Coluna do Fernando Luna: Hoje desejo apenas uma coisa — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Hoje desejo apenas uma coisa

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre o pior emprego do mundo, a melhor briga do país, o reality show eleitoral e o decepcionante desempenho dos EUA nas Olimpíadas

02 de Setembro de 2024

Hoje desejo apenas uma coisa, e só você pode me dar

Sylvia Plath, 1965
Antologia Profética

Enquanto isso, na sede do X, o gerente global de RH posta um anúncio desesperado no LinkedIn. Ele deseja apenas uma coisa:

Cargo: Representante legal no Brasil.

Empresa: Microblog criado como uma praça pública virtual, recentemente convertido numa praça de guerra cultural.

Sobre a vaga: Sonha em defender a liberdade de expressar discursos de ódio, espalhar fake news e abrigar redes de pedofilia? Esse é seu lugar.

Responsabilidades e atribuições: Combater o Lorde Sith, enfrentar o Voldemort. Ou seja, ignorar ordens judiciais e fazer pose de perseguido.

Requisitos e qualificações: Fundamental o desapego à condição de réu primário. Desejável ter bons contatos na área de direito criminal e vocação pra bucha de canhão.

Habilidades e competências: Liderança e gestão de equipe são dispensáveis, pois todos os funcionários da filial brasileira já foram demitidos.

Benefícios: Oferecemos o benefício da dúvida, revisto após três meses de experiência. Em caso de prisão por ignorar sentenças do STF, auxílio-reclusão. O bom comportamento pode ser reconhecido com eventual progressão pro regime semiaberto – somos uma empresa que acredita em meritocracia.

Diversidade e inclusão: Isso aqui não é Bluesky, seu comunista woke abortista heterofóbico maconheiro sem deus.

Localização: Devolvemos o imóvel onde ficava o escritório, então o profissional vai fazer home office permanente. Apesar do nosso CBO, Chief Billionaire Officer, ter dito que “trabalho remoto é moralmente errado” e funcionários que trabalham de casa são “desconectados da realidade”.

Remuneração: Valores tradicionais.

Data de início: Quando ficar evidente que o prejuízo financeiro por forçar a suspensão da rede ficou maior do que o ganho político entre a extrema-direita.

Informações de contato: Caso o interessado possua VPN e habeas corpus preventivo, envie seu currículo por mensagem direta pra @elonmusk.

A mão que afaga é a mesma que apedreja

Augusto dos Anjos, 1912

Pablo Marçal, Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Ricardo Nunes passaram a semana brigando.

E as boas notícias não terminam por aí: todos eles têm razão.

Fiquei orgulhoso de mim mesmo ao descobrir que, mesmo diante da polarização blá-blá-blá, ainda consigo enxergar a verdade do outro lado. Sigo capaz de, em meio a guerra de narrativas blá-blá-blá, reconhecer um juízo correto formulado do outro lado das trincheiras.

Assim, venho por meio desta afirmar a quem interessar possa que não apenas concordo com Pablo Marçal, como também tô fechado com seus ex-camaradas Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro, Carlos Bolsonaro e Ricardo Nunes.

Mas, atenção, apenas em alguns pontos bastante específicos, porém suficientes pra atestar minha tolerância política. Senão, vejamos.

Nunes declarou que Marçal é um “débil mental” e “precisa se tratar”. Capacitismo à parte, tenho que admitir que, finalmente, o prefeito tá certo.

Na mesma linha psicofóbica, Marçal se dispôs a financiar um tratamento psiquiátrico pro Carluxo, que também seria “raivoso” e “estúpido” – uma argumentação, admito, irrepreensível.

Não foi seu único minuto de sabedoria. Ele ainda falou que Jair Bolsonaro não tem palavra e é covarde – como discordar de alguém que conhece o ex-presidente muito melhor que eu?

Como uma milícia de Rio das Pedras, a famiglia retrucou em bando.

Jair resumiu: “Falta caráter ao Marçal”. Carluxo o acusou, olha só, de disseminar fake news. Já Dudu Bananinha lembrou da facção do PRTB, partido de Marçal, investigada por uma coligação suspeita com o PCC, legenda de Marcola, numa troca de carros de luxo por cocaína.

Mas os “Versos íntimos” de Augusto dos Anjos ganham um novo uso aqui.

É o próprio Marçal quem apedreja a si mesmo com mais violência, ao se apresentar como “ex-coach”. Se coach já é dureza, “ex-coach” faz “ex-BBB” parecer um doutorado em Harvard.

É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço: ou a dignidade humana se afirmará a machadadas

Torquato Neto, 1962

Agora que influenciadores viraram políticos e políticos viraram influenciadores, temos que substituir duma vez os debates eleitorais por um reality show com os candidatos.

Chega daqueles púlpitos num estúdio de tevê, com um jornalista fazendo a mediação e cronometrando os minutos. Melhor jogar todo mundo numa temporada do “BBB”, com pay-per-view subsidiado pelo fundo partidário.

(O Rio de Janeiro, sempre à frente, já colocou cinco ex-governadores na casa mais vigiada do Brasil: uma penitenciária. O atual, Cláudio Castro, foi indiciado por corrupção pela Polícia Federal.)

Se alguém ainda duvidava que o formato pergunta, resposta, réplica e tréplica não dava conta da nova dinâmica político-midiática, em que toda imagem quer ser um viral no Tik Tok, o debate na semana passada entre os candidatos à prefeitura de São Paulo encerrou a questão.

Mesmo quem mora noutra cidade, distante das idiossincrasias paulistanas, foi impactado nas redes sociais por algum corte extraído do debate do Estadão – o que, lamentavelmente, fez o bizarro Pablo Marçal rolar no seu feed como um porco na lama.

Se você escapou disso, um resumo da figura: o ex-coach combina a masculinidade frágil e agressiva do Calvo do Campari (“Falta homem nesse país” parece mais um desejo recalcado do que uma denúncia sociodemográfica) com as platitudes do ET Bilu (“Busquem conhecimento” diz mais que suas propostas de governo).

Diante disso, hoje me preparei pro segundo debate com pipoca numa mão e Dramin B6 na outra – a barafunda é mais nauseante que qualquer outra coisa.

Porém, murchou: os três candidatos melhor colocados nas pesquisas desistiram de bater palma pra neurodivergente dançar e não apareceram.

Como quem diz, pra usar as palavras de Torquato Neto, “É preciso haver algum respeito, ao menos um esboço: ou a dignidade humana se afirmará a machadadas”.

Machadadas metafóricas, sempre.

Mulher é desdobrável. Eu sou

Adélia Prado, 1976

O Clitorito e a logomarca dos jogos de Paris, que fazia da chama olímpica uma mulher de cabelo à la garçonne e batom, eram um prenúncio do protagonismo feminino – e nessa o Brasil se superou.

Três ouros, quatro mulheres: Rebeca, Bia, Duda e Ana Patrícia não precisam mais de sobrenome pra serem identificadas. E a ginasta subiu ao pódio em quatro disputas diferentes – individual geral, equipe, salto e solo. Ela é desdobrável, “Com licença poética” de Adélia Prado.

*

Tava preocupado com o futuro Snoop Dogg.

Temia um ennui infinito, talvez uma depressão como rebote mental das semanas de sassarico na França. A cerimônia de encerramento me tranquilizou.

Ele já tá com a cabeça nos jogos de Los Angeles, parte III. Ao lado de Dr. Dre, eram dois “niggaz with attitudes” cantando “The Next Episode” e promovendo um salto Biles 2 pra 2028.

*

Ainda tivesse por aí, o cientista político Samuel Huntington ampliaria seu conceito de choque de civilizações.

O corte dos discursos enfatiotados do Stade de France diretamente pra adolescência permanente do Red Hot Chilli Peppers numa praia californiana foi radical como os desencontros culturais entre ocidente e oriente.

*

Se o breaking olímpico rendeu memes e dias de discussão sobre o que aconteceu desde sua origem no Bronx até aqui, aguarde os próximos jogos.

Vem aí “flag football”, uma espécie de pique-bandeira com esteroides. Queimada e purrinha, porém, ainda não convenceram o COI.

*

Muita gente reclamando do desempenho modesto do Brasil. Aqui falta mesmo quase tudo – planejamento, investimento, estrutura –, só não falta talento.

Prêmio de consolação: os Estados Unidos também deixaram a desejar, em comparação à pequena Santa Lúcia.

Tivessem o mesmo resultado per capita da ilhota caribenha, um ouro pra cada 180 mil habitantes, os EUA voltariam pra casa com 1833 medalhas douradas, em vez dos decepcionantes quarenta ouros.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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