Trecho de livro

A Fraude

Uma das maiores escritoras contemporâneas, Zadie Smith trata das desigualdades de raça e dos impactos do colonialismo em seu primeiro romance histórico

Leonardo Neiva 08 de Outubro de 2025

Nas últimas décadas, a escritora britânica Zadie Smith vem se consolidando como uma das principais vozes da literatura atual. Desde “Dentes Brancos” (Companhia das Letras, 2025) — seu romance de estreia publicado 25 anos atrás, que acaba de ganhar nova edição por aqui —, a autora de ascendência jamaicana costuma explorar questões de identidade, imigração e multirracialismo em meio às complexidades da vida nas cidades contemporâneas. Seu novo livro “A Fraude” (Companhia das Letras, 2025), no entanto, marca um rompimento ao menos com os cenários tradicionais de suas narrativaas.

Neste, que é o primeiro romance histórico da autora, a trama se desenrola entre a fumacenta Londres vitoriana e as plantações de cana-de-açúcar da Jamaica, lidando também, de certa forma, com as raízes familiares de Smith. O ponto de partida é uma história real: o caso Tichborne, disputa jurídica que fascinou muitos britânicos nas décadas de 1860 e 1870. O que estava em questão era a identidade do indivíduo que se apresentava como Sir Roger Tichborne, herdeiro de uma enorme fortuna. A defesa, por outro lado, alegava que o homem não passava de um golpista.

Inspirada em pessoas e eventos reais, a história acontece na casa do romancista William Harrison Ainsworth, onde os detalhes do julgamento logo se transformam em obsessão coletiva. Sua esposa e ex-criada, Sarah, acredita cegamente na versão do aspirante a milionário. Já a governanta e amante do escritor, Eliza Touchet, que é adepta da causa abolicionista, se torna fascinada não pelo caso em si, mas por uma de suas testemunhas: um escravo jamaicano liberto que fica inabalável ao lado do tal indivíduo, apesar das inúmeras contradições do caso.

Smith constrói, por meio dessa rede intrincada de relações, uma narrativa permeada de humanismo, que toca em alguns dos temas mais caros à escritora, como as desigualdades de raça e gênero, a sexualidade feminina, os efeitos do colonialismo e a natureza escorregadia da verdade.


Graça

Eliza Touchet achava que não havia nenhuma justificativa ou razão que se pudesse oferecer para explicar a cor vermelha, as árvores, a beleza, um globo ocular, uma cenoura, um cachorro ou qualquer outra coisa nessa terra. Como todos os seres humanos, mesmo assim se viu procurando razões. Mas qual era a justificativa que se poderia dar para o amor? É porque ela é boa. Ainda assim, persistia o fato inegável de que Frances, fosse o que fosse, também era batista. (A Competência da Alma não significava nada para a sra. Touchet. Sabia muito bem como as almas tendem a ser incompetentes, começando pela dela própria.) Por outro lado, foi essa mesma igreja batista, com todas as suas falhas, que levou Frances à causa abolicionista. E foi Frances quem, por sua vez, conseguiu transformar o que era, na sra. Touchet, uma certa desconfiança nebulosa e amorfa em relação à servidão humana em uma aversão ardente — um sentimento cuja força era igualmente inegável, embora fosse um pouco difícil distingui-lo de outros sentimentos que naquele momento ardiam dentro dela.

Não sou um Irmão e um Homem?

Anteriormente, sempre que a sra. Touchet pensara nessa frase, a achara vagamente desagradável. Nunca achara necessário — ao dar esmolas a pedintes, prostitutas e coisas piores — inventar uma relação sentimental de família entre ela e aqueles a quem distribuía caridade. Achara um pouco cômica a primeira “assembleia” de que havia participado com Frances — solene demais. Mas em poucos meses Anne Frances provocou uma revolução no coração e na mente da sra. Touchet. Juntas, ouviram os angustiantes testemunhos oculares de pastores jamaicanos, viram chicotes e algemas serem exibidos, e a sra. Touchet havia segurado um colar de ferro nas mãos.

Qual era a justificativa que se poderia dar para o amor?

Assinou petições antigas, deu início a novas, costurou, assou alimentos, e escreveu cartas para arrecadar dinheiro para os palestrantes estadunidenses de visita. Em Exeter House, em junho, ouviu um filho roubado de Daomé, preto feito ás de espadas, falando num púlpito de um modo tão eloquente quanto a própria pele. E agora, quando Eliza lia os Salmos e imaginava o servo José, ele não era mais uma abstração. Era um filho sofredor de Daomé, com vergões infeccionados e supurados nas costas.

O que era tudo isso, senão a graça? Uma graça que continuou se manifestando, se estendendo tempo afora, como se The Elms, ou os olmos, e todos aqui tivessem caído por um buraco no forno do mundo. Essa vidinha de contentamento doméstico. Um lar de mulheres e meninas à vontade umas com as outras. Aprimoramento moral, obras de caridade, oração silenciosa. Graça. E as cartas de William estavam repletas de uma bendita demora: Decidi ir para a Suíça. Dois meses depois: Estou voltando para a Itália. Graça. Uma coisa permitia e possibilitava a outra, mesmo que a lógica estivesse encoberta, misteriosa demais para se penetrar. Como um dedo. Como dois dedos que penetram. Como dois dedos penetrando uma flor. Na escuridão total, sem a luz das velas. Como se os dedos e a flor não fossem coisas distintas, mas uma só, e portanto incapazes de pecar um contra o outro. Dois dedos entrando numa floração não muito diferente daquela floração selvagem na sebe — em camadas como ela, com as mesmas dobras sobrepostas —, e no entanto milagrosamente quente e úmida, pulsante, feita de carne. Como uma língua. Como o botão de uma boca. Como outro botão, ao que parece feito para uma língua, mais abaixo.

Como dois dedos que penetram. Como dois dedos penetrando uma flor. Na escuridão total, sem a luz das velas

Nove meses

Foi só quando William voltou, pouco antes do Natal, que ela soube que os últimos nove meses tinham sido um sonho. Acordou em uma realidade diferente. O halo protetor se transformou em uma nuvem sombria. Eleanor voltou para seu cantinho no chão da cozinha. A sra. Touchet, ao próprio silêncio. Durante o dia, ela e Frances executavam uma estranha dança esquiva, conhecida somente pelas duas. Se uma entrava em um cômodo, a outra se retirava. As crianças, sempre barulhentas e metidas em todos os lugares, mantinham essa dança longe das vistas. Frances a chamava de “sra. Touchet”, e ela chamava Frances de “Annie” — como todo mundo. Caso se roçassem por acidente ao passar uma pela outra — se os dedos se tocassem ao passarem uma xícara de chá ou um prato —, as tempestades de desejo ainsworthiano explodiam entre os ouvidos dela. Quanto a William, estava ainda mais animado que o normal. A cabeça transbordando das viagens, da Itália, dos castelos góticos e dos cardeais fantasmagóricos e dos relicários contendo a articulação do polegar de João Batista e muitas outras tolices que tomou pela fé dela e presumiu que a interessariam. Algo mais forte que a inveja — bile — explodiu em Eliza enquanto ele contava essas aventuras de forma jovial. As várias fronteiras que cruzou e recruzou, desacompanhado, sem empecilhos, por capricho, quando quis! Não estava interessada no sangue de San Gennaro. O que lhe interessava era a liberdade de movimento dele. A liberdade dele.

Durante o dia, ela e Frances executavam uma estranha dança esquiva, conhecida somente pelas duas. Se uma entrava em um cômodo, a outra se retirava

Produto

  • A Fraude
  • Zadie Smith (trad. Camila von Holdefer)
  • Companhia das Letras
  • 576 páginas

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