Coluna da Fabiana Moraes: A calçada da fama de uma Justiça que habita o Olimpo — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

A calçada da fama de uma Justiça que habita o Olimpo

Foram milhares de comentários e, posteriormente, notícias na imprensa de todo país sobre mais um episódio que demonstra o elevado grau de descolamento da realidade do sistema de justiça brasileiro

26 de Abril de 2024

A notícia deixou muita gente incrédula: bastante à vontade, o presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), desembargador Ricardo Paes Barreto, contou, em uma entrevista ao jornalista João Alberto, que a instituição estava implementando uma “calçada da fama do poder judiciário”. Uma fonte me encaminhou o vídeo: de cara, achei que fosse brincadeira. Só acreditei na ideia pouco republicana porque ouvi o próprio Paes Barreto anunciá-la orgulhosamente, dizendo que, se Hollywood e Maracanã tinham suas calçadas de famosos, o tribunal teria a sua também.

Confesso que passei alguns segundos sendo esse meme de John Travolta:

Postei o vídeo no antigo Twitter e, como eu, muita gente se espantou com a proposta: foram milhares de comentários e, posteriormente, notícias na imprensa de todo país sobre mais um episódio que demonstra o elevado grau de descolamento da realidade do sistema de justiça brasileiro.

Esse nível de desassociação do cotidiano faz todo sentido com a proposta de um monumento que imita um marcador da cultura de celebridades

Fiquei pensando no quanto esse nível de desassociação do cotidiano faz todo sentido com a proposta de um monumento que imita um marcador da cultura de celebridades. No Brasil, magistrados e promotores, tribunais e ministérios públicos, formam grande parte da elite que habita o Olimpo. Não falo exatamente o Olimpo da mitologia grega, aquele que separava os deuses e as deusas do comuns de carne e osso, e sim um espaço mítico contemporâneo no qual figuram pessoas vistas como sobre humanas: as celebridades.

A sacada de entender que o Olimpo atual é habitado pelos famosos e famosas midiáticos é do sociólogo e filósofo francês Edgar Morin. Ele usa o termo “olimpianos” para descrever as figuras públicas ou celebridades que são elevadas a um status quase mítico ou divino pela sociedade. Essas personalidades são idolatradas e colocadas em um pedestal, distanciadas das realidades comuns da vida cotidiana.

Só que, no caso do TJPE, não são fãs ou idólatras que constroem esse espaço mítico: o pedestal é erguido e ocupado pela própria instituição — e ela representa aqui, sublinho, todos os tribunais de justiça e ainda os ministérios públicos do país. A tal calçada da fama, ideia que terminou sendo engavetada após a grande repercussão negativa, é a pura materialização dessa autopercepção de si como divinos-célebres que marca nosso sistema de Justiça.

Quiseram construir um passeio público no qual nós, mortais, poderíamos ter a chance de nos aproximar das impressões das mãos e das assinaturas de ex-presidentes do tribunal e, assim, acessarmos um pouco da natureza supostamente sobrenatural de cada um.

A percepção de si enquanto deuses foi tão forte que levou um desembargador — também conhecido como funcionário público — a declarar, feliz, que a Calçada da Fama do Judiciário atrairia turistas ao Estado. Os memes sobre isso, claro, não tardaram a chegar:

 Reprodução/Twitter

Foi tão forte que levou o tribunal a liberar R$ 258.150 para a confecção de bustos e estátuas de desembargadores no momento do aniversário de 200 anos da casa, em 2022. A autorização da verba aconteceu em abril de 2021, o mês mais letal da pandemia no Brasil até aquele momento, quando 82.266 mil pessoas morreram no país. No mesmo ano, Pernambuco apresentava o terceiro maior nível de desemprego do Brasil.

Diário de Justiça Eletrônico, edição 76/2021, publicado em 22/04/2021  Reprodução

A percepção de si como divinos-célebres é tão estruturante que permitiu que, em 2019, 428 membros do Olimpo recebessem indenizações que chegaram a R$ 1,2 milhão, valores relacionados também a uma prática comum na instituição: vender férias (possuem duas por ano). Na época, o Governo do Estado, que costuma ser tchutchuquíssimo com o TJPE, precisou repassar R$ 60 milhões ao palácio. Ano passado, os desembargadores aumentaram os próprios salários e o dos juízes da instituição. O valor foi para quase R$ 42 mil mensais. Fora os penduricalhos.

O fato é que magistrados e promotores podem não ter a visibilidade feérica de uma celebridade, mas, por outro lado, são a própria estrutura da Justiça e sabem exatamente como se mover dentro dela para adquirir mais dinheiro e poder. A excelente jornalista Nayara Felizardo mostrou como o TJ do Amazonas, por exemplo, esticou um concurso público para garantir vagas aos filhos e sobrinhos de desembargadores que não haviam pontuado o suficiente para passar no certame.

Mas, como vemos, ter poder é pouco: é preciso uma camada daquele não tão discreto charme das celebridades. Então porque não se auto congratular — usando dinheiro público — e fazer como Charlie Chaplin, Michael Jackson, Penélope Cruz, Jennifer Lopez, Carmen Miranda ou Tom Cruise, todos com os nomes inscritos na calçada da fama hollywoodiana? Reparei que, desejando ser estrela midiática, o tribunal pernambucano teria uma referência já inscrita em nosso imaginário pop, a cantora Mariah Carey.

 Reprodução/Instagram

Explico: quando ouvi a ideia da calçada da fama do TJ local, lembrei de uma famosa foto da artista na qual ela posa, bonitona e maquiada, ao lado de um homem em situação de rua. Disse na ocasião que queria mostrar aquela vida sofrida, desamparada. Logo, a internet — estávamos em meados dos 2000 — estava repleta da expressão “arrasando ao lado do mendigo“.

É justamente o que faz o TJPE, cuja sede se localiza em um edifício neoclássico repleto de vitrais e tombado pelo Iphan. No entorno do local, como a Rua do Imperador, há uma concentração histórica de muita gente sem teto, eira ou beira. O local ficou especialmente repleto durante a pandemia, quando muitas famílias foram despejadas de suas casas e pequenos barracos foram erguidos ali — essa matéria do Jornal do Commercio fala sobre o assunto.

Muitos dos sem teto convivem cotidianamente não só com o palácio muito bem preservado, mas com as estátuas dos desembargadores Bernardo José da Gama, José Ferraz Ribeiro do Valle e Joaquim Nunes Machado (aquelas que custaram, com os bustos, quase R$ 260 mil ao Estado, dinheiro, repito, liberado no período mais brabo da pandemia). Os sem teto também estão muito próximos do Salão Nobre do tribunal, espaço, como lemos no site da casa, “de rico acabamento e precedido de vestíbulo pavimentado de mármore, enriquecido por forro decorado, tocheiros, arandelas e lustres do mais fino baccarat“.

 Inês Campelo/Marco Zero Conteudo

Não há dúvida: o TJPE, assim como Mariah, arrasa ao lado dos mendigos. A diferença é que nós não sustentamos a cantora.

*
Somos uma espécie de plateia compulsória destes olimpianos cujos salários pagamos. Patrocinamos o Olimpo enquanto somos também apartados dele, afinal nem todo mundo pode adentrar esse espaço mítico. Primeiro, acessamos o sistema com enorme dificuldade para resolver questões judiciais: ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostrou que o TJPE é o menos produtivo para seu porte, no país. “Ao invés de pôr a mão na calçada, ponha a mão na massa”, escreveu um advogado membro da OAB dirigindo-se ao presidente do TJPE. O e-mail vem circulando em grupos de mensagens.

Segundo, pouco acessamos como maioria negra/parda/indígena quando pretendemos ocupar um lugar como magistradas e magistrados. Desde 2015, o CNJ determinou a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para ingresso na magistratura para pessoas negras. Somente no ano passado, quase dez anos depois, foi realizado o primeiro concurso da magistratura no Estado que contou com as cotas raciais. Foram oferecidas 30 vagas e aprovadas 63 pessoas (número maior para cadastro reserva). Quatorze pessoas desistiram e assim 49 foram empossadas: 23 mulheres, 26 homens, 94% pessoas brancas e somente 6% de pessoas negras. Aliás, a Faculdade de Direito, inaugurada em 1911, só há pouco veio ter sua primeira professora preta.

Parte desse time de servidores públicos do judiciário, aliás, encara questões de raça como uma discussão “da esquerda”, e não uma discussão central na própria estrutura. Em 2020, escrevi sobre um movimento de revolta instalado na Associação dos Magistrados do Estado de Pernambuco (Amepe), quando um grupo formado por 34 juízes e juízas chamou de “infiltração ideológica” o oferecimento de um curso sobre racismo na entidade. Consternados, ameaçaram deixar a associação – também formada por nomes importantes no enfrentamento ao racismo, como a juíza Luciana Maranhão – e assinaram um manifesto cujo texto dizia que a preocupação da Amepe devia ser “o bem estar dos seus associados e a proteção das tão aviltadas prerrogativas” da função. A entidade não se pronunciou sobre a calçada hollywoodiana do TJPE.

 Reprodução/Instagram

Sobre magistrados que emulam celebridades e constroem pedestais para si, sobre magistrados que negam a realidade social brasileira (na qual a taxa de pobreza de pretos e pardos é o dobro da taxa de pessoas brancas), trago parte do texto que abre o Código de Ética da Magistratura Nacional (CNJ):

CONSIDERANDO que a adoção de Código de Ética da Magistratura é instrumento essencial para os juízes incrementarem a confiança da sociedade em sua autoridade moral;

CONSIDERANDO que o Código de Ética da Magistratura traduz compromisso institucional com a excelência na prestação do serviço público de distribuir Justiça e, assim, mecanismo para fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário;

CONSIDERANDO que é fundamental para a magistratura brasileira cultivar princípios éticos, pois lhe cabe também função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais;

CONSIDERANDO que a Lei veda ao magistrado “procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções” e comete-lhe o dever de “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular” (LC nº 35/79, arts. 35, inciso VIII, e 56, inciso II);

É bom repetir para não esquecer.

Nesse momento, apadrinhada pelo senador Rodrigo Pacheco, avança a Proposta de Emenda à Constituição que concede aumentos salariais aos juízes e promotores (“parcela mensal de valorização por tempo de serviço dos magistrados e do Ministério Público”), a PEC 10/2023. Se a chamada PEC do quinquênio passar, o aumento nas contas públicas será de R$ 42 bilhões por ano (25% do que investimos no Bolsa Família ao ano). Dos R$ 160 bilhões pagos anualmente pela União ao judiciário brasileiro, 83% vão para pagamento dos servidores. Enquanto países ricos gastam 0,3% de seu PIB com a Justiça, gastamos 1,6% (mais nesta excelente entrevista com a professora Gabriela Lotta).

Toda democracia precisa ter um sistema de justiça fortalecido. Mas ele precisa ser eficiente e conectado às demandas daqueles e daquelas que o sustenta

Toda democracia precisa ter um sistema de justiça fortalecido. Mas ele precisa ser eficiente e conectado às demandas daqueles e daquelas que o sustenta. Se as prerrogativas dos cargos estão sendo “aviltadas” é justamente porque nos sentimos, todos os dias, humilhados por magistrados e promotores — e propor uma calçada da fama, bem ao lado de uma multidão de sem teto, só aumenta isso.

Se não está claro que a desigualdade social brasileira passa valendo pelos salários e penduricalhos nababescos do sistema de justiça nacional, é hora de colocar não as mãos supostamente divinas de desembargadores no cimento fresco das calçadas públicas, e sim as patas desse enorme elefante dourado que ajudamos, compulsoriamente, a alimentar.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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