Coluna da Vanessa Rozan: Uma pele suave para agradar — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Uma pele suave para agradar

Como as redes sociais têm levado a mulher a ser “um animal doméstico bem delicado, curiosamente selvagem e frequentemente agradável”

10 de Abril de 2024

Já faz um tempão — se contarmos pela velocidade da internet — ou nem tanto tempo assim na vida real, que a Sandy comentou sobre nunca se postar sem filtro ou sem filtro e sem maquiagem. Na época eu lembro de ter visto, pensado um pouco a respeito e logo depois ter sido atropelada por outra enxurrada de assuntos do online. As redes sociais incentivam a pouca reflexão e muita opinião sobre tudo, como se fossemos capazes de assimilar tanta coisa ao mesmo tempo e regurgitar tudo processando ou assimilando muito pouco. Esse espaço, então, oferece um incentivo pra voltar um pouco no tempo e entender como chegamos aqui.

Hoje sabemos que muitos celulares já têm um modo pré-instalado chamado pele suave, que elimina poros e linhas de expressão. Fora os filtros todos das redes sociais e os aplicativos de edição de foto e vídeo, que inclusive instalam novas características sem que você tenha que pensar se quer aumentar ou diminuir algo, eles já, paf!, colocam lá uma boca carnuda, um olho maior, uma sobrancelha mais arqueada ou um nariz mais fino (ou tudo ao mesmo tempo).

A gente ainda não tem estudos de longo prazo para entender o que a capacidade de modificar nossa imagem virtual está causando com a nossa imagem real, mas já temos indícios no aumento de cirurgias plásticas e procedimentos invasivos (e não invasivos) e nos casos de Síndrome do Snapchat, uma dismorfia corporal gerada (ou potencializada) pelo uso de rede sociais.

Voltando no tempo e à Sandy, até pouco tempo ela e todas nós, nos víamos refletidas aqui ou lá, duas ou três vezes no dia: antes de sair de casa, ao chegar em casa e quem sabe, com pouca luz e algum álcool na cabeça, num banheiro de boate. A Sandy, que não se via na boate naquela época, tinha que lidar com a sua imagem pública bem controlada em aparições televisionadas, shows e sessões de fotos. Aparições pontuais. Nos outros dias da vida, ela podia ser a Sandy água e sabão/vida normal, sem a necessidade de entregar uma performance de figura pública. Hoje, no entanto, todo dia é dia de redes sociais.

Todo mundo que tem rede social aprendeu a fazer uma imagem virtual de si. O Instagram nos obrigou a editar até o foto do ceú. Viramos todos estetas

Pois se a gente voltar ainda mais no tempo, nem era normal se ver refletido de corpo todo, isso só aconteceu no começo do século passado e o espelho de corpo inteiro era destinado a uma pequeníssima parcela da sociedade, a burguesia. Se ver refletido, em tempos de celular, é algo que, mesmo que você nem queira, já acontece na tela preta de descanso do seu aparelho ou em uma reunião online. Além de ver nosso reflexo muito mais vezes hoje do que há 20 anos — o que já seria tema para uma pesquisa —, nos vemos refletidos e modificados. Seja porque todas as lentes têm uma distorção esperada da nossa face (o que faz com que não nos vejamos como somos realmente), seja porque podemos adicionar filtros. Há ainda os casos em que o celular já modifica a imagem automaticamente. Fora isso, todo mundo que tem uma rede social aprendeu como faz uma imagem virtual de si. O Instagram nos obrigou a editar até o foto do ceú quando surgiu lá em 2011, colocando, entre a tela da foto original e a tela de compartilhamento final, uma tela de edição com filtros pré montados. Somos todos estetas.

Tem um vídeo engraçado em que uma mulher aparece com o filtro Bold Glamour, do TikTok, no rosto e diz algo como “isso tinha que vender em farmácia” e “como eu vou me ver sem esse filtro e me achar bonita de novo?”. O tal filtro faz uma harmonização facial completa e entrega um resultado muito “real” por acompanhar os movimentos da sua face de forma mais sincronizada. Eu te convido a fazer o teste: observe suas reações como quem olha de fora; use o filtro e olhe-se refletido por um minuto. Depois, remova o filtro e observe seu rosto refletido sem nada. Aposto um dinheiro que não tenho que você vai sentir falta de alguma mudança.

Uma vez, conduzi uma roda de conversas sobre filtros e ideais de beleza em que todas as influenciadoras participantes concordaram que não dava pra postar uma imagem sem adicionar pelo menos um Paris. Você deve saber o que é, mas se caiu na terra das redes sociais agora, Paris é um filtro presente nos Stories do Instagram, que suaviza automaticamente linhas e poros, dando um efeito de blur à imagem selecionada. A maior parte das influenciadoras grandes contratam fotógrafos, stylists, videomakers, maquiadores e cabeleireiros para criar uma imagem virtual de si mesmas; algumas criadoras de conteúdo menores passam suas fotos por uma edição mínima, mexendo na luz e na saturação ou passando por um aplicativo que inclui uma aura mágica na foto final. Quem vai querer mostrar uma imagem de si não tão aprimorada?

Em seu livro “A Máquina do Caos” (Todavia, 2023), Max Fisher conta que, quando recebemos uma curtida, é ativada uma região no cérebro chamada accumbens, a mesma da dopamina. Para não correr o risco de perder esse estímulo, que está atrelado ao vício, melhor é sair editando tudo, até chegar a fotos e vídeos perfeitos. Isso garantirá que nossa versão virtual receberá likes, algo que pra muitas influenciadoras é igual à visibilidade e dinheiro e que pra todos nós, já ficou comprovado, é tão importante quanto isso. O problema é que quem edita sabe como é a versão original, mas nem sempre quem recebe a imagem editada consegue fazer esse exercício de se lembrar que aquilo não é real. Só que, de tanto ver e rever as mesmas formas, nosso cérebro se educa pra encontrar defeitos (ou traços de realidade). É como se nossos olhos estivessem treinados pra editar.

A Sandy é vítima da imagem controlada e editada de si, sua “melhor” versão, mas ela não está sozinha. Imagina se a Sandy posta uma foto de cara lavada e recebe a enxurrada de hate que a Preta Gil costuma receber quando posta foto do corpo real sem edição? O pior de tudo: você pode ter uma carreira extensa cantando, atuando, escrevendo, maquiado, não importa quantos anos de estrada você tenha ou quão boa você seja, o seu corpo e o seu rosto vão sempre ser o maior assunto. Para a sociedade, é onde está o seu maior valor.

Estamos presas na maior cilada do patriarcado, olhando umas às outras, nos observando e sendo observadas nas telas dos nossos celulares

Infelizmente uma tendência que veio bem antes das redes sociais, desde os tempos de Platão, os homens são a razão, a mente e a ordem; e as mulheres, consideradas inferiores, ficaram do lado do caos, do corpo e da emoção. Como incapazes, nos resta a preocupação com o que temos, o corpo, o rosto. Quanto mais vemos esse corpo refletido, mais ele se torna assunto dos nossos dias. E quanto mais vemos outros corpos perfeitos de outras mulheres, mais presente essa questão se torna. Estamos presas na maior cilada do patriarcado, olhando umas às outras, nos observando e sendo observadas dentro das redes sociais e nas telas dos nossos celulares.

A Susan Bordo escreveu que “a cultura não apenas ensinou as mulheres a serem corpos inseguros, que se monitoram constantemente em busca de sinais de imperfeição, empenhando-se constantemente em ‘aperfeiçoamento’ físico; também está constantemente ensinando as mulheres a ver os corpos”. Eu fico me perguntando se teremos saída ou se estaremos um tanto Sandys em maior ou menor grau. Somos assim, como Nietzsche definiu, “um animal doméstico bem delicado, curiosamente selvagem e frequentemente agradável”. E bota um Paris por cima pra ficarmos frequentemente ainda mais agradáveis.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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