Coluna do Leandro Sarmatz: Feira, livro e ar livre — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Feira, livro e ar livre

Na Feira do Livro, você topava com pessoas que não via desde muito antes da pandemia, comprava achados literários e ainda se reconectava com a cidade

15 de Junho de 2022

São Paulo tem dessas. A oferta de bens culturais costuma ser impressionante. De tédio, definitivamente, não se morre por aqui. E agora que todos estão voltando à vida com força e alguma voracidade, é possível arranjar programação para cada dia da semana. Não é pouca coisa. Ainda mais para muitos de nós, que viemos de outros lugares e que ansiávamos por essa movida paulistana lá de nossos recantos de norte a sul.

Mas faltava – sempre faltou, na verdade – algo. Venho de uma cidade que há quase setenta anos tem uma feira do livro em espaço público, gratuito e ao ar livre. Em Porto Alegre a Feira do Livro, que tradicionalmente acontece entre outubro e novembro, na Praça da Alfândega, em pleno Centro, é uma das glórias locais. A cidade em peso comparece entre as bancas de livros, sob jacarandás, e você encontra todo mundo – da professora do segundo ano primário à namorada da faculdade, do escritor de quem um dia você comentou alguma coisa pouco positiva sobre seu livro ao vizinho que você jurava que tinha morrido em 1996.

Saí dali com uma felicidade muito rara. A alegria de alguém que estava entre outros tantos iguais, os leitores

Nunca entendi por que São Paulo, que tem a Bienal do Livro, não poderia também fazer também um evento ao ar livre, num ponto mais próximo do Centro, sob o sol (ou a chuva, ai de nós!) e com aquele espírito adoravelmente provinciano que marca as feiras de livros em espaços abertos. E não é que fizeram? Prestando tributo à feira de Porto Alegre, a Feira do Livro promovida pela revista Quatro Cinco Um, entre quarta e domingo da última semana, foi nada menos que sensacional. Uma promessa para o futuro da leitura e dos bons encontros.

Numa área livre que serve originalmente como estacionamento do Estádio do Pacaembu, a Feira do Livro reuniu mais de uma centena de editoras e livrarias e recebeu 45 convidados do Brasil e do exterior. Com uma tenda generosa para acolher os debates, e as barracas brancas e pontudas em volta vendendo livros, o evento foi uma mistura da feira de Porto Alegre com a Flip, de Paraty. É essa a categoria. Nos dois primeiros dias o frio e a umidade de São Paulo deram uma castigada geral. Mas com o tempo mais firme no sábado e no domingo, a festa foi completa. Você topava com pessoas que não via desde muito antes da pandemia, comprava achados literários maravilhosos que nenhum algoritmo seria capaz de encontrar para você e ainda se reconectava com a cidade – às vezes tão dura e recentemente tão castigada pela pandemia e pelo governo atual do país.

Eu, que por razões profissionais, bati ponto todos os dias, senti que São Paulo ficava ainda mais excitante. Agora é torcer para que o evento faça parte do calendário anual da cidade. Claro que vai. Deu certo demais. No sábado à noite, quando centenas de pessoas aplaudiram de pé o final da conversa entre os escritores Jeferson Tenório e José Falero – dois ficcionistas que situaram seus romances em, veja só, Porto Alegre –, saí dali com uma felicidade muito rara. A alegria de alguém que estava entre outros tantos iguais, os leitores.

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Foi a apenas a primeira edição, mas é claro que a cada ano (como a própria feira de Porto Alegre ou a Flip) a coisa tende a se aprimorar. Num evento que, embora numa região central, não está muito perto numa distância a pé de cafés e restaurantes, seria bom ampliar a oferta de comidas e bebidas. E tornar tudo mais simples, mais rápido e com preços mais – digamos – ecumênicos. Porque este é também um evento social, e é sempre bom tomar um cafezinho ou uma cervejinha entre o passeio pelas bancas de livros. E também forrar o estômago para a bateção de perna.

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Os olhos dizem muito, sabemos, mas não me peça para reconhecer alguém que eu não encontro há anos apenas da metade do nariz para cima. A quantidade de gente conhecida que eu ignorei sem querer ou não consegui reconhecer antes que tirassem a máscara não é pouca coisa. Na quinta, um querido jornalista e escritor, um sujeito que sempre admirei e que depois se tornou meu generoso conhecido, acenou para mim durante alguns segundos aflitivos. Só o reconheci quando, num gesto de delicadeza, ele baixou um pouquinho a máscara. Pimba! Nos abraçamos e cevamos a velha admiração.

Parece cada vez mais difícil, e não o contrário, lidar com os rostos cobertos depois de mais de dois anos nessa situação

Há uma doença, a prosopagnosia, em que a pessoa não consegue reconhecer os rostos de conhecidos – embora continue lembrando dos nomes e outros dados individuais. Uma aflição como poucas, que já inspirou livros e filmes. Sem querer forçar a barra com uma condição muito delicada e rara, é possível que muitos de nós estejamos experimentando algo parecido em relação aos rostos mascarados na era da covid. Para mim parece cada vez mais difícil, e não o contrário, lidar com os rostos cobertos depois de mais de dois anos nessa situação. Pensei que a certa altura iria me habituar ou, melhor ainda, desenvolver uma habilidade, uma bossa, pra transpor a máscara e reconhecer quem está por trás dela. Não é o que tem acontecido.

Que na próxima edição da Feira do Livro, e em todas as sucessivas edições nas próximas décadas, estejamos despidos das máscaras – livres e ao ar livre.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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