conseguir fechar todas as contas?”

Para Wille, diversas áreas do consumo sentiram o peso da desvalorização do dinheiro e o aumento dos preços. “Isso faz com que a gente pense mais sobre como e com o que gastamos, gera uma ansiedade”, conta. “Não foi esse futuro que imaginava dez anos atrás. Não foi a perspectiva que me venderam na faculdade.” E reitera: “Temos um cenário de desigualdade no Brasil. Se está tudo caro para mim, imagine para outras pessoas”.

O desemprego, que ficou em cerca de 11% no primeiro trimestre, como afirma Oliveira, tem efeitos não apenas monetários, como no bem-estar e autoestima da pessoa desempregada – ainda mais depois de tanto tempo de isolamento social por conta da pandemia. “A inflação não necessariamente faz a pessoa perder o trabalho, mas vai atingir as que perderam de maneira mais agressiva. Não conseguir voltar para o mercado pode fazer essa pessoa se sentir inferior a seus pares”, exemplifica o doutor em economia.

*Com colaboração de Andressa Algave