Coluna da Vanessa Rozan: Vitória da Victoria — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Vitória da Victoria

Marca de lingeries famosa por fazer desfiles grandiosos com modelos com peças minúsculas e asas de anjo gigantescas vai voltar às passarelas em 2024 em mais um backlash da magreza

07 de Junho de 2024

Os leitores mais atentos dessa coluna já entenderam que estamos atravessando um novo backlash da magreza, como alguns de nós vivemos entre os anos 1980 e 1990, e seus desdobramentos, como as calças de cintura baixa dos anos 2000. Eu venho, texto após texto, explicando em números e trends que viralizam como esse contra-ataque opera. Silencioso, ele se reveste de uma tendência elitista, como a clean girl ou old money, ou um desaparecimento de corpos antes presentes, como o das modelos plus size e mid size das últimas temporadas de desfiles internacionais.

Influencers e celebridades surgem magras nível esquálidas na velocidade de um dia para a noite. As que justificam dizem ter mudado a rotina alimentar, de exercícios ou até culpam o estresse. Às vezes, o contra-ataque aos avanços das pautas feministas dos últimos anos chega como um inocente vídeo mostrando celebridades jovens e magras ao som de Lana Del Rey, e enquanto toca “will you still love me when I am no longer young and beautiful”, vemos imagens do antes e depois, com fotos atuais das celebridades, envelhecidas ou com corpos normais, que demarcam a passagem do tempo. Se eu não soubesse a tradução da letra da música, talvez nunca entenderia o etarismo presente nesse conteúdo. É como se envelhecer fosse um grande crime, como se alguém estivesse gritando no fundo “como vocês deixaram chegar nesse ponto?”.

Pois, senhoras e senhores, vocês não estão preparados para o nível de problema que a geração tiktoker, com seus usuários entre 16 e 26 anos, anda postando. O que mais me surpreende é que nem é uma opinão de roda de conversa e sem risco de cancelamento, é um vídeo público, sem a menor vergonha ou desconcerto.

A essa altura você talvez saiba que aquela marca de lingeries famosa por fazer desfiles grandiosos com muitas modelos, todas desfilando da forma mais sexy com peças minúsculas e asas de anjo gigantescas, vai voltar a desfilar em 2024. Isso mesmo, a Victoria’s Secrets, após cinco anos em silêncio, disse ter ouvido e lido os comentários e irá atender o pedido de seus consumidores. O que o post que anuncia a volta do desfile explica é que seus consumidores, imagino que são as pessoas que compram lingerie, estão sentindo falta de ver o caminhar sensual de mulheres com corpos padrão, superfantasiadas enquanto andam sobre uma longa passarela, fazendo caras e bocas, repetindo trejeitos que a indústria pornográfica e o cinema dos anos 80 bem delineou, é isso mesmo produção?

Quanto mais o corpo for inatingível, melhor para a indústria dos cosméticos e pior para nossa autoestima

É isso que estamos querendo, se não você, é isso que alguns vídeos no TitkTok estão almejando. Vídeos de homens jovens dizem abertamente que querem a “inclusão só das mais bonitas e inalcançáveis do mundo”. Outro usuário dá graças a Deus que o desfile não terá pautas, e que conquistas das minorias não serão feitas nas passarelas. Alguns pedem “tragam de volta a exclusividade, não inclusividade”, e quanto mais eu leio comentários, mais assustada e em choque eu vou ficando.

Vale lembrar que em 2022 a Hulu produziu um documentário chamado “Victoria’s Secrets: Angels and Demons”, que mostra as condutas misóginas entre os líderes da marca, a hiperssexualização do corpo feminino e a política desenfreada de retoques e edições dos corpos já magros das modelos, além das ligações entre a empresa e o falecido Jeffrey Epstein, o financista acusado em 2019 de tráfico sexual de meninas menores de idade.

Passamos anos sendo expostos a imagens de mulheres que exibiam certo tipo de corpo, rosto e cabelo, certo jeito de caminhar, falar, piscar. Durante todos esses anos, quanto mais esse corpo escolhido fosse inatingível, melhor seria para a indústria dos cosmético e, de alguma forma, pior para nossa autoestima.

No último contra-ataque da beleza registrado por Susan Faludi, que aconteceu nos anos 1980, o mecanismo foi muito parecido, ela faz uma grande análise dos discursos da moda, da publicidade e da beleza e conta que “um backlash contra os direitos da mulher tem sucesso na medida em que parece não ter conotações políticas, na medida em que se mostra como tudo, menos como uma luta”. É justamente quando a ação nos leva a crer que nossas opressões são questões individuais e nos separa de entender o que estamos vivendo coletivamente.

Agora vemos a volta da magreza extrema, da hiperssexualização e da objetificação do corpo da mulher pelas marcas, celebridades e criadoras de conteúdo

Não faz muito tempo que finalmente tivemos a oportunidade de mostrar corpos reais e belezas plurais, com o surgimento das redes sociais que privilegiam a imagem ao texto, como o Instagram, em 2011. Um grande movimento ganhou força e teve lugar e vozes para acontecer. Exigimos das marcas mais realidade, contratação de casting plural e menos retoques de pós edição, para que a gente pudesse ter mais identificação na publicidade. Só que todo avanço vem seguido de inúmeros retrocessos, e agora vemos a volta da magreza extrema, a volta da hiperssexualização e da objetificação do corpo da mulher pelas marcas, celebridades e criadoras de conteúdo, e a retomada do male gaze para o corpo feminino (ou como corpos femininos construídos segundo a ótica do homem heteressexual viralizam mais dentro das redes sociais e impactam resultados de IA, procure saber).

O nosso tempo de tela aumenta e a nossa exposição a essas imagens também, prejudicando ainda mais nossa capacidade de nos relacionarmos com nossos corpos reais, ainda mais entre jovens mulheres e meninas. Enquanto muitas pessoas têm acesso ao celular, existe pouco entedimento crítico a respeito do consumo dessas imagens, pouca discussão aprofundada e mais facilidade nos dias de hoje para procedimentos invasivos ou não invasivos que surgiram nos últimos anos, alguns perigosíssimos e sendo feitos em clínicas sem nenhum registro.

Sem capacidade crítica, sem entender pautas discutidas anteriormente pelas ondas femininas e sem conhecimento da história social da beleza ou qualquer análise histórica-social dos corpos das mulheres, a geração de usuários do Tiktok parece torcer pelo retrocesso. Renato Kehl, pai da eugenia no Brasil, escreveu em 1920 que “a beleza é um ideal eugênico”, e ele dedicou toda uma parte de seu livro “A Cura da Fealdade”, de 1923, para falar sobre os benefícios da cirurgia plástica nas mulheres, sempre pensando nelas como objeto do olhar masculino. Quase cem anos depois, aqui estamos observando como homens jovens, e algumas mulheres, seguem acreditando que qualquer outro corpo que não o padrão deva ser eliminado do nosso olhar. Vou deixar a citação de Susan Bordo que, mesmo antes do surgimento do Instagram ou Tiktok, já tinha analisado que a escolha dos corpos-modelo servem para um objetivo maior:

“A cultura não apenas ensinou as mulheres a serem corpos inseguros, monitorando-se constantemente em busca de sinais de imperfeição, constantemente engajadas no ‘aprimoramento’ físico, mas também está constantemente ensinando as mulheres a como ver os corpos. Como a magreza tem sido consistentemente glamorizada visualmente, e à medida que o ideal se tornou cada vez mais magro, os corpos que há uma década eram considerados magros passaram agora a parecer carnudos” (Bordo, 2003, pg.57).

BORDO, Susan. Unbearable Weight: feminism, Western culture, and the body. University of California Press, 2003.
JARRÍN, Alvaro. A Biopolítica da Beleza. Cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil. São Paulo; Rio de Janeiro: Editora Unifesp: Editora FioCruz, 2023.
FALUDI, Susan. Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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