Winnie Bueno
Das alianças performativas
Não é possível aceitar aliados que nem ao menos reconhecem que suas práticas cotidianas apenas contribuem para a manutenção do racismo
Já tem um tempo que comecei a desconfiar de quem muito constantemente se afirma como aliado da luta contra o racismo. Veja, eu não desconfio da existência de alianças, elas precisam existir. Se a gente compreende que o racismo é uma estrutura, o desmantelamento dessa estrutura perpassa por estratégias que demandam alianças. O problema é que, no geral, aqueles e aquelas que estão preocupados em constantemente afirmar a si mesmos como aliados da luta antirracista o fazem com preocupações que passam bastante longe do efetivo combate ao racismo. Especialmente quando estes aliados são pessoas jurídicas, as alianças não passam de mera ilusão ou performance.
Escrevo essa coluna tomada por uma já antiga desconfiança dos autodeclarados aliados brancos que com alguma frequência repetem as mesmas práticas de manutenção da supremacia branca e, logo após, emitem notas de remorsos falseados por erros injustificáveis. Como, por exemplo, após tantos anos de estudos e críticas sobre as narrativas romanceadas a respeito da escravização de negros e negras no Brasil, ser aceitável um livro infantil que cristaliza a ideia de que havia alguma possibilidade de docilidade na experiência da escravização. Uma ode à la “Casa Grande e Senzala” para crianças.
Como considerar aceitável um livro infantil que cristaliza a ideia de que havia alguma possibilidade de docilidade na experiência da escravização?
No pano de fundo dessa produção estão aos montes os autoproclamados aliados. A editora aliada, o escritor aliado, a dona da editora aliada e todos eles, aliados não sabemos bem do que, cumprindo o papel de ser um exemplo bastante concreto do tipo de aliança que não presta para o combate ao racismo. Alianças que servem apenas para que os próprios se sintam confortáveis na manutenção da supremacia branca, alianças que apenas são mencionadas como forma de refutar as críticas que recebem. Um teatrinho muito bem feito onde, a cada vez em que se aponta de forma crítica o discurso racista promovido por estes supostos aliados, somos advertidos em alto e bom som: não a critique, ela é uma aliada.
Aliada do quê?
Aliada de quem?
Do que é feita essa aliança? De uma retórica autocentrada e migalhas cedidas no falseamento de uma representatividade frágil? De um discurso de quem “dá espaço aos negros”, como se estes não fossem capazes de construir seus próprios espaços? De um paternalismo histórico e de uma ideia de gratidão eterna aos senhores de engenho da contemporaneidade.
Não é possível aceitar aliados que nem ao menos reconhecem que suas práticas cotidianas apenas contribuem para a manutenção do racismo. A reivindicação do lugar de aliado depende de uma vontade de agir real, concreta, que pouco tem a ver com a repetição incessante de práticas e discursos que mantém a naturalização e a normalidade do racismo como sistema de dominação.
É hora de cessar com o teatro de ilusões das performances de aliança. Se a sua aliança não dá conta de perceber problemas evidentes, ela não é aliança, ela é manutenção do status quo.
Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras
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