Navegar além da dor
As travessias internas e externas da cantora Assucena Assucena como artista, mulher trans, judia e baiana do sertão
Um copo de água com limão em jejum e a Shacharit (pronuncia-se “charrarit”), oração da manhã que inaugura a liturgia diária judaica, abrem o dia da cantora conquistense Assucena Assucena, vocalista e compositora do grupo As Bahias e Cozinha Mineira. Os passos seguintes da rotina que se inicia às 7h — e que termina com o Shemá, a oração noturna — são as inúmeras reuniões remotas da banda e a lapidação dos textos que começou a publicar semanalmente na revista Vogue desde o início da quarentena.
O quarto disco da banda, formada em 2012 durante as aulas da Faculdade de História da USP, estava quase pronto para ser lançado. Foi atropelado pela pandemia, assim como a rotina de Assucena, que desconfia estar trabalhando mais do que nunca — e se sentindo até mais organizada no dia a dia do isolamento.
Com esse projeto suspenso no tempo, o grupo decidiu começar um do zero. Nasceu então um EP feito do começo ao fim via videoconferência — e até ganhou um clipe gravado remotamente. “Enquanto Estamos Distantes”, lançado em maio, é um trabalho gestado na pandemia e que observa com atenção e delicadeza os prosaísmos do isolamento. É o álbum mais suave da banda, que com os três primeiros potentes trabalhos “Mulher” (2015), “Bixa” (2017) e “Tarântula” (2019), levou dois troféus no 29º Prêmio da Música Brasileira e a uma indicação ao Grammy Latino, e agora ruma em direção aos corações do mainstream.
Entre reuniões, lives e colunas, Assucena conversou com a Gama sobre essa nova fase da banda e as expedições pessoais e coletivas que a trouxeram até aqui.
A mistura do Brasil com o Marrocos
A cantora de 32 anos vem de uma família judia de origem marroquina que se estabeleceu em Vitória da Conquista, sertão da Bahia. Cresceu ouvindo a cantora Ofra Haza, uma israelense de origem iemenita, misturada com a Jovem Guarda na vitrola do pai e o cancioneiro popular do sertão: Luiz Gonzaga, Elomar Figueira Mello, Edigar Mão Branca. “Acho que se existe um traço muito forte na Bahia é a musicalidade. A gente gosta de consumir música para tudo, tudo na Bahia é motivo para a música.”
Também constituiu parte do repertório musical sob a influência dos artistas que marcaram a sua infância nos anos 1990: “Tinha uma tia que gostava muito de dançar É o Tchan. Chegava na casa da minha avó e era É o Tchan rolando, Raça Negra, Alcione”, conta.
Aos 9, Assucena descobriu Whitney Houston. Assistiu ao suspense romântico “O Guarda-Costas”, estrelado pela cantora em 1992, até furar a fita, que era alugada — mas retirada na locadora com tamanha frequência que deu até para decorar as falas. “Acho que a Whitney Houston formou grande parte da viadagem mundial”, conta a Gama. “Por aquele canto poderoso, expressivo. Mexia muito nas nossas entranhas, e num desejo por liberdade, de se lançar para fora.”
Com os ícones que hoje são indissociáveis do universo de referências das Bahias, como Gal, a maior inspiração do grupo, Caetano e Gil, ela se lembra de se conectar muito pelas trilhas na televisão. Não à toa seu nome vem também de uma novela: “Tropicaliente”, de 1994, e a personagem interpretada por Carolina Dieckmann, Açucena, que é também xará de uma flor comum no sertão.
A cantora agora dá suas espiadas nas reprises no canal Viva, que retransmite à noite o sucesso “O Clone”. “Eu amava essa novela. E é engraçado que se passa no Marrocos, traz aquele lugar da ancestralidade, da musicalidade do Oriente Médio com a qual eu sempre tive ligação.”
O afeto é político
Além de referências de sonoridade, As Bahias herdam da música brasileira, sobretudo dos anos 1970, uma tradição do olhar afinado com a pauta política. Se os tempos guardam suas semelhanças, há um adicional de expectativa que recai sobre as duas vocalistas, Assucena Assucena e Raquel Virginia. O pioneirismo das cantoras se manifesta nas marcas alcançadas pelo grupo: são as primeiras artistas trans indicadas ao Grammy Latino e também a lançar um disco sob a chancela da megagravadora Universal no Brasil.
A Raquel Virgínia é uma mulher trans e negra. Eu sou trans, judia e nordestina. A gente tem uma série de razões pelas quais precisa apresentar a nossa voz, conversar com mais gente
Desde “Tarântula”, as canções se mantêm ricas em experimentações linguísticas e sonoras, resistência política e afiadas ironias, mas abrem espaço para pegadas mais dançantes, parceria com artista “hitmaker”, refrões chiclete capazes de ampliar o público, que já é expressivo, mas ainda nichado. “A Raquel Virgínia é trans e negra. Eu sou trans, judia e nordestina. A gente tem uma série de razões pelas quais precisa apresentar a nossa voz, conversar com mais gente”, conta.
O quarto disco, “Só as Criaturas que Nunca Escreveram Cartas de Amor é que são Ridículas” deve vir nessa mesma toada: romântico, e querendo falar com o grande público. “Numa sociedade que alija pessoas trans de serem amadas, a mulher trans vir falar de amor é se colocar no terreno da afetividade possível. E reivindicar essa afetividade.” Assucena nos faz lembrar a todo momento que tão político quanto falar de política é falar das relações.
Cruzando o Cabo das Tormentas
A confecção do primeiro disco da banda, “Mulher”foi durante a transição de Assucena. Um processo que teve como alicerce os movimentos feministas, com os quais a cantora começou a tomar contato em São Paulo, na universidade, quando cursava história.
Foi também em São Paulo que começou a se aprofundar na obra do escritor português Fernando Pessoa, a cujos versos recorre para falar sobre o que é viver a transição. Em especial “Mar Português” (1934): “No poema, o mar é um obstáculo para conquistar o mundo. E Portugal sou eu. É como diz Pessoa, quem quiser passar do Cabo das Tormentas, do Cabo Bojador, não tem que passar da dor. Tem que passar além da dor”, explica Assucena, que vê na obra de Pessoa a lição de que todo ato de transformação requer muita coragem, e na maioria das vezes dói — “Tem de enfrentar as mães que choram, as noivas por casar, os filhos rezando em vão”.
A mulher trans vir falar de amor é se colocar no terreno da afetividade possível. E reivindicar essa afetividade
Sob a justificativa formal dos estudos, a mudança para o Sudeste é vista hoje por Assucena como um sincero processo de fuga. Uma irônica busca pelo anonimato que Vitória da Conquista não fornecia: “Tão contraditório, né? Imagine. Meu pai descobriu de mim eu estava no programa da Regina Casé. Eu já estava na Globo!”, lembra.
A transição não foi bem aceita por toda a família. Dentro de um núcleo familiar religioso e conservador, só mãe e irmã estiveram ao seu lado. E foi da avó a manifestação mais acolhedora: “Ela quem trouxe inclusive um argumento judaico para me convencer de que eu poderia ser eu. Foi incrível a maneira que minha avó me apresentou Deus e a espiritualidade”, explica, narrando a passagem bíblica mencionada pela avó, em que Deus repreende o profeta Samuel por priorizar a aparência em detrimento da essência. “‘Deus não quer saber o que você veste ou o batom que você usa, quer saber do seu caráter’, ela me disse”.
Hoje religiosa, Assucena teve uma relação de proximidade inconstante com o judaísmo — rompeu com a crença durante a juventude, em uma fase de profunda depressão e isolamento, até reencontrá-la em São Paulo. O retorno à comunidade teve forte influência da música: dos encontros com a cantora Fortuna e seu repertório de canções tradicionais dos judeus do Oriente Médio, Espanha e Portugal.
Assucena atua em instituições corroborando o legado da diversidade na comunidade judaica: integra a comissão LGBTQ+ da Fisesp (Federação Israelita do Estado de São Paulo) e é colaboradora do IBI (Instituto Brasil-Israel). Desempenha um papel importante na luta contra o discurso mal informado segundo o qual Jair Bolsonaro tem apoio da comunidade, o que ela considera uma crença preguiçosa.
O jeito da cantora de preservar a liturgia é compreendendo a mudança dos tempos. Sem ela, “morre a religião, a tradição, a cultura. E nós morremos também”, diz. “Esse entendimento é crucial para que a gente se ame enquanto gente”.
Atenta e forte
Mesmo diante das ameaças de uma ruptura institucional do governo federal e da adoção do que Assucena denomina “uma gramática nazista” por parte de seus membros, a paisagem que ela enxerga no país não é só de sombra. A cantora chama atenção para todas as mulheres trans eleitas em 2018 para cargos legislativos e para o papel das artes na construção de conquistas de minorias. “A cena LGBT no Brasil é tão forte, não tem nada parecido no mundo. A gente tem uma drag queen entre os artistas mais populares do Brasil, isso é muito significativo”, referindo-se a Pablo Vittar. E cita nominalmente outras drags e mulheres trans na música, na dramaturgia, na performance.
Seriam essas conquistas irrevogáveis, mesmo diante de uma guinada conservadora? Ela acredita que sim, e espera que o momento traga maturidade política para o país. “Claro que nunca quis que fosse assim. Mas já que é, vamos ter de enfrentar essa tempestade e nos formar bons marinheiros”. Essa travessia que demanda navegar além da dor.