Meu Passado me Perdoa
Em autobiografia, autor de novelas Aguinaldo Silva relembra sucessos como “Roque Santeiro” e “Senhora do Destino” e conta casos suculentos dos bastidores da Globo
Polêmico, debochado, sem papas na língua… Um dos mais bem-sucedidos autores de telenovela da história do Brasil, Aguinaldo Silva é conhecido por nunca deixar de falar aquilo que pensa sobre qualquer assunto. Além, é claro, de mais de três décadas de trabalho na Globo, à frente de novelas que marcaram a TV, como “Roque Santeiro” (1985-1986), “Vale Tudo” (1988-1989), “Tieta” (1989-1990) e “Senhora do Destino” (2004-2005), entre outras. Agora, o único dramaturgo a passar pela emissora a só escrever novelas no horário nobre decidiu contar mais a fundo sua própria história no livro “Meu Passado me Perdoa: Memórias de uma vida novelesca” (Todavia, 2024).
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Repleta de personagens e passagens marcantes, que muitas vezes parecem saídos direto de uma de suas tramas para o horário das nove, a obra revisita a trajetória de um dos grandes contadores de histórias do país da telenovela. Silva narra desde a cena gay do Recife, no estado de Pernambuco onde nasceu, até os percalços do trabalho como repórter nas redações do Rio de Janeiro durante a década de 1960. Apesar do interesse constante pela escrita, o autor acabou entrando na teledramaturgia por acaso — nem às novelas costumava assistir, ele conta.
“Meu Passado me Perdoa”, é claro, também mergulha de cabeça nos bastidores da televisão brasileira, resgatando memórias que tocam em personagens anônimos desse enorme ecossistema e também em alguns dos maiores nomes do audiovisual do país. Aborda, por exemplo, a duradoura rixa entre Silva e Dias Gomes para definir o responsável pelo sucesso de “Roque Santeiro”, novela da qual ambos foram coautores.
Hoje aposentado das telas, Silva relembra essas e outras passagens impactantes de sua vida de forma direta, clara, com humor e raramente caindo no sentimentalismo. Se é verdade a frase “Audiência dá mais barato que cocaína!”, que nomeia um dos capítulos — e cujo autor ele preferiu não revelar —, Aguinaldo Silva foi certamente viciado nela e um dos que conseguiram obtê-la de forma mais bem-sucedida.
Confesso que, em relação a Roque Santeiro, sinto um certo tédio em falar sobre a polêmica, que durou anos, sobre quem veio primeiro, se o ovo, a galinha ou o assim chamado sobrecu da própria, ou seja: quem foi responsável de verdade pelo sucesso da novela, se eu, que escrevi a maior parte dela, ou se o autor original da trama. Digo apenas que a discussão em torno disso, alimentada pela mídia, desceu até o nível do insulto e da baixaria, com Dias a me chamar de veado e eu sempre a ressaltar o fato consumado segundo o qual ele “usava peruca e dentadura postiça” e, por trás disso tudo, uma enorme torcida para que algum dia nós dois nos engalfinhássemos em público.
O que, para meu alívio, acabou por não acontecer, pois a essa altura eu já escrevera uma sequência de novelas: Tieta, Pedra sobre Pedra, Fera Ferida e A Indomada, todas consideradas “rurais e de realismo mágico” e cujo sucesso afastou todas as dúvidas sobre minha relevância na história de Roque Santeiro.
Na verdade, depois de anos de trocas de insultos, tudo que eu queria era ficar em paz com Dias Gomes. Pensei até em ter uma conversa com ele, mas pessoas do nosso meio me aconselhavam a não tentar fazê-lo, pois, diziam, ele “era um homem de reações violentas” e — que exagero! — poderia aproveitar meu pedido de trégua para me dar uma surra. Até que um dia… Durante uma reunião geral de autores na TV Globo, na pausa para o café, quando fui me servir, alguém do meu lado perguntou: “Você toma com açúcar ou adoçante?”.
Eu me voltei e vi, ali do meu lado e sem mais ninguém por perto — todos os demais estavam no fundo da sala a esperar que nos engalfinhássemos —, ninguém menos que meu suposto arqui-inimigo: Alfredo Dias Gomes. Eu, sem saber qual resposta ele queria ouvir, lhe disse que preferia o adoçante. Ele me deu razão: “Faz muito bem” — disse amavelmente. E a seguir falou dos perigos do consumo excessivo de açúcar, bem como do sal, é claro. E assim ficamos pelo menos cinco minutos a conversar sobre trivialidades, como se, durante vários anos e com um ódio crescente, não tivéssemos trocado os mais pesados insultos.
Quando voltamos à mesa de reuniões, era palpável o ar de decepção dos outros roteiristas, por ver que eu e o criador de Roque Santeiro, após aqueles anos todos de baixarias mútuas, tínhamos feito as pazes.
“Pensei que você fosse arrancar a peruca dele!”, disse um dos colegas, cujo nome não cito porque ele já está morto, embora imortalizado pelo altíssimo valor de suas obras como novelista.
Eu me voltei e vi, ali do meu lado e sem mais ninguém por perto, ninguém menos que meu suposto arqui-inimigo: Alfredo Dias Gomes
Mas quanto a mim, depois daquela conversa trivial com Alfredo Dias Gomes enquanto bebericávamos um café, eu me senti aliviado por ele ter deixado a truculência de lado e, de modo tão delicado, feito as pazes comigo. E mais aliviado ainda me senti por isso quando, poucas semanas depois, ele faleceu num trágico acidente de automóvel ao sair de um restaurante em São Paulo. Hoje, Dias Gomes é, sozinho, parte importante da história da dramaturgia brasileira. E eu, graças à bondade dele ao ter me escolhido para escrever Roque Santeiro — mas, também, por tudo que fiz a seguir —, espero que essa história me conceda pelo menos uma vinheta de pé de página ou algumas linhas abaixo do texto dedicado a ele.
Porém, antes de mandar de volta para o arquivo morto minhas lembranças de Roque Santeiro, não posso deixar de contar aqui a história de “Zé Colmeia”, um personagem que a certa altura — e a pedido da mãe do figurante que o interpretava — criei na novela.
Naquela época eu cuidava dos meus cabelos — então mais negros que a asa da graúna — num salão que ficava no supermercado Carrefour, na Barra da Tijuca. Certo dia, ao entrar lá para o tratamento de praxe, vi na porta um homem enorme, quase um muro ou uma parede, que me olhou com um ar de evidente interesse. Não dei maior importância ao fato. Porém, lá dentro, a manicure, uma senhora que eventualmente me atendia, se aproximou de mim e perguntou se eu tinha visto o tal homem lá fora. Eu disse que sim, e ela explicou o que ele estava ali fazendo.
“Quando vi que o senhor tinha marcado hora aqui no salão, pedi que ele viesse de modo que pudesse conhecê-lo. É meu filho. Trabalha na sua novela, é um dos dois guardas que aparecem na delegacia, mas nunca disse uma palavra! Será que o senhor podia escrever algumas falas para ele?”
Expliquei que os guardas da delegacia eram apenas figurantes na novela e por isso não falavam. Mas, sim, eu podia mudar isso criando um personagem para o filho dela. A senhora me agradeceu muito e, quando saí do salão, dei uma última olhada no rapaz e então tive uma ideia: como ele era grandão e meio que ursino e havia um urso muito popular nos desenhos animados da época chamado Zé Colmeia, decidi lhe dar esse nome e fazê-lo falar. Não me preocupei em avisar a produção sobre essa mudança, pois, sendo o outro guarda magro e baixinho, estava claro que o guarda Zé Colmeia que falava só poderia ser o figurante grandão.
Ocupava o cargo de “diretora de elenco”, mas era muito mais que isso: era uma espécie de rainha que exercia seu mando sobre os atores da casa
Pensei que o assunto tinha se encerrado aí, porém… No dia em que as primeiras falas de Zé Colmeia seriam gravadas, a mãe do rapaz me ligou desesperada e me disse que haviam escalado um outro ator para viver o tal personagem! Pedi a ela que se acalmasse, pois eu ia verificar o que tinha acontecido e depois lhe falava… E assim o fiz.
O que descobri foi o seguinte: naquela época havia uma senhora muito poderosa na tv Globo chamada Guta Mattos, que ocupava o cargo de “diretora de elenco”, mas era muito mais que isso: era uma espécie de rainha que exercia seu mando sobre os atores da casa, os quais se sentiam na obrigação de, pelo menos uma vez por semana, ir à sala que ela ocupava no prédio do Jardim Botânico e lá beijar sua mão e acarinhá-la.
Por conta do posto que ocupava, Guta podia dar a última palavra na escolha de um ator para determinado papel. E foi o que ela fez quando descobriu que em Roque Santeiro, mais precisamente no cenário da delegacia, ia entrar mais um personagem: trocou o filho da manicure por outro.
Diga-se, a bem da verdade, que, assim como o meu Zé Colmeia, o de Guta Mattos também não era ator profissional. Era um funcionário da alfândega no aeroporto, que, segundo me contaram — mas sem me dar provas de tal coisa —, facilitava a liberação das bagagens de algumas pessoas poderosas da emissora. E como “gostava de aparecer na televisão”, era indicado pela diretora de elenco, em troca de tais favores, para interpretar, de vez em quando, pequenos personagens nas novelas.
Diante disso, e levando em conta o poderio de Guta, achei que não valia a pena criar um impasse. E então liguei de volta para a mãe do rapaz e lhe disse que a troca fora feita a pedido de uma pessoa muito poderosa na emissora, o que, para mim, encerrava a história.
Mas a verdade é que ela apenas começara: duas semanas depois, a mãe do rapaz me ligou e me pediu que fosse visitá-lo no hospital, pois ele ficara tão perturbado por ter perdido sua grande chance na novela que dera um tiro no ouvido.
“E não morreu?!”, perguntei de modo, reconheço, intempestivo.
Ao que ela me respondeu que não, porque a arma usada para a tentativa frustrada de suicídio era um revólver de calibre 22… E a bala não tinha conseguido atravessar o osso.
Às vezes, de manhã muito cedo, ao abrir a janela do meu quarto após acordar, eu via — com verdadeiro pavor — que lá do outro lado da rua Zé Colmeia já estava…
Não fui visitar Zé Colmeia no hospital, é claro. Mas, depois que saiu de lá, foi ele quem veio a mim. Quer dizer, nunca me abordou. Porém passou a me perseguir de um jeito apavorante. Descobriu onde eu morava, e também os lugares aonde ia e — com uma frequência assustadora — de vez em quando, ao chegar num deles, eu via que ele já lá estava. A essa altura, a novela na qual ele não falara já tinha acabado e eu estava a escrever outra. Num certo dia de folga, fui ao cinema num shopping e, mal tinha entrado, adivinhe quem saiu da escuridão e sentou ao meu lado?
Tive um ataque. Perguntei a Zé Colmeia o que ele queria comigo, afinal, mas não disse nada — apenas soltou uma gargalhada sinistra e depois se levantou e foi embora.
Essa situação, de puro terror para mim, continuou durante quase um ano. Às vezes, de manhã muito cedo, ao abrir a janela do meu quarto após acordar, eu via — com verdadeiro pavor — que lá do outro lado da rua Zé Colmeia já estava… E, sem dizer uma palavra ou esboçar qualquer reação, depois de se certificar de que eu o vira, ia embora.
- Meu Passado me Perdoa
- Aguinaldo Silva
- Todavia
- 400 páginas
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