Místicas e politizadas: nova geração de astrólogas — Gama Revista
Fotos: Acervo pessoal/Luana Freitas

Místicas e politizadas

Uma nova geração de astrólogas foge da positividade tóxica para trazer um olhar mais antenados com discussões de classe, raça e gênero

Betina Neves 31 de Agosto de 2021

É inegável que a astrologia vive um boom. Impulsionada principalmente pelo interesse da geração millennial, os planetas e os signos ganharam espaço nas redes sociais e em inúmeras ferramentas digitais voltadas a elaborar mapas astrais e fornecer informações sobre trânsitos diários. Astrólogos e simpatizantes se tornaram influenciadores digitais e o papo astrológico passou a permear reuniões de trabalho, protagonizar memes e virar tema de campanhas publicitárias.

Para além do modismo, uma nova geração de astrólogas (sim, a grande maioria são mulheres) tem se voltado para desconstruir o estereótipo “good vibes” do meio (que muitas vezes pode cair em positividade tóxica) para trazer uma visão mais ligada às discussões coletivas atuais. Elas se debruçam sobre a prática criada pelos babilônios há quase 4 mil anos, dedicadas a atualizar conceitos e criar uma linguagem mais inclusiva, acessível e consciente. Conheça algumas delas abaixo.

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    Acervo pessoal

    “Dá para falar de astrologia de um jeito pragmático, crítico e ‘zoeiro’”

    Tatiane Lisbon, A Papisa

    Tatiane Lisbon, de 29 anos, é um dos rostos mais conhecidos da nova geração de astrólogas que marcam presença nas redes sociais – e uma das primeiras mulheres negras a se destacar no meio. Desde 2015, quando criou sua página “A Papisa” (cujo nome é referência a uma carta do tarô), já atendeu algumas milhares de pessoas, foi capa da revista Glamour e fez parcerias com marcas como Westwing e Nestlé.

    “Me inseri nesse mundo de forma autodidata, desde os 11 anos já pegava livros de tarô e wicca para estudar”, conta ela, que mora na região de Pirituba, em São Paulo (SP), e também oferece consultas com cartas de oráculo e numerologia.

    Lisbon, que hoje tem dois assistentes para dar conta da organização da agenda e da empresa, faz garimpagens caprichadas de memes nas redes sociais para ajudar a traduzir o astral do momento. Entre as postagens, ela não hesita em comentar o momento político, tenta quebrar preconceitos dentro da própria astrologia e divide um pouco do seu lado musical (ela também é DJ e faz parte do @bandidacoletivo, que reforça a resistência feminina na música eletrônica).

    “Nunca me encaixei nessa bolha ‘gratiluz’. Gosto de falar de astrologia de um jeito pragmático, crítico e ‘zoeiro’, com um apelo mais popular”, conta. Ela afirma que a astrologia é, para ela, um “calendário de experiências humanas”. “Eu faço a tradução de uma série de símbolos para que a pessoa use as informações do mapa de maneira emancipatória. Não trago respostas prontas.”

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    Luana Freitas

    “Há pouquíssimas referências que quebram as visões enrijecidas de gênero na astrologia”

    Lu Lentz, do Meio da Terra

    Lu Lentz, de 30 anos, conta que questionava com frequência seu primeiro professor de astrologia. A catarinense, que hoje se entende como não-binária, percebeu ali que a experiência de muitas pessoas não estava sendo contemplada. “Ele trazia uma visão machista e enrijecida em relação a gênero, muito presa à coisa do pai e da mãe, do homem e da mulher. Fui vendo que existiam pouquíssimas referências que quebravam isso na astrologia”, conta.

    Lentz se envolveu então com grupo de estudos formado majoritariamente por pessoas LGBTQI+ e passou a criar os próprios conceitos para tentar atualizar a linguagem astrológica. “Não dá para levar ao pé da letra algo que foi escrito há milhares de anos atrás. Tem livros que falam, por exemplo, de uma casa do mapa astral relativa a posses e terras, o que não faz o menor sentido hoje. Para manter a astrologia viva, ela precisa abarcar as discussões atuais.”

    Formada em letras – e com um livro de poemas recém-publicado –, Lentz mistura as paixões em textos reflexivos sobre a vida e os trânsitos astrológicos em seu perfil no Instagram, com 50 mil seguidores. Ela trabalha em conjunto com a esposa, Meliny Bevacqua, com quem dá aulas online com temas como “sagrado trans” e “astrologia pós-binária”. “Cada astrólogo traz sua visão de mundo. Quero escrever meu próprio livro um dia.”

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    Acervo pessoal

    “Não tem como olhar o mapa de alguém sem levar em conta as estruturas sociais”

    Kyalene Mesquita, do Instituto Solare

    Quando Kyalene Mesquita, de 23 anos, abriu os primeiros livros de astrologia, ainda na adolescência, não tinha ideia de que aquilo poderia virar um trabalho. “Não fazia parte do universo da minha quebrada. A astrologia ainda é muito elitizada”, diz. Mesquita nasceu em Palmas (TO) e foi ainda criança para a Vila Palmares, na zona periférica de Santo André (SP).

    Em 2016, recém-formada no Ensino Médio, criou uma página no Facebook para compartilhar os estudos. “Eu queria trazer a astrologia para a realidade das pessoas comuns, que estavam perto de mim. Não tem como olhar o mapa de alguém sem levar em conta as estruturas sociais.”

    Nesse processo, ela teve aulas com a astróloga veterana Anna Maria Costa Ribeiro e depois descobriu a abordagem humanista e psicológica, da qual é adepta. Hoje, ela toca junto à uma sócia o Instituo Solare, que oferece cursos que já foram frequentados por mais de 400 alunos.

    Para ela, a astrologia traz símbolos e metáforas para a vida, mas nunca de forma fatalista ou preditiva. “A astrologia é como uma linguagem, uma arte, que usa muito da imaginação para ajudar a pessoa a visualizar a própria vida sob outras óticas.” Além de astróloga, Mesquita atua como ativista antiproibicionista de drogas, colaborando, por exemplo, com o Cannabis Monitor, que congrega notícias sobre maconha no Brasil.

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    “A filosofia traz mais possibilidades de narrativas para a astrologia”

    Mayara Borgueti, do Lunática.Astro

    Quem olha o perfil da astróloga Mayara Borgueti, de 27 anos, encontra uma série de ilustrações minimalistas junto a citações de filósofos que vão de Foucault e Schopenhauer a Marco Aurélio e Baruch Espinoza. Os trânsitos dos astros são explicados ali junto a reflexões sobre a política e questões coletivas.

    “Quando comecei a escrever sobre o tema nas redes sociais, senti necessidade de buscar outros argumentos para olhar para o todo e construir minha identidade como astróloga”, conta. Para isso, recorreu à filosofia, que já estudava por interesse pessoal. “Isso trouxe mais possibilidades de narrativas para usar a astrologia para falar da sociedade. Não dá para ficar só nesse lugar da autoajuda.” Para ir ainda mais fundo, em 2020 ela iniciou uma graduação em filosofia.

    A paulistana se dedica em tempo integral à astrologia desde 2018. Formada em moda e insatisfeita com o trabalho na área, ela vinha usando ferramentas como tarô e o próprio mapa astral em seu processo de autoconhecimento. Durante uma cerimônia de ayahuasca, teve o estalo de se envolver mais profundamente com o tema, o que a levou a cursar uma formação com o astrólogo Nilton Schutz.

    Na pandemia, Borgueti conta que os atendimentos tem sido intensos em muitos níveis. O luto foi um tema constante, ainda mais depois que ela compartilhou em seu perfil sobre ter perdido o pai para a covid-19. “As pessoas chegam com muitos questionamentos sobre a vida pessoal e o mundo, com muita dificuldade de lidar com a falta de controle que a situação trouxe.”

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    Acervo pessoal

    “Não tem como desassociar a astrologia da minha realidade como mulher preta e periférica”

    Pamela Ribeiro, a Bruxa Preta

    O perfil da @bruxapreta avisa: ali se fala de astrologia “favelada”. “Desde o começo eu vi que astrologia é um meio elitizado e conservador. Eu trago uma visão mais abrangente, falando do contexto em que eu vivo. Não tem como desassociar a astrologia da minha realidade como mulher preta e periférica”, conta Pamela Ribeiro, de 28 anos, que cresceu em Carapicuíba e hoje mora em Osasco, ambas na zona metropolitana de São Paulo (SP).

    Ribeiro começou a explorar o universo esotérico ainda adolescente, e hoje oferece consultas de tarô, baralho cigano e mapa astral – só neste ano, foram quase 500 consulentes. Em sua página, que acumula 60 mil seguidores, os posts trazem críticas ao governo atual, falam de temas como a erotização do corpo da mulher negra e contestam recomendações comuns de pessoas do meio que possam soar como positividade tóxica. “Não adianta dizer para uma pessoa não branca, da favela, que se nutrir de bons sentimentos é solução para a vida. Isso só traz alívio até a página dois, porque, quando você olha pela janela, lembra da sua realidade”, diz ela em um deles.

    A astróloga também compartilha com os seguidores seu próprio processo de autoconhecimento, expondo alguns de seus sofrimentos e desafios. “Eu mostro minhas vulnerabilidades porque elas também são uma força. Gosto de humanizar essa posição de astróloga e não me colocar como uma pessoa melhor ou mais evoluída,” diz. Na leitura de mapas, ela é cuidadosa com a linguagem e com a abordagem. “A astrologia deve ser usada para nos libertar e nos emancipar, sem ferir a existência de ninguém.”

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