Fernando Luna
Deus joga truco
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre o cancelamento do cristianismo, a metafísica da Marie Kondo, os livros em combustão e o canto de morte dos índios
“DEUS ABRE OS OLHOS TODA MANHÃ/ E COMEÇA A BRINCAR COM A HUMANIDADE”
Claufe Rodrigues, 2000
Antologia Profética
Deus não joga dados, Deus joga truco. Pelo menos no Brasil.
Quando o cidadão começa a relaxar, crente que tudo vai se ajeitar e a próxima rodada existencial há de ser melhor, Ele berra na orelha do abençoado: “TRUCO!”.
Vê só. Metade da população brasileira é católica e 31%, evangélica. Ao todo, quase 170 milhões de cristãos acabam de ser trucados por alguns dos mais conhecidos representantes do Altíssimo.
A pastora e deputada federal Flordelis virou praticamente uma minissérie de crime da Netflix. É acusada de mandar matar o marido – que, antes de esposo, foi seu filho adotivo e também genro, num animado swing familiar regado a arsênico.
Na igreja, a fé move montanhas. De dinheiro. O Ministério Público investiga a movimentação de R$ 1,7 bilhão pelo padre Robson de Oliveira. Suspeita que milhões foram desviados de obras religiosas para obras mundanas, como uma casa de praia na Bahia.
Enquanto isso, os fundamentalistas da Damares assediavam uma criança de dez anos, engravidada pelo tio estuprador após quatro anos de abusos. Pecado não era a pedofilia, mas o aborto autorizado pela justiça do… Espírito Santo. Sim, Deus é zoeiro.
Essa sequência apocalíptica dá vontade de levantar da mesa e cancelar o cristianismo.
Vamos tentar outra crença monoteísta? O problema é que islamismo e judaísmo há séculos geram polarização por toda parte. Já temos polarização de sobra. Religiões politeístas não parecem uma alternativa muito prática: se cultuar um só Deus provoca tanta confusão, imagina um panteão.
Resta “O Deus Pequeno”, título do poema de Claufe Rodrigues, que nos anos 1980 dizia seus versos pelas ruas de São Sebastião do Rio de Janeiro, com o grupo de trovadores Camaleões.
Quem sabe esse minideus arteiro produz um milagre-moleque. Os céus do Planalto Central se abririam, um facho de luz sagrada desceria à Terra e uma voz trovejante perguntaria: “Jair Bolsonaro, por que vossa esposa recebeu 89 mil dinheiros do Queiroz?”. Truco!
“A VIDA SÓ É POSSÍVEL REINVENTADA”
Cecília Meireles, 1942
Azeite de dendê tá em falta na Bahia. Até negacionistas vão admitir: agora chegamos ao fundo do poço.
Já acreditei nisso outras vezes – no fundo do poço, nunca em negacionistas. E o país sempre me surpreende com novas profundezas. Mas, após cinco meses de isolamento, vale um balanço de como estamos.
A parte ruim da pandemia, sabemos, é péssima – morte, doença, desemprego. E a parte menos ruim?
A natureza, por exemplo, viu vantagem na confusão. O churrasco de morcego foi a vingança perfeita por tudo que sofreu na nossa mão desde a pré-história, quando começamos a pichar cavernas imaculadas.
O distanciamento social deixou o ar mais respirável, as águas mais limpas e as florestas mais verdes. A não ser no Brasil, onde o ar esfumaça, as águas apagam incêndios e as árvores queimam. Esse governo faz o coronavírus parecer um lactobacilo vivo.
A humanidade não tem se saído bem. Sequer uma corrente de solidariedade em busca da cura. A vacina virou uma disputa entre países. Nações mais ricas registram patentes, nações mais pobres registram candidatos a cobaia.
Se no atacado vamos mal, no varejo as coisas podem ser melhores.
Um ou outro há de ter aproveitado o recolhimento forçado para se reinventar – como sugere Cecília Meireles em “Reinvenção”, poema que descreve movimentos celestes para falar de transformação pessoal.
Tudo se move, ainda que o tempo pareça congelado e a existência, empacada. Agora mesmo, impertubável no sofá de casa enquanto olha o celular, você passeia pelo sistema solar a 107 mil quilômetros por hora.
Suspensas as distrações do dia a dia, inevitável viajar pelas paisagens interiores. Baixa uma Marie Kondo metafísica, faxinando sentimentos, amores, amizades e trabalho que não trazem alegria.
Ou, pelo menos, surge o ímpeto de botar em ordem as miudezas da vida prática. Nem isso é simples. Queria ter aproveitado o mundo em ponto morto para, sei lá, fazer um curso on line em Stanford. Tudo que consegui foi arrumar a gaveta dos talheres.
Por enquanto, a vida possível. Quem sabe na segunda onda, reinventada.
“O LIVRO TRAZ A VANTAGEM DE A GENTE PODER ESTAR SÓ E AO MESMO TEMPO ACOMPANHADO”
Mario Quintana, 1973
Este governo detesta árvore, até em forma de livro. Ou talvez seja o contrário.
Depois de tocar fogo na Amazônia e no Pantanal, cozinha uma reforma tributária a 451 graus Fahrenheit – temperatura de combustão do papel e título da distopia de Ray Bradbury, em que bombeiros às avessas queimam livros.
O bravo soldado do fogo Paulo Guedes riscou um fósforo dentro da reforma tributária. Como livros são isentos de impostos pela constituição, apelou ao cunho vernáculo do vocábulo: a proposta não trata de um imposto, mas de uma contribuição de 12%.
(Impostos podem ser gastos como a administração pública preferir. Já contribuições devem ter destinação específica. Nem vou falar em taxas. “Finnegans Wake” parece simples perto do nosso sistema tributário. )
No raciocínio sempre tortuoso do Ministro das Estantes Vazias, livros seriam um produto de elite. Ao invés de trabalhar para democratizar a leitura, investe na direção oposta, fazendo seu preço mais alto e menos acessível.
Como um país de faz com homens e artigos de luxo, seria providenciada uma cesta básica literária para abastecer o populacho. Uma espécie de lista de material da Escola de Chicago. Imagina o resultado da combinação de neoliberalismo econômico com estatismo livreiro?
Cada brasileiro teria direito a seu exemplar de “Xarab Fica”, literatice do chanceler Ernesto Araújo. Ou “É Possível! Como Transformar seus Sonhos em Realidade”, do ministro Marcos Pontes – que precisa reler a própria obra, em busca de inspiração para tirar sua pasta da inércia. Quem sabe o Bolsa Livro anima Damares Alves a retomar sua autobiografia “Jesus Sobe no Pé de Goiaba”, anunciada e lamentavelmente abandonada.
Talvez isso faça parte da cartilha do presidente contra o isolamento social. Sem a companhia de livros como “Caderno H”, em que Mario Quintana publicou seu poema “Dupla Delícia”, a quarentena fica mais solitária e continuar em casa, mais difícil.
Esse governo detesta árvore, a não ser em forma de papel-moeda. De preferência, cédulas rachadinhas.
“MEU CANTO DE MORTE,/ GUERREIROS, OUVI:/ SOU FILHO DAS SELVAS,/ NAS SELVAS CRESCI”
Gonçalves Dias, 1851
Meninos, eu vi: dois índios e um moleque branco dividindo um elevador em Ipanema.
O moleque era eu. Uns 10 anos de idade, subindo pra casa dos meus avós. Os índios eram índios à vera. Nada de Cacique de Ramos. Rostos e corpos pintados, orelhas e braços adornados. Apenas as vergonhas devidamente cobertas, como convinha.
O porteiro, mais pra Borba Gato que Dom Pedro Casaldáliga, mandou a dupla pro elevador de serviço – justamente o meio de locomoção favorito da minha timidez. Entrei mudo e saí fascinado. Só conhecia índio do Quarup no Globo Repórter e das fotos no livro de OSPB.
Talvez até soubesse repetir o trechinho mais famoso de “I-juca-pirama”. O poema de Gonçalves Dias é um monumento das letras nacionais, daqueles que não merecem ser derrubados. O maranhense, orgulhoso da origem cafuza, foi muito além da idealização do bom selvagem.
Abri a porta do apartamento 404 como se voltasse de uma expedição do Marechal Rondon. Meu avô, integrante do Serviço de Proteção aos Índios nos anos 50, desvendou o mistério: o vizinho de cima também trabalhava com os índios, isso explicava a visita.
A rigor, os visitantes não eram eles.
Ipanema, pra começar, é um nome anterior às caravelas. Significa “água ruim”, em tupi. Ainda assim, os dois estavam mais deslocados que eu na Zona Sul do Rio de Janeiro. No país inteiro é assim. O índio continua sendo tratado como uma visita inconveniente.
E agora, a pandemia. Aritana e outros 650 índios morreram. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil conta mais de 23 mil infectados em 148 povos diferentes. Se com SUS não tá fácil, imagina sem. O governo federal se esforça para fazer jus à denúncia de genocídio.
Depois de 519 anos encarando colonizadores, catequizadores, varíola, bandeirantes, Perimetral Norte, grileiros, sarampo, novela “Uga Uga”, latifundiários, madeireiros e garimpeiros, chegou a hora dos primeiros brasileiros enfrentarem seu maior desafio: Jair Bolsonaro.
Pindorama acima de tudo, Tupã acima de todos.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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