A representatividade LGBT nas novelas brasileiras — Gama Revista
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Reportagem

A representatividade LGBTQIA+ nas novelas brasileiras

Gama conversou com atores e estudiosos sobre gênero, sexualidade e novelas e elencou cinco pontos importantes sobre a representatividade LGBTQIA+ nos folhetins brasileiros

Daniel Vila Nova 04 de Fevereiro de 2024

A representatividade LGBTQIA+ nas novelas brasileiras

Daniel Vila Nova 04 de Fevereiro de 2024
Imagens: Divulgação / Rede Globo

Gama conversou com atores e estudiosos sobre gênero, sexualidade e novelas e elencou cinco pontos importantes sobre a representatividade LGBTQIA+ nos folhetins brasileiros

Há cerca de 54 anos, o Brasil foi apresentado a Rodolfo Augusto, o primeiro personagem gay de uma novela brasileira. Interpretado por Ary Fontoura, Augusto era um costureiro e carnavalesco na trama de “Assim na Terra como no Céu” (1970). Longe de ser um protagonista, a sexualidade do personagem era tratada de forma velada, uma prática que se tornou padrão na indústria de folhetins nacional durante anos.

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Décadas se passaram desde então e, ao longo do tempo, o Brasil conheceu inúmeros outros personagens LGBTQIA+. O país se encantou por Ninete em “Tieta” (1989), se chocou com a morte de Rafaela e Leila em “Torre de Babel” (1998), vibrou pela casal Clara e Marina em “Em Família” (2014), acompanhou a jornada de redenção de Félix em “Amor à Vida” (2013) e a transição de gênero de Ivan em “A Força do Querer” (2017).

A representação LGBTQIA+, no entanto, nem sempre foi positiva. “No começo, eram poucos personagens LGBTQIA+. Eles não tinham muita visibilidade na trama ou, quando tinham, eram tratados como chacota”, afirma a jornalista Fernanda Nascimento, que também é doutora em Ciências Humanas na área de Estudos de Gênero pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e autora do livro “Bicha (nem tão) má – LGBTs em Novelas” (Luminária Academia, 2015).

Com o passar do tempo, personagens queer ganharam mais importância nas tramas, mas a qualidade dos debates relacionados à vivência LGBTQIA+ variavam de folhetim para folhetim. “Quando falamos que a representação melhorou, parece que é algo linear, mas na realidade não é. Por exemplo, em ‘Tieta’, de 89, o debate que era feito pela personagem Ninete, vivido pela Rogéria, era muito avançado. Mas, nos anos seguintes, você vai ter debates e representações péssimas”, diz Nascimento.

Em
Em “Tieta”, Rogéria (à direita) interpretou Ninete, seu primeiro papel em uma novela
Divulgação / Rede Globo

Para a jornalista, as novelas são fruto de nosso tempo e refletem os avanços — e retrocessos — presentes na sociedade brasileira. “Não há como falar que, a partir de tal ponto, todas as novelas passaram a representar seus personagens LGBT de forma mais diversa e positiva. Mas, quando olhamos para a primeira novela e comparamos com as novelas mais recentes, vemos uma evolução”, reitera. “O tratamento é diferente e isso fala sobre como nós, enquanto sociedade, tratamos essas questões de forma diferente.”

“O entretenimento é o local do embate social”, lembra Nascimento. “A emissora que exibe o folhetim é tensionada por um público que não é homogêneo e que também é formado por segmentos conservadores.” Para ela, parte desse público vai entender esses debates como algo que afronta seus valores e vai reagir. “Nada garante que o que a gente conquistou até agora vá se manter. É um eterno embate, um enfrentamento constante.”

Nada garante que o que a gente conquistou até agora vá se manter. É um eterno embate, um enfrentamento constante

“As novelas formatam os padrões morais e os comportamentos do debate público brasileiro”, afirma Renan Quinalha, professor de Direito da Unifesp, advogado e ativista no campo dos direitos humanos. “Por isso, é fundamental que haja uma representação da resistência e das identidades LGBTQIA+. Isso ajuda a romper estigmas e a educar as pessoas.”

Quinalha, no entanto, entende que a presença desses personagens nas tramas não pode ser a única solução. “Durante muito tempo, as novelas reproduziram estereótipos nocivos. Nem sempre a visibilidade é positiva, uma representação negativa acaba alimentando mais preconceito e descriminação.”

Nesse cenário, as contradições brasileiras relacionadas à população LGBTQIA+ se manifestam. É o que aponta Talitta Cancio, pesquisadora do CETVN (Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP), ao lembrar que, simultaneamente, a Globo exibia a novela “Terra e Paixão” (2023), que foi celebrada por suas cenas de afeto entre personagens gays, e “Vai na Fé” (2023), que teve beijos lésbicos gravados que demoraram a ser exibidos Rede Globo por medo da repercussão negativa.

As críticas a postura da emissora, que foi acusada de censura, reverteram o quadro e a Globo exibiu a cena posteriormente. “Somos um país extremamente LGBTfóbico, um dos mais violentos para quem é LGBT, mas também temos a maior Parada LGBT do mundo. Nossas contradições são refletidas em nossa ficção”, diz Cancio.

Gama conversou com estudiosos sobre gênero, sexualidade e novelas e elencou cinco pontos importantes relacionados à representatividade LGBTQIA+ ao longo da história dos folhetins brasileiros. Confira:

Diego Martins e Amaury Lorenzo interpretaram o casal Kelvin e Ramiro em
Diego Martins e Amaury Lorenzo interpretaram o casal Kelvin e Ramiro em “Terra e Paixão”
Divulgação / Rede Globo

O humor como forma de chacota

No Brasil, perpetuou-se a ideia de que personagens gays eram feitos para uma única coisa: o humor. Nas novelas, era comum que tais personas habitassem os núcleos cômicos das tramas e servissem como alívio cômico de personagens principais. Com sorte, essas figuras riam com o público, mas em muitos casos, a chacota era feita com a própria sexualidade ou identidade de gênero da personagem — trejeitos exagerados, apelidos maldosos e situações vergonhosas.

“Essa representação, em especial, ocorre com personagens homens e gays”, relata Talitta Cancio. Em muitos casos, os personagens gays eram de classes sociais mais pobres. Já as lésbicas, de acordo com Nascimento, costumam ter a representação contrária. O estereótipo “butch”, que associa mulheres lésbicas a uma performance de gênero mais masculina, acaba por minar a possibilidade do humor. “Elas são sérias porque o humor está no feminino, não no masculino”, diz Nascimento.

As novelas formatam os padrões morais e os comportamentos do debate público brasileiro

Para as duas pesquisadoras, o problema central não é um personagem LGBTQIA+ ser engraçado ou participar do núcleo de humor de uma trama. A questão é que, durante décadas, somente esse espaço foi reservado para a comunidade. “Gays, assim como héteros, podem ser engraçadíssimos”, afirma Nascimento. “O problema é quando o personagem só é motivo de riso e não ri junto com a piada”.

Como exemplo, ela usa Félix, interpretado por Mateus Solano, que apesar de ser um vilão transformado em mocinho, era um dos personagens mais engraçados de sua novela. “Ele nos mostrou que é possível nos fazer rir, mas também nos fazer refletir sobre homofobia e misoginia. Ele não era perfeito, pelo contrário, era péssimo em diversos sentidos.” A pesquisadora entende que Félix não era um estereótipo cômico, mas um personagem complexo que também era engraçado.

O vilão Félix, personagem de Mateus Solano em
O vilão Félix, personagem de Mateus Solano em “Amor à Vida”, fez tanto sucesso com o público que acabou se tornando o mocinho ao final trama
Divulgação / Rede Globo

“A história de Félix foi modificada pelo amor do público”, afirmou Mateus Solano a Gama. O personagem, que originalmente terminaria na cadeia, se tornou tão popular que teve seu final alterado durante o folhetim. “A trajetória dele foi muito rica”, diz o ator. “Ele precisou se redimir para terminar feliz para sempre.” Foi somente graças à complexidade permitida à Félix que o público se apaixonou por ele, mesmo com seus inúmeros defeitos.

A resistência em mostrar o afeto dos personagens

Nos primeiros episódios de “Babilônia” (2015), o casal lésbico formado por Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathalia Timberg) podia ser visto trocando beijos e carícias, algo comum para um casal. A reação do público, no entanto, foi negativa, o que motivou a Globo a cortar as cenas de afeto entre as duas personagens. Para além do conservadorismo e do etarismo, o corte roubou de Teresa e Estela o direito à complexidade enquanto personagens. Suas contrapartidas heterossexuais podiam explorar o campo afetivo e sexual de forma livre, elas não.

Nos últimos anos, vemos personagens com foco dramático que vão além da sexualidade ou da dissidência de gênero

“Era comum que personagens LGBTQIA+ fossem solitários e jamais se envolvessem com alguém”, relata Nascimento. “E, quando se envolviam, era de forma superficial e rápida, sempre no último episódio.” A jornalista entende que tais personagens não recebiam o espaço e o tempo necessário para desenvolverem relacionamentos amorosos significativos. “Atualmente, as tramas LGBTQIA+ estão mais qualificadas. Vemos personagens que demonstram seus afetos e suas sexualidades.”

Em contrapartida, Nascimento também enxerga como positivo o fato de que, cada vez mais, personagens queer não se resumem somente às suas sexualidades. “Isso se tornou só mais um componente daquela persona. Nos últimos anos, vemos personagens com foco dramático que vão além da sexualidade ou da dissidência de gênero.”

Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg interpretam o casal Teresa e Estela em
Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg interpretam o casal Teresa e Estela em “Babilônia”
Divulgação / Rede Globo

Se a complexificação de tramas que envolvem personagens LGBTQIA+ é vista como algo positivo, a pesquisadora Talitta Cancio ainda vê alguns entraves que dificultam a exploração de perspectivas queer na teledramaturgia brasileira. “Ainda não tivemos uma novela com protagonistas LGBTs, por exemplo. Essas decisões são tomadas por empresas que pensam na audiência em primeiro lugar e uma novela com protagonistas queer talvez não fosse bem recebida pelo público.”

Para Cancio, as tramas ficam em segundo plano por medo. “É um receio de enfrentar o conservadorismo da audiência. Se já existe medo de exibir um beijo LGBT, imagina colocar um casal LGBT para protagonizar uma novela.”

O sumiço dos personagens como solução rápida

No cinema e nas séries norte-americanas, um traço que envolve personagens LGBTQIA+ se tornou conhecido entre fãs de cultura pop, tamanha sua repetição: “Bury Your Gays”, ou “Enterre Seus Gays”, em tradução livre, se refere ao fato de que é extremamente comum que personagens queer sejam mortos durante a trama de produções hollywoodianas. É perceptível que personagens LGBTQIA+ são vistos por roteiristas como mais dispensáveis do que personagens heterossexuais e cisgêneros.

No Brasil, duas mortes em específico marcaram as novelas nacionais e repercutem até hoje: a explosão do shopping Tropical Tower que vitimou Rafaela (Silvia Pfeifer) e Leila (Christiane Torloni) chocou o país com tamanha brutalidade. “Era previsto que somente uma das personagens morresse, a outra iria sobreviver e teria um novo relacionamento. No entanto, a rejeição do público em relação ao casal foi tamanha que ambas foram mortas”, recorda Nascimento. A retirada abrupta das duas personagens da trama, no entanto, foi criticada por parte do público e da imprensa.

Para a jornalista, apesar de ter marcado a história da telenovela, o caso de “Torre de Babel” não é representativo do que ocorre no Brasil. Ao contrário dos Estados Unidos, o “Bury Your Gays” é substituído em nosso país por uma versão menos violenta, mas igualmente problemática. “Aqui, as personagens são retiradas de cena de forma discreta”, diz Nascimento. “Elas vão viajar para um lugar distante ou então tem suas tramas encurtadas ou não resolvidas. No Brasil, nós não matamos. Mandamos viajar.”

Em uma das mortes mais icônicas da TV brasileira, Rafaela e Leila, interpretadas por Silvia Pfeifer e Christiane Torloni, foram vítimas fatais de uma explosão
Em uma das mortes mais icônicas da TV brasileira, Rafaela e Leila, interpretadas por Silvia Pfeifer e Christiane Torloni, foram vítimas fatais de uma explosão
Divulgação / Rede Globo

A interpretação

Se a representação LGBTQIA+ dentro das telas é importante, a representação fora delas também é. Assim como os personagens, atores e atrizes LGBTs também sofrem preconceitos, são estigmatizados e não recebem a mesma atenção e destaque que atores héteros e cisgêneros. É cada vez mais comum que o público exija que personagens LGBTQIA+ sejam interpretados por atores e atrizes que fazem parte da comunidade.

“É sobre visibilidade”, diz a pesquisadora Talitta Cancio. “Temos atores e atrizes trans incríveis no país, não é certo que um ator cisgênero interprete um personagem trans”, ela pondera. “Se pessoas trans não são chamadas nem para interpretar personagens trans, imagina personagens cis. Os atores e atrizes trans precisam ocupar esses espaços”, afirma a jornalista Fernanda Nascimento.

Quem concorda com essa visão é o ator Silvero Pereira, que interpretou Elis Miranda, uma cantora travesti em “A Força do Querer”. “Depois de ‘A Força do Querer’, eu não aceitei mais nenhum personagem trans/travesti e inclusive deixei de fazer meus espetáculos por causa disso”, ele afirmou em entrevista ao podcast “Papo de Novela”, em 2022. “Se a gente aceita [o papel], estamos impedindo o mercado de ir em busca dessas pessoas. Hoje, nós não vivemos em um mercado que exista essa proporcionalidade.”

Se a ausência de atores trans na indústria audiovisual brasileira ainda é um problema, a jornalista Fernanda Nascimento entende que a prerrogativa é diferente quando falamos de atores homossexuais. “É óbvio que ainda há discriminação no mercado, mas esses atores ocupam os espaços. É comum ver um ator gay interpretando um personagem hétero.”

O ator Silvero Pereira interpretou Elis Miranda, uma cantora travesti em “A Força do Querer”
O ator Silvero Pereira interpretou Elis Miranda, uma cantora travesti em “A Força do Querer”

Já Renan Quinalha acredita que, em um mundo ideal, cada ator e atriz seria livre para criar a sua própria trajetória cênica. “Porém, o que vemos é um processo de exclusão muito signifcativo para atores LGBTQIA+.” Ele lembra as histórias de diversos atores que não assumiam a própria sexualidade com medo de perder oportunidades como galãs de novelas. “Entendo que, por algum tempo, ainda é importante que se mantenham essas exigências.”

A Gama, o ator Mateus Solano disse entender que essa era uma questão polêmica, mas que acredita que qualquer ator pode interpretar qualquer personagem. “Espero que um dia possamos ver todo mundo fazendo todo mundo”, ele disse.

O futuro

E qual é o futuro na representação LGBTQIA+ da novela no Brasil? O levantamento feito pela jornalista Fernanda Nascimento pode dar uma pista de quais caminhos ainda precisam ser percorridos. Os dados recolhidos, que analisam as novelas exibidas pela Rede Globo entre 1970 e 2015, apontam que dos 126 personagens LGBTQIA+ existentes, somente quatro eram negros.

“Nós temos pouquíssimos personagens negros nas telenovelas brasileiras. Isso começa a mudar na última década, mas ainda é muito pouco”, afirma a jornalista. O baixo índice de personagens negros LGBTs vai de encontro com a falta de protagonismo negro nos folhetins nacionais. Apesar da maior parte da população brasileira ser preta ou parda, foi somente em 2023 — 73 anos após a exibição da primeira novela na Globo —, que a maior emissora do Brasil teve três protagonistas negros simultâneos em suas principais novelas.

Nós temos pouquíssimos personagens negros nas telenovelas brasileiras. Isso começa a mudar na última década, mas ainda é muito pouco

O problema de representatividade, entretanto, não é só racial. As outras siglas da comunidade também não tem um destaque tão grande quanto os gays, que são responsáveis por 76 personagens dos 126 existentes. Lésbicas foram representadas 24 vezes, bissexuais 16, e pessoas trans apenas 9, segundo a pesquisa de Nascimento. “A maior parte das representações LGBTs são de homens gays cisgêneros. É um ponto negativo na história das novelas brasileiras”, afirma a pesquisadora Talitta Cancio. “É necessário mostrar diferentes vivências LGBTQIA+”, reitera Nascimento. Para ela, a pluralidade de narrativas só tem como enriquecer a representatividade.

Colaborou Emilly Gondim