Coluna do Fernando Luna: Hoje não quero salvar o mundo — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Hoje não quero salvar o mundo

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre alertas da Defesa Civil, mares de Antonio Cicero, crise de abstinência de crise de abstinência, aniversário sem velinhas e o passado promissor do Brasil

17 de Fevereiro de 2025

Que bom! Hoje não quero salvar o mundo

José Gomes Ferreira, 1978
Antologia Profética

Dia sim, outro também, a Defesa Civil envia alertas a cidadãos distraídos.

Distraídos a ponto de não se darem conta de que, em pleno verão brasileiro, céu escuro às três da tarde significa toró iminente e termômetros a 40 graus recomendam beber água.

De repende, o telefone apita – mesmo que esteja no modo silencioso. A notificação pula na tela bloqueada, ilustrada por um emoji de triângulo amarelo com ponto de exclamação: “Alerta severo”.

Superada a taquicardia, o sujeito se dá conta de que o próprio suor já o informou que a cidade tá em “Calor Nível 4” ou que a tal “possibilidade de chuva forte” virou realidade há uma meia hora.

(Imagino o desalento de um morador do Jardim Pantanal, ou qualquer bairro sujeito a alagamento ou deslizamento, recebendo sempre o mesmo aviso, sem qualquer solução à vista: “Mantenha-se em local seguro”.)

Enfim, criticar é fácil – por isso mesmo, delicioso. Mas acordei propositivo e com sugestões de alertas realmente úteis:

Alerta de causa-efeito: risco de tempestades sobrenaturais pelas próximas décadas. Pare de votar em negacionistas.

Alerta de ex no bloco: abrigue-se em local protegido. Isto é, numa outra folia a dois bairros de distância, se for bloco parado, ou a cinco bairros dali em caso de cortejo.

Alerta cinematográfico: em vez de apitar, o celular pifa quando é acionado numa sessão de cinema. A brigada de incêncio obriga o folgado a ver um reality show do Discovery+.

Alerta de masculinidade frágil: emitido em caso de moto barulhenta, playlist do Kayne West, mudança do nome do Golfo do México pra Golfo da América ou repost do Nikolas Ferreira.

Alerta de spoiler: a Defesa Civil informa que não é necessário opinar sobre tudo. Baixe as armas, justiceiro digital; descansa, ombudsman da humanidade. Faça suas as palavras do poeta português José Gomes Ferreira: “Hoje não quero salvar o mundo”. O mundo agradece.

Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro do que um pássaro sem voos

Antonio Cicero, 1996

O Rio parecia inesgotável àquele adolescente que era Antonio Cicero, mas que era também qualquer um com disposição pra tomar o mundo feito Coca-Cola.

Os dias quentes do verão carioca aconteciam, e ainda acontecem, mais ou menos assim: “Primeiro a praia, depois uma estreia, depois o Baixo e, finalmente, a festa de madrugada, numa cobertura”.

Primeiro sempre a praia, Arpoador, Coqueirão ou Artigas. Às vezes não tinha estreia, mas não faltava o que fazer até a hora de ir pro Baixo – antes Baixo Leblon, depois Baixo Gávea –, até descobrir onde era a festa.

Então, segue Cicero em “Antigo Verão”, “Eis que as nuvens a cobrir a lua e o Corcovado já se dispersavam, auspiciando uma manhã de praia para um rapaz que àquela altura era o derradeiro barco para Citera”.

(Quando escreveu esses versos, Cicero lembrou da pintura “Embarque para Citera”, de Antoine Watteau. A tela daria origem a um gênero conhecido como “festas galantes”, retratando cenas de amor e prazeres – Citera é a ilha de Afrodite, deusa, claro, do amor e dos prazeres.)

Domingo à noite, o cantor e compositor paraense Arthur Nogueira foi esse barco zarpando com a plateia do Sesc Avenida Paulista pra Citera.

Num show-performance em homenagem ao poeta e amigo Cicero, ele encontrou um lugar entre a página e o palco: enquanto versos de canções ganhavam a densidade do livro, poemas escritos pra serem lidos vibravam na guitarra.

Diante do mar no telão e de Marina e Marcelo nas cadeiras – diante da imensidão da poesia e da irmã e do companheiro de Cicero –, ninguém arriscou cantar junto nem “Meu amor se você for embora/ Sabe lá o que será de mim”.

Todo mundo parecia escutar essas palavras pela primeira vez. Entre gregos e praianos, a noite terminou com duas linhas de “Guardar” projetadas na tela azul como um lembrete final: “Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro/ do que um pássaro sem voos”.

Quero é a delícia de poder sentir as coisas mais simples

Manuel Bandeira, 1944

Tava com crise de abstinência de crise de abstinência.

Depois de três semanas longe de tudo, meio desconectado do mundo e de sua atividade infinita – manhã, tarde, noite e madrugada, vinte e quatro por sete ou “always on”, como dizem os marqueteiros –, bateu saudade daquela sensação incômoda de estar perdendo alguma coisa.

Dediquei o sábado a correr em busca do tempo supostamente perdido.

Escutei podcasts em velocidade 2, li artigos salvos nos apps de revistas, baixei o DeepSeek pra dar um confere no estrago que a Small Tech tá causando na Big Tech, vasculhei jornais de olho na última patacoada do Trump, scrollei redes sociais atrás da polêmica do dia, matutei se o boné azul “O Brasil é dos brasileiros” vai substituir o boné vermelho do MST em Santa Cecília.

Resgatei livros abandonados, almocei com amigas que não via desde o ano passado, debati se é transfobia cancelar a Karla Sofia Gascón pelos tweets deletados, suei baldes no primeiro baile de carnaval do ano novo, descasquei o Abacaxi de Irará, emendei numa festa de aniversário madrugada adentro e etecetera até desmaiar na cama.

O problema do “fear of missing out” não é exatamente o “missing out” – óbvio que você tá perdendo alguma coisa, sempre tá. Especialmente afundado aí na poltrona com o celular na mão. A questão é o “fear”. Resultado: uma overdose de informação e interação.

Pra me recuperar, dediquei o domingo a fazer absolutamente nada.

Acordei só quando o sono acabou, tomei um café da manhã tão longo que só não chamei de brunch pra não ficar besta, assisti o Flamengo ser campeão como se fosse 1981 ou 2019, dormi mais um pouco, pedi uma pizza e voltei pra cama.

Um dia dedicado ao ócio-ócio – nem vem com ócio criativo numa hora dessas. Ou, em outras palavras, dedicado à “delícia das coisas mais simples”, como escreveu Manuel Bandeira, em plena maturidade de sua “Lira dos Cinquent’anos”.

Venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse

Itamar Assumpção, 1993

São Paulo fez 471 anos – ninguém soprou velinhas, pra não correr o risco de ficar no escuro com a falta de luz patrocinada pela Enel.

A força gravitacional dessa cidade obedece às leis da física. É proporcional à sua massa, quase 12 milhões de pessoas de todo canto e nação orbitando em torno da Praça da Sé. Euzinho no meio dessa aglomerada solidão.

Vim pra fazer um estágio de um mês e voltar correndo pra dar um mergulho em Ipanema. Quando fiz as contas, já tava há três décadas por aqui – sim, sou de humanas.

Se o trabalho me trouxe, o amor me fez ficar.

Como assim não existe amor em essepê? Foram três casamentos e meio do lado de cá da Dutra. O meio casamento, a bem da verdade, foi um romance no início da pandemia – como tudo na pandemia era mais intenso, dá pra defender que valeu por meio casamento.

Quando eu te encarei frente a frente, São Paulo, os novos amigos se espantavam ao descobrir que eu tinha ar condicionado em casa. Aos ouvidos paulistanos, era como esquimó com geladeira ou tuaregue com secadora de roupas: exagero de carioca calorento.

Hoje o aquecimento global chegou pra todos – exceto pros taxistas locais, que fingem ainda rodar na temperatura amena da saudosa Terra da Garoa, vidros abertos num efeito estufa sobre rodas.

Também não tinha praia quando cheguei.

Continua não tendo, apesar dos esforços das construtoras em vender beach clubs às margens do rio Pinheiros por quase 1 milhão de reais. Nada mais diferente de uma praia do que clubes fechados com piscina de onda e homens de meia-idade usando bermuda Vilebrequin.

Longe do mar, tô reformando um apartamento pra me mudar. O novo endereço fica no mesmíssimo bairro que habito há mais de vinte anos, o que pra mim significa renovar meus votos com essa cidade que adoro e não troco por nenhum balneário – entre muitos outros motivos, porque fica a apenas 40 minutos do Rio de Janeiro.

Não se fazem mais lembranças como as de antigamente

Paulo Henriques Britto, 2018

Comecei o ano onde começou o Brasil: Serra da Capivara, no sudeste do Piauí. Se o futuro do país parece incerto, o passado é promissor.

Lá estão alguns dos achados mais antigos da ocupação humana nas Américas. Milhares de pinturas rupestres e ferramentas de pedra registram os tempos pré-históricos como uma coluna social de 100 mil a 3 mil anos atrás.

(“Não se fazem mais lembranças como as de antigamente”: quantos vídeos do TikTok sobreviverão aos próximos 100 mil anos?)

Além de uma profusão de animais, as cenas mostram um tanto da vida dos primeiros Homo sapiens a circular pela região.

Se boa parte dos pesquisadores resiste a interpretar os desenhos, a simples descrição das imagens já gera confusão: aquilo é uma batalha entre grupos rivais, uma caçada, um ritual esquecido há milênios ou um flagra de sexo?

Como esses caçadores e coletores desapareceram há uns 3 mil anos sem deixar descendentes, não tem nem como recorrer à tradição oral de grupos indígenas contemporâneos pra saber o que acontecia entre os paredões de arenito espetaculares.

Espetaculares, sim. Antes de virar Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1991, a área já tinha sido elevada a Parque Nacional – e os dois reconhecimentos devem muito à obstinação da arqueóloga Niède Guidon, que do alto de seus 91 anos segue como a principal referência da região.

Desde a primeira espiada nas tocas repletas de desenhos escondidas na caatinga, nos anos 1970, ela entendeu que só seria possível preservar e estudar a região se a população local fosse beneficiada por toda essa movimentação.

Encarou os políticos e os departamentos de marketing em busca de autorizações e financiamentos pra construir estradas, levar água e luz, criar escolas e uma universidade de antropologia, hoteis, um aeroporto e dois museus incríveis.

Difícil imaginar uma pesquisa científica com impacto tão profundo numa comunidade.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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