Vinho de casa — e da cidade
Apaixonados pela bebida e curiosos com os mistérios da fermentação, amadores produzem brancos, tintos e outros em pequenas vinícolas urbanas
Dizem que quando alguém se apaixona pelo vinho é um caminho sem volta. O enófilo encantado vai buscar mais conhecimento, novos estilos, uvas, terroirs, mergulhar no assunto e posicionar sempre que possível o nariz na taça mais próxima. Mas alguns apaixonados brasileiros têm levado esse amor a uma consequência nova e curiosíssima para o contexto das cidades — fazer seu próprio vinho.
Não que vinícolas urbanas sejam algo inédito no mundo. Elas são uma tendência de cidades americanas, como Nova York, Portland, Dallas. Mas tratam-se de empresas que compram uvas de regiões vitivinícolas e as fermentam no perímetro urbano, engarrafam e vendem aos clientes. Algumas têm estrutura de bar e restaurante e oferecem menus harmonizados com o vinho da casa.
Tem a ver também com a expansão dos vinhos naturais — é a maneira de assegurar que a produção está livre de aditivos químicos
No Brasil, a história é um pouco diferente, e pode-se dizer que o vinho é mais de casa mesmo: a bebida que se faz é para consumo próprio e para satisfazer tanto a curiosidade, quanto a sede. A prática vem na esteira do movimento de resgate de práticas ancestrais de produção de fermentados, como ocorreu com o pão de levain, com conservas, com o kombucha e, principalmente, com a cerveja artesanal que entrou em muitas panelas de cozinhas domésticas. Mas tem a ver também com o crescimento do movimento dos vinhos naturais. Afinal, é a maneira mais certeira de assegurar que todos os processos de produção, desde a fermentação até o engarrafamento, estão livres de aditivos químicos.
Já a uva, essa vem de fora, do campo mesmo, e é a parte mais difícil e dramática da operação (veja quadro abaixo).
DOC Lapa, São Paulo
A união das três amigas que formam a Libertinagem Vinho foi obra da “conjunção dos astros e dos planetas” — o que não é absurdo falar quando o tema é vinho, afinal o biodinamismo, corrente de cultivo de uvas e produção da bebida, se guia também por eles. As três atuavam no mercado financeiro, as três gostavam de vinho, mas uma delas, Gabriela Pinheiro, já estava mais próxima do universo dos naturebas, era a rainha da fermentação.
Reencontrou Carolina Caldeira, a mais experiente no mundo do vinho, depois de 15 anos em um curso sobre a bebida. Se reaproximaram e concordaram que seria divertido um dia, quem sabe, amassar umas uvas, fermentar aquele mosto e transformar açúcar em álcool. Foi quando visitaram o bar Sede 261, e conheceram Marília Caminha, que queria saber mais sobre o assunto.
Nasceu ali o trio que, poucos dias depois, faria seu primeiro vinho. “Liguei para as duas e falei ‘seguinte: tenho uvas, chegam em nove dias’”, conta Gabriela. Todas toparam, mas ninguém sabia direito como fazer, nem tinham os materiais necessários. “O que pensamos é que, como estávamos em São Paulo, uma cidade onde tudo há, é claro que íamos conseguir um tanque para fermentar.”
Fizemos consultoria por telefone com produtores, a gente não tinha a menor noção, mas seguimos a ideia da baixa intervenção
Claro que não acharam. Alugaram um carro, saíram pelo interior para encontrar os insumos. Conseguiram tudo o que precisavam apenas um dia antes de receberem os cem quilos de uvas no bairro da Lapa, ou, como chamam a sua “denominação de origem urbana”, DOC Lapa.
O primeiro a ser fermentado foi um Sangiovese. A ideia era fazer um espumante rosé, tipo pét-nat; saiu tinto, mas ficou interessante, contam. Depois fizeram um Cabernet Sauvignon, um Nebbiolo e um Isabel. Nada oxidou, nada virou vinagre. “Fizemos consultoria por telefone com produtores, a gente não tinha a menor noção, mas seguimos a ideia da baixa intervenção”, conta Carolina.
“Para mim, foi um super-rolê aleatório, eu nem era tão apaixonada assim, mas virei uma chave, encontrei um hobbie incrível”, conta Marília. “Muitos produtores do vinho natural nos ajudaram, nos deram dicas, doaram insumos que não encontrávamos para vender, são pessoas de uma generosidade admirável.”
O trio segue produzindo seus vinhos como hobbie e em 2021 alcançaram uma grande vitória: estão fermentando uvas cultivadas em São Paulo. Vindas de São Miguel do Arcanjo, a 145 quilômetros da capital, um Shiraz e um Rainha serão os primeiros vinhos paulistas da vinícola paulistana. “Serão nossos vinhos 011”, comemora Carolina.
Doc Santa Cândida, Curitiba
De dia elas são engenheiras, de noite e nos finais de semana a jornada é de fermentação. Para a engenheira civil Gabriela Storgatto e a engenheira ambiental Roberta Giraldi, que no Instagram informa que está “fermentando e explodindo coisas”, tudo começou com cerveja, há três anos. Mas, à medida que conheceram mais sobre os vinhos naturais, começaram a frequentar feiras e conheceram alguns produtores, se apaixonaram pela ideia de elas mesmas produzirem sua bebida, ainda que no perímetro urbano de Curitiba.
Assim como o trio da paulistana Libertinagem, a dupla da Distenta Artesanais não teve curso formal de produção de vinho, mas contou com a ajuda de outros produtores que foram conselheiros virtuais. “O Daniel, do Vinhas do Tempo, nos mandava direções a cada dois dias. Dizia para esperar, dizia quando prensar”, conta Gabriela. “As pessoas são muito generosas talvez porque tenham passado por isso. É estranho, você compra um vinho dos caras, gente como o Eduardo Zenker ou o Daniel Lopes, eles viram ídolos, e depois te ensinam.
A quantidade de gente que nos procura para saber como fazer… Antes se chocavam porque pisamos em uva. Agora, querem pisar também
Há dois anos compraram uvas e fermentaram na lavanderia do apartamento no centro de Curtiba, onde moravam. Começaram com apenas dez quilos e deu bem errado. Na segunda vez, deu mais ou menos certo. Em 2019, aí sim, cem quilos de Malbec renderam 60 garrafas deliciosas. Em 2020, arriscaram 300 quilos de Merlot, Viognier e Fiano e fizeram diversas experiências, cofermentaram uvas, testaram um laranja e por aí vai.
Neste ano, mudaram-se para uma casa maior no bairro de Santa Cândida e vinificaram Viognier, que está em vias de tornar-se um pét-nat e também será um laranja, Isabel (rosé e tinto) e Merlot, cerca de 800 quilos de uva que vieram de Campo Largo, região metropolitana de Curitiba.
“Mesmos cercados de prédios, a pandemia fez com que a gente pensasse mais sobre estar conectados com a natureza. A quantidade de gente que hoje nos procura para saber como fazer… Antes se chocavam quando a gente falava que pisa em uva. Agora, querem pisar também”, conta Roberta.
Doc Cantareira, São Paulo
A história do cozinheiro Ídolo Giusti Neto é um pouco diferente, pode-se dizer que é um pioneiro, já produz seu vinho há 20 anos sem aditivos, de forma natural, antes mesmo do movimento ter chegado ao país. O avô, apicultor, fazia hidromel e o ensinou as técnicas de fermentação. “Ele morreu com 108 anos, bebia vinho todos os dias”, diz com orgulho.
Sua pequena cantina, jargão usado para o local de vinificação, fica no telhado de casa. Batizou os vinhos de Pandemi_co por conta da pandemia de H1N1, em 2009, e agora, na de covid-19, montou um deck no telhado com capacidade de produção de mil litros. “Vinho para mim é uma coisa do dia a dia da família, é para o nosso consumo. Quero tomar algo de primeira porque o que vendo no mercado, e ao preço que se cobra, é um absurdo.”
Giusti compra a uva do Rio Grande do Sul, e da divisa entre São Paulo e Paraná. “Ela chega 100%, mas eu que tenho que ir buscar. Saio daqui, meia noite estou na plantação, às 2h eu já colhi a minha uva e às 6h estou em casa de novo. A que vem do Rio Grande do Sul chega um pouco mais sofrida, mas é de tão boa qualidade que o vinho fica excelente”, conta. Ele já fez vinho de Isabel, Cabernet Sauvignon, Moscato Antigo e Peverella, entre outras.
Tudo o que faço de hidromel ou de vinho sempre vai levar uma erva da Cantareira, que muda o contexto, dá um gosto diferente
Com mais tempo de fermentação no currículo, ficou claro que o que Giusti gosta mesmo é de experimentar. “Tudo o que aprendi sobre as plantas, eu tento levar para o dia a dia. Estou fazendo um Cabernet Sauvignon que vem do Sul, com o fruto da costela-de-adão”, conta. “Tudo o que faço de hidromel ou de vinho sempre vai levar uma erva da Cantareira, que muda o contexto, dá um gosto diferente”, conta, provando que mesmo que sejam urbanas, essas novas vinícolas podem dar à bebida um caráter do terroir local.
Encontrar uvas sempre foi o maior drama de quem produz vinho dentro das cidades. Isso porque para ter um bom vinho a primeira regra é que a fruta esteja boa, no ponto ideal de maturação, seja saudável. A viagem tem que ser feita da forma mais cuidadosa, em situações ideais de higiene e em caminhões climatizados, considerando que a colheita é feita no verão e o calor pode iniciar a fermentação antes da hora. A procedência das uvas torna-se então uma questão crucial: a maior produção do país está no Rio Grande do Sul, mas o trajeto pode ser perigosamente longo até a cidade de São Paulo.
A distância é também dramática porque faz com que as vinícolas urbanas não consigam acompanhar o cultivo das uvas e saber exatamente como os vinhedos estão sendo manejados, que produtos estão sendo usados nas plantas e no solo. Para elas então, encontrar a uva ideal tornou-se a fase mais difícil a ser superada no jogo.