Coluna do Observatório da Branquitude: A branquitude se reinventa — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

A branquitude se reinventa

O “não fui eu, foi o racismo estrutural” retira a responsabilidade individual do racista e deixa o crime sem culpados

03 de Abril de 2024

Uma bailarina negra, um cabelo black, um apresentador de TV branco. Ele pergunta se ela está de peruca. Ela responde que não e se esquiva de uma possível tentativa dele de puxar o cabelo. Ele chama uma bailarina branca que se sujeitou a fazer o serviço. Ao confirmar que é de verdade, ele diz: “Eu vi um piolhinho”. Ratinho foi racista na televisão entre aplausos da plateia e risadas desconfortáveis da bailarina Cintia Mello. Nem é coisa do passado, é coisa de abril de 2024.

Mesmo diante das cobranças nas redes sociais, o apresentador ou o SBT não se pronunciaram até o fechamento deste texto. Não sabemos se esse caso vai gerar alguma nota. Mas a tendência da vez entre os brancos que precisam pedir desculpas públicas pelo crime é colocar na conta do racismo estrutural. Eu aposto que caso exista alguma declaração, o caminho vai ser esse, atendendo à vontade de distanciar a imagem do racista do crime.

O “não fui eu, foi o racismo estrutural” retira a responsabilidade individual do racista e deixa o crime sem culpados — e se não tem culpado, ele nem existiu. Foi essa cartada que Wanessa deu ao sair do “Big Brother Brasil” acusada de racismo. Seguindo a fórmula da limpeza de imagem, a cantora disse estar aprendendo e ainda pediu desculpas a todas as pessoas negras que possam ter se sentido ofendidas e machucadas com suas falas. Depois disso, as buscas pelo termo aumentaram e é muito bacana acompanhar a popularização do entendimento de um conceito. Mas é preciso ter cuidado.

O racismo estrutural não pode se tornar mais uma justificativa para racistas, assim como quadros psiquiátricos, remédios controlados e avós pretos

Como bem lembrou Maju Coutinho no “Fantástico” após a conversa da cantora com Renata Ceribelli, não se pode usar a ideia de maneira equivocada. O racismo estrutural — termo trabalhado pelo ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida — se dá pelo fato da sociedade construir suas relações acreditando na superioridade da raça branca e que pessoas não brancas são subalternas. Ele não pode se tornar mais uma justificativa para racistas, assim como quadros psiquiátricos, remédios controlados e avós pretos.

Porém, em uma ação prática do pacto narcísico da branquitude, pessoas brancas se utilizam de um conceito criado por pessoas negras para nomear determinadas situações causadas por elas, se apropriam dele e esvaziam seu significado. Assim o entendimento passa a atender às necessidades de pessoas brancas. Funciona como um acordo não verbal para eximi-las de responsabilidades, mantendo seus privilégios. Com isso, quando uma pessoa branca vê um crime de racismo acontecer, diz que achou melhor não intervir ou opinar por aquele não ser o seu local de fala — outro conceito trabalhado por uma intelectual negra, Djamila Ribeiro. Ou, quando é acusada de racismo, culpa o racismo estrutural.

Essa é uma posição muito confortável e perspicaz que garante a manutenção da supremacia branca. A branquitude se vê acuada, mas dá a volta por cima, inverte a situação e segue usufruindo das estruturas de poder que privilegiam as pessoas brancas. É como uma reinvenção para continuar com as mesmas práticas.

Se você é branco e chegou até o final deste texto, pode escolher outro caminho: enxergar os fatos, buscar informação de maneira correta e não ser racista.

Juliana Gonçalves é jornalista e mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos. É especialista em comunicação no Observatório da Branquitude, cofundadora da plataforma de empoderamento profissional Firma Preta. Tem passagens pelas redações do Catraca Livre, Rede Globo e The Intercept Brasil.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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