Coluna do Leandro Sarmatz: Notas do nosso pesadelo — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Notas do nosso pesadelo

Como chegamos nisso? O futuro vai nos ajudar a entender. Existe no Brasil uma máquina de utopias, porém todas sempre engasgando, dando pau, à espera da manutenção

07 de Junho de 2021

1

Fuçando numa rede social, encontro o perfil de um antigo colega de escola judaica. Um bully, na linguagem de hoje. Um “galo”, como se dizia na Porto Alegre de 1989. Filho (e hoje herdeiro) de um grande empresário da construção civil. Define-se como “anti-PT e contra tudo o que é comunista” na própria bio. Há na sua página uma foto particularmente curiosa. Ali está ele hoje, terno e gravata, a imagem da prosperidade, todo sorridente ao lado de um dos filhos de Bolsonaro (não consigo nunca saber ao certo qual deles; todos têm um aspecto lombrosiano de limitação intelectual e moral).

2

Hannah Arendt se tornou persona non grata da vasta, geralmente liberal e afluente comunidade judaica americana depois de ter publicado “Eichmann em Jerusalém” (Companhia das Letras, 1999). Amparada pelas pesquisas minuciosas de Raul Hilberg, um historiador que foi o primeiro a documentar a banalidade do mal nazista nos três volumes de “A Destruição dos Judeus Europeus” (Amarilys, 2016), Arendt levantou a lebre que ninguém tinha coragem de falar: muitos líderes de comunidades judaicas do Leste europeu colaboraram com os burocratas nazistas e forneceram listas com nomes de famílias inteiras que eles sabiam que iriam ser levadas aos campos de concentração.

3

Notas para o roteiro de um filme satânico: um candidato fascista à Presidência da República fazendo piada sobre o peso de quilombolas num clube judaico. A plateia, filhos e netos de imigrantes e pessoas que foram perseguidas, ri convulsivamente. Os negros, ali, são pesados em arroba. A desumanização empreendida pelos ex-desumanizados. A palavra nazista para judeus era “Ungeziefer”, besta.

4

Leio o artigo de um historiador judaico de esquerda. Ou nem é tão de esquerda. Basta não incorrer na chorumela sentimental de sempre para ser considerado, hoje, um historiador judaico de esquerda. Ele fala do “Israel imaginário” da gangue de Bolsonaro. A matriz dessa idealização de Israel foi forjada pelas igrejas neopentecostais, primeiro as americanas, depois as brasileiras. Tem a ver com a apropriação de símbolos judaicos originalmente transgressivos que se convertem, por meio de oratória picareta, em instrumentos regressivos na moral, na teologia e – claro – na política.

5

Os Weintraub e Wajgarten que pulularam nos primeiros anos do governo Bolsonaro e forneceram todo um ideário hidrófobo ao já raivoso presidente. O assessor que se dizia judeu para desculpar o gesto supremacista branco flagrado no Senado. Será preciso um dia historiar o papel simbólico do “judeu” no interior de um governo de inspiração fascista e supremacista branco.

Um sujeito com bigodinho à Hitler, roupa negra, posa com Bolsonaro. Candidato a vereador. Nelson Rodrigues faz uma falta danada

6

Uma outra foto. Um sujeito com bigodinho à Hitler, roupa negra, posa ao lado de Bolsonaro. Rio de Janeiro, 2016. O sujeito foi candidato a vereador e é ligado a outro filho do presidente, aquele com ar de birutinha conspiratório e afetivamente quebrado, o incel paradigmático. Nelson Rodrigues faz uma falta danada nessas horas.

7

Um amigo está pesquisando para escrever um artigo sobre Paul Celan, o poeta que sobreviveu a Auschwitz e foi uma das grandes vozes da lírica alemã no século 20, e me escreve para saber se eu tinha algum texto em que Primo Levi fala do poeta. Achei uma referência num dos volumes da edição norte-americana das obras completas. Esses dois sobreviventes, dois artistas do trauma, nunca perdoaram seus algozes. Metabolizaram todo o horror em literatura. Suicidaram-se, Celan em 1970, Levi em 1987.

A experiência do horror é duradoura e deixa marcas.

8

Paulo Gustavo, uma das vítimas da covid-19, e que, como dizem com justa indignação seus amigos, morreu de uma doença para a qual já existe vacina, deve boa parte de sua carreira na comédia à figura da mãe. Nisso, se aproximou de Woody Allen e do Philip Roth de Complexo de Portnoy, mas, brasileiríssimo (e mais ainda: niteroiense), insuflou um ar de chanchada ao clássico enredo psicanalítico. Freud com Oscarito, uma fórmula tipicamente nacional.

9

É curioso que Bolsonaro e seus asseclas invoquem com tanto ardor a figura da família tradicional e heteronormativa. Porque tem um caroço nesse angu. Todas as personagens femininas nesse governo (e nessa família) são meramente acessórias e secundárias. Estamos diante de um clã masculino, com diversões “masculinas” (o churrasco, o estande de tiro, a bravata sobre potência sexual), com camaradagem entre machos, aquele roçar de espadas reluzentes. Nova Esparta ou Caserna das Loucas, eles nunca conseguem se decidir.

10

Como chegamos nisso? O futuro vai nos ajudar a entender. Existe no Brasil uma máquina de utopias – o Brasil é a própria máquina, aliás –, porém todas sempre engasgando, dando pau, quebrando, à espera da manutenção. Tem sido assim desde Nabuco, desde Darcy Ribeiro, desde Viveiro de Castro, desde a ideia lulista gestada nas greves do ABC paulista e levada em parte aos dois governos de Luís Inácio. É o que basta para não nos afogarmos na própria bile ou então meramente apagar a luz, bater a porta e nunca mais voltar.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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