‘A indumentária revela traços do nosso modernismo que não queremos encarar’ — Gama Revista
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‘A indumentária revela traços do nosso modernismo que não queremos encarar’

Autora do livro “O Guarda-Roupa Modernista”, Carolina Casarin conta como o vestuário da época ajuda a entender o movimento, um século depois

Manuela Stelzer 11 de Fevereiro de 2022

Recriar o guarda-roupa de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade sem ter acesso aos modelos usados pelos artistas não deve ter sido uma tarefa fácil. “Foi um tal de catar agulha no palheiro”, conta a figurinista e professora de história do vestuário e da moda Carolina Casarin. Seu livro de estreia, “O Guarda-Roupa modernista”, acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, e propõe uma análise sobre o modernismo brasileiro a partir de um ponto de vista completamente novo: o vestuário da época.

Ela conta a Gama que levantou dois grupos de documentos para fazer sua pesquisa: o primeiro, apenas dos relacionados ao modernismo e seus protagonistas; e o segundo, à moda no período. E cruzou os dois grandes grupos. A minuciosidade do processo se complexifica quando Casarin explica que praticamente todas as peças e modelos que compunham o guarda-roupa do casal Tarsiwald – como shippou Mário de Andrade – não sobreviveram ao tempo.

É significativo que não tenhamos quase nada do vestuário que pertenceu a Tarsila do Amaral. Isso só mostra a relação que temos com a memória e com a história

Assim, precisou se apoiar em imagens, pinturas, textos e até correspondências e recibos de compras. Mas ela explica que “a partir do momento em que entendi que tudo poderia ser relevante, até um pequeno detalhe, aquilo que era um problema se tornou quase como uma vantagem na pesquisa”.

O título, muito além de uma exploração sobre como seria o guarda-roupa de Tarsila e Oswald, é também uma investigação inédita dos traços mais complexos (e contraditórios) do modernismo brasileiro. “Acho impressionante como a aparência está em consonância com outras características do movimento, que vemos nas obras, nas relações de poder, nas relações sociais”, afirma a autora na entrevista que você confere a seguir.

 Divulgação

  • G |Além do vestido de casamento da Tarsila, você comentou que a esmagadora maioria das roupas do casal não sobreviveu. Como foi fazer a pesquisa sem elas?

    Carolina Casarin |

    O guarda-roupa modernista não existia como um acervo, um lugar em que eu pudesse ir e pesquisar um recorte pronto de documentos. Grande parte da minha pesquisa foi justamente levantar o que seria esse guarda-roupa modernista. Mas no fundo, a pesquisa sobre indumentária é sempre dada nessa chave do cruzamento das fontes, no ponto de intersecção entre os documentos, então mesmo que existissem muitas roupas da Tarsila e do Oswald, a busca por outro tipo de documentação que enriquecesse a análise seria inevitável. E no momento em que abri o campo da pesquisa, quando entendi que tudo poderia ser relevante para o guarda-roupa modernista, até um pequeno detalhe, aquilo que era um problema se tornou quase como uma vantagem na pesquisa. Fui atrás de tudo, porque tudo passou a ser um indício, uma pista, um signo. E não são só as roupas, ou só as fotografias, ou só as pinturas, os desenhos, as caricaturas – são as referências às roupas nas cartas, as menções em uma determinada obra literária, numa crônica de jornal, numa correspondência, ou também os recibos da mansion Poiret, ou da alfaiataria Sulka. Os recibos foram uma fonte importantíssima para minha pesquisa, porque eles têm os valores, a data de compra, os nomes das roupas compradas. Foi um escopo muito amplo das fontes.

  • G |O Brasil ainda não enxerga a moda e as roupas como um elemento de pesquisa valioso?

    CC |

    O fato de quase nenhuma peça ter sobrevivido é muito louco, porque era notória a atenção que a Tarsila dava às roupas, e ela é uma figura importante da nossa cultura. É muito significativo que não tenhamos quase nada do vestuário que pertenceu a ela. Isso só mostra a relação que temos com a memória e com a história, e também com a valorização que damos para a roupa como um objeto histórico e relevante para a nossa cultura. Mas não podemos dizer que não temos acervo de indumentária no Brasil. A ideia que se tem de que não temos acervo faz parte justamente da nossa desvalorização do vestuário e da moda como um objeto histórico importante. Por exemplo, o Museu do Ipiranga tem um acervo maravilhoso de indumentária, com roupas do início do século 19. O Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, também tem um acervo importante, com roupas que vão desde o século 19 até as peças que a mulher e a filha do Geisel doaram – só esse recorte já é uma pesquisa pronta. Acervo nós temos, mas a roupa é um objeto de difícil conservação, é preciso investimento em pesquisa, dinheiro para conservá-la, e aí já começam os problemas que temos com o nosso próprio patrimônio e com a nossa memória. De fato, temos pouca consciência. Já há uma consolidação, nas últimas décadas, do campo acadêmico sobre o vestuário e a moda no Brasil. É um movimento em curso, ainda que tenhamos muito trabalho pela frente. Não conhecemos o acervo de indumentária porque não existe um museu nacional da moda no Brasil, falta esse espaço.

  • G |De que maneira a roupa comunica?

    CC |

    De diversas formas. É importante estabelecer que a roupa, assim como a linguagem, possui duas camadas. A primeira é a camada do coletivo, que são as regras do vestir, as quais obedecemos sem nem se dar conta, assim como falamos uma gramática sem nem nos darmos conta do que estamos falando. Existe essa dimensão coletiva do vestuário, a que todos obedecem. E ao mesmo tempo existe a dimensão individual da roupa, que é como nos vestimos, como materializamos no nosso corpo essa regra da indumentária a que estamos todos submetidos. A partir disso, a roupa fala da nossa classe social, idade, opção de gênero, país onde moramos, nossa religião, e fala da maneira como nos relacionamos com a regra da indumentária, se somos ousados como o Oswald foi muitas vezes, ou se estamos de acordo com a regra, como era o estilo da Tarsila, apesar da sua aparência extravagante. A roupa comunica muitas marcas coletivas, mas também comunica os traços individuais, de personalidade e subjetividade dos indivíduos.

  • G |O casal Oswald e Tarsila buscou a indumentária como uma maneira de se expressar, isso foi algo pensado? Dá para dizer que foi, de certa forma, uma extensão de suas obras?

    Carolina Casarin |

    Acho que eles pensavam, sim, na maneira como se vestiam, era um investimento na aparência, na roupa como mais uma camada estética que eles estavam construindo, e que fazia parte do projeto do modernismo brasileiro. Mas houve ocasiões em que esse investimento na aparência foi mais evidente, mais notório, do que outras. Por exemplo as ocasiões de desempenho público, como o vernissage da Tarsila, quando ela usa o vestido xadrez, Écossais, em 1926, ou o casamento, que tem um mega investimento na aparência dela. Infelizmente, não conheço nenhuma foto do casamento deles, mas foi uma situação em que eles investiram deliberada e conscientemente na roupa como uma forma de comunicação, de afirmação, e uma maneira de projeção de uma figura artística moderna. O vernissage em 1926, aliás, foi inteiramente planejado, pensado pelo casal. O lugar, as molduras, a fotógrafa, que foi a Thérèse Bonney. E claro, a roupa também, ainda mais quando olhamos para o verso do Oswald, o Caipirinha Vestida por Poiret, e a relação desse verso com a estética Pau-Brasil, os quadros que a Tarsila expunha naquele momento.

  • G |Por que o casal escolheu Paul Poiret como costureiro?

    CC |

    Algumas razões. Primeiro, um dado que não tem como comprovar, mas é forte, é que quando o Oswald vai à Europa pela primeira vez, em 1912, foi o auge do Poiret. Ele é tido como um dos libertadores  do espartilho da mulher, propôs vestidos mais afastados do corpo, cores contrastantes. Ele tinha uma grande coleção de arte moderna. Foi um cara muito importante também como colecionador, apreciador e incentivador de arte moderna. Outro elemento foi o exotismo. O Poiret é também conhecido por ter assimilado na estética da alta costura dos anos 10 elementos chamados de exóticos pelos europeus, como plumas, modelagens mais amplas, que lembram formas do vestuário oriental, bordados, etc. O gosto da Tarsila e do Oswald por uma aparência exuberante, que gostava de ostentar poder na aparência pode ter sido outro motivo para que eles procurassem o Poiret.

  • G |Que mensagem o guarda-roupa de Tarsiwald queria passar?

    CC |

    Uma mensagem muito importante era a afirmação dos seus lugares de artistas por meio do guarda-roupa. A alta-costura, e não só ela, mas o consumo das roupas de luxo contribuiu para que a Tarsila e o Oswald afirmassem seus lugares naquele momento. A Tarsila especialmente, porque o Oswald tinha um estilo mais dinâmico, percebemos vários Oswalds, um pouco diferente da Tarsila, que tinha um estilo menos variado. Naquele contexto do debate em torno da arte moderna, inclusive do que seria uma arte moderna brasileira, em que havia toda uma afirmação da projeção do gosto brasileiro, o fato da Tarsila usar roupas de luxo certamente ajudava no processo de afirmação da arte brasileira que ela fazia. Existe essa mensagem da roupa contribuir para construir um lugar de respeito para a Tarsila naquele momento. Acho que eles usaram os objetos, o consumo, para construir esse lugar de respeito do senso estético.

A alta-costura, e não só ela, mas o consumo das roupas de luxo, contribuiu para que a Tarsila e o Oswald afirmassem seus lugares

  • G |Qual o segredo que a indumentária dos dois queria revelar sobre o modernismo brasileiro?

    Carolina Casarin |

    Acho que o segredo que acaba sendo revelado era um mistério até para eles. Acho que o fato deles usarem o Poiret acaba revelando um jeito brasileiro de ser moderno, que não deixa de ser também conservador. O costureiro que o casal escolheu para legitimar esse lugar de respeito, no quadro da alta costura francesa, já era um costureiro um tanto quanto antiquado, até conservador, se pensarmos que ele era refratário às mudanças da modernidade propostas por outras costureiras, como Channel, Lanvin e até Jean Patou.

  • G |Contraditório usar um costureiro conservador naquele momento, não?

    CC |

    Mas o modernismo brasileiro é contraditório. E é maravilhoso que seja assim, porque as contradições só enriquecem. Não espero do mundo coerência [risos], acho um moralismo acusarmos uma pessoa de contraditória, porque a história é feita de contradições. É preciso reconhecer e aceitar que o modernismo brasileiro teve um jeito às vezes passadista de ser moderno, um jeito conservador de ser moderno, e até antiquado de ser moderno. Foi o nosso jeito de ser moderno, mas isso não desvaloriza e não esvazia o lado moderno do nosso modernismo. Tarsila e Oswald tinham essa consciência muito aguçada, moderna e vanguardista do uso dos seus corpos na performance artística, por exemplo. Justamente por isso, você imagina que eles teriam um vestuário arrojado. E como vemos nas imagens e pinturas, não era o caso.

  • G |E sem essas roupas arrojadas, como esse guarda-roupa poderia ser uma projeção da arte deles?

    CC |

    É para você ver o quão conservador era o nosso contexto onde ocorreu o modernismo nos anos 20. Uma coisa é a Tarsila e o Oswald dos anos 20, vivendo ali, naquele momento. Outra coisa é o que foi feito dessa herança cultural, o que foi feito das obras, das fotografias, das imagens que eles ajudaram a projetar. E o fato é que a historiografia e a crítica sobre o modernismo brasileiro sempre leram muito mal a aparência do casal. No seguinte sentido: o Poiret era colocado pelos nossos críticos e historiadores do modernismo como se fosse um costureiro da moda mais avançada, coisa que ele não era mais naquele momento. Ele tinha sido, mas não era mais, depois da Primeira Guerra Mundial. O sociólogo Sergio Miceli analisa os quadros do Léger, professor da Tarsila, e diz que é uma modernidade que atende a um gosto moderno, mas não muito moderno. Ou seja, da mesma maneira que no campo das artes visuais eles estavam consumindo uma arte que já não era tão assim uma arte moderna, no vestuário também. O guarda-roupa modernista revela e demonstra traços do nosso modernismo que às vezes não queremos encarar, ou não queremos ver, e acho impressionante como a aparência está em consonância com outras características do modernismo brasileiro que vemos nas obras, nas relações de poder, nas relações sociais.

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