Dira Paes: “As questões humanitárias estão agora indissociáveis da questão ambiental”
Atriz paraense lança seu primeiro filme como diretora, “Pasárgada”, premiado no Festival de Gramado
Ativista ambiental desde a adolescência, Dira Paes, 55, acredita que não é mais possível dissociar o drama das questões humanitárias no Brasil da questão ambiental. “Infelizmente, os ecochatos como eu estavam certos”, ela lamenta em entrevista a Gama. Em seu primeiro longa como diretora, “Pasárgada”, ela se debruça sobre o contrabando de animais, um dos muitos problemas ambientais que o país enfrenta, mas que ainda é pouco discutido.
Na trama, Dira interpreta a ornitóloga Irene, uma cientista especializada no estudo das aves, que realiza um mapeamento de pássaros na floresta tropical da região de Macaé, no Rio de Janeiro, usado pelo tráfico internacional para localizar espécies raras. Aos 50 anos e solitária, ela recebe a ajuda do mateiro Manuel, vivido por Humberto Carrão, em sua pesquisa, enquanto passa a questionar suas escolhas.
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Em cartaz nos cinemas, a produção autoral nasceu da experiência de isolamento da artista com a família nas montanhas do Arraial do Sana, em Macaé, durante a pandemia da covid-19. Com roteiro também assinado por Paes e direção de fotografia de seu companheiro, Pablo Baião, o longa teve sua estreia nacional no Festival de Gramado, em agosto, onde foi premiado com o Kikito de Melhor Desenho de Som.
A história contada no longa reflete a origem e a trajetória da atriz nascida na Amazônia, no estado do Pará. Os dados alarmantes sobre o contrabando de animais — que mostram que anualmente, aproximadamente 38 milhões de animais são retirados ilegalmente da natureza, um negócio que movimenta em torno de US$ 2 bilhões por ano, segundo a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) — motivaram ainda mais a artista a abordar esse tema em sua estreia como diretora.
Em conversa com a Gama, Dira Paes conta sobre a experiência desafiadora de se envolver em todas as etapas da realização de um longa-metragem, fala sobre a construção da personagem Irene, que considera seu “avesso”, expõe sua perspectiva sobre o cinema brasileiro e dá uma nova resposta a uma das perguntas do Questionário Proust respondida no ano passado.
Entendi muito cedo a dicotomia que é viver num dos países mais ricos, com águas límpidas, florestas frondosas e gente morrendo de fome
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G |Qual foi o principal desafio que você enfrentou neste seu primeiro filme como diretora?
Dira Paes |Dirigir envolve muitas ousadias. Você puxa um fôlego para o filme chegar ao seu público. E eu ainda vou ter que puxar um fôlego maior, porque nós vamos começar uma carreira internacional no filme agora. Até o filme ficar pronto, eu me desafiei a participar de todas as etapas. Finalizar um filme tem uma solidão, mas você também precisa de pessoas. Na direção, é como se você ali pudesse ser mais decisivo. A finalização exige muito, exige a perfeição. Então, um prêmio como o Kikito de Melhor Desenho de Som nos honra muito, foi muito especial. Nós realmente nos desdobramos em cima do que seria falar de pássaros, o que é o som de falar de pássaros. Foi um processo lindo, e ver o público compreender esse convite sensorial que o filme propõe foi um verdadeiro presente. Mas o maior desafio é manter um filme vivo.
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G |A Irene é uma personagem que está vivendo diferentes crises, mas em dado momento ela se mostra certa de uma coisa. “Eu sou tropical”, ela repete algumas vezes para o personagem Peter, um americano. O que é ser tropical?
DP |Quando ela fala siso, ela já se umidificou. Ela é uma mulher de meia-idade solitária, que não sabe lidar com seus afetos, um pouco endurecida pela vida e ali ela é surpreendida por um aquecimento, por um reencontro com a sua essência. Isso reacende dentro dela a diferença entre ela e aquele homem, a diferença do lugar em que eles estão. Ser tropical é você ser úmido, você estar sensível e em harmonia com a natureza. Ser mais solar. E eu acho que ali ela retoma, como se retomasse uma consciência do seu pertencimento à sua tropicalidade, à sua própria brasilidade e à sua essência.
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G |O que você aprendeu com a Irene?
Dira Paes |Aprendi muito. Foi uma antropofagia louca, porque bebi de todas as fontes, quis participar de todas as etapas. A Irene é o meu avesso. Então, sendo ela o meu avesso, fui para todos os avessos: uma tentativa de não ter o meu sorriso, de ser lunar. Do cinza estar mais presente do que o sol. Acho que isso está impresso no filme. Eu me permiti visitar esse avesso. E é muito bom visitá-los: é visitar os nossos demônios, as coisas que nos aterrorizam. Você volta mais consciente. Minha proposta era ser desafiadora, para o Pablo [Baião] também. É a câmera fixa, a cabeça que olha, a cabeça de pássaro que olha. A gente queria desafios. Aprendi muito com todos esses momentos que vivenciei até agora.
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G |O filme tem essa mensagem muito clara de denúncia do tráfico de animais. Por que, dentre todos os temas ambientais, escolheu esse?
DP |O cinema é um dos remédios do mundo, um dos lenitivos para essa realidade. Você vê, eu não queria abordar o tráfico internacional de animais silvestres. Tem quem vende, tem quem compra; portanto, precisa haver um personagem que não é brasileiro nesse filme. É um fetiche matar a natureza, colocar um pássaro em uma gaiola sozinho, um ser que ama viver acompanhado a vida inteira. Imagine você ser confinado; você chora de tristeza. Não é canto, é choro. Então, vamos parar. Eu sei que é cultural; eu sei que o Brasil ama cultuar pássaros, mas, infelizmente, nós atualizamos nosso alfabeto. Não se chama mais, quem gosta de pássaros não é passarinheiro; é gaioleiro. Essa é uma consciência que a vida e o cinema podem trazer.
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G |“Pasárgada” chega num momento em que o Brasil sofre com as queimadas. Qual é o papel do espectador neste momento?
DP |Hoje é impossível falar de um filme sem que o tema meio ambiente, clima, sustentabilidade, humanismo não estejam presentes. As questões humanitárias estão agora indissociáveis da questão ambiental. Sou ativista desde os meus 13 anos, desde o meu despertar amazônida, que eu entendi de onde eu era, entendi o que o Betinho estava falando sobre cidadania, ação contra a fome, sustentabilidade. Entendi muito cedo a dicotomia que é viver num dos países mais ricos, com águas mais límpidas, florestas mais frondosas e com gente morrendo de fome. Infelizmente, os ecochatos como eu estavam certos. Infelizmente. O fogo está presente no filme, mas não com essa proporção da queimada. Mas agora, se eu estivesse ainda finalizando o filme, eu iria inserir essa cena.
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G |Você é uma atriz com uma filmografia admirável, de filmes arriscados. Como vê o cinema brasileiro hoje, depois de um período conturbado sob a administração do ex-presidente?
DP |Isso é impressionante. Enquanto tentaram nos marginalizar, nos criminalizar, como nós fomos prósperos com dois filmes incríveis, como o filme do Karim [Aïnouz], “A Vida Invisível”, e “Bacurau”, ganhando prêmios internacionais. E assim que a gente retoma um governo democrático que nos permite ampliar, você vê onde estamos chegando com o nosso cinema. Eu vejo que os editais são fundamentais para a fomentação cultural no Brasil inteiro. Vejo que políticas voltadas para a cultura são uma economia dentro da receita federal, porque onde há cultura há índices positivos de todos os sentidos. Falta muito, claro, mas a gente, retomando os editais, a gente vai conseguir dar essa diversidade para esse Brasil inteiro poder filmar. Um filme é capaz de traduzir rapidamente, sensibilizar, orientar, contar, historizar um país. Um filme é eterno. Eu tenho muito orgulho de fazer 40 anos de carreira ano que vem. Acho que estou com 43 longas-metragens. Eu filmei no Brasil inteiro. Outro dia eu estava até brincando, eu falando que eu sou amazônida, mas eu sou amazônida do Brasil inteiro, porque o Brasil inteiro era Amazônia. Já fui gaúcha, já fui pantaneira, já fui do centro-oeste, já fui do nordeste, eu já fui do sudeste. Então, assim, eu sou Brasil.
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G |Como vê o Brasil retratado no cinema hoje?
DP |O Brasil precisa filmar o Brasil, porque as pessoas querem nos ver, estão interessadas na gente. Graças à nossa cultura, à nossa música, ao nosso cinema, às nossas artes visuais, à fotografia, tudo no Brasil tem um ícone. Música, nem se fala; já falei de teatro. O cantor de ópera do momento é paraense.
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G |No ano passado, você respondeu o nosso Questionário Proust. Na pergunta “Qual o seu estado mental atual?”, você respondeu: “Estou me perdoando das minhas frustrações.” E hoje? Qual o seu estado mental atual?
DP |Fui psicanalítica naquele momento, me libertando. Entrei nesse voo da maturidade, da liberdade. Ele acontece, é maravilhoso. Agora tudo para mim é conectado. É um voo, poderia estar quieta, mas eu dei esse voo.E agora sou responsável por isso. Em que momento que eu estou agora? Eu me perdoei das minhas frustrações. Agora, estou sedenta por novos desafios.
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G |Podemos esperar mais filmes da Dira como diretora?
DP |Podem esperar mais filmes da Dira como atriz pra agora. E como diretora… A semeadura é livre, a colheita é obrigatória, já dizia BNegão. Estou semeando ainda.