CV: Irene Vida Gala
Uma das principais vozes na luta por mais espaço para as mulheres na diplomacia brasileira, a africanista fala sobre a carreira e o machismo no Itamaraty
Em 1986, quando chegou ao Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, Irene Vida Gala ainda não sabia muito bem o que a carreira de diplomata iria oferecer à jovem recém-formada em direito pela Universidade de São Paulo (USP).
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Ela se interessava pela agenda pública, tinha simpatia pela política e estudava línguas estrangeiras, como o francês e o inglês, mas não tinha noção, de fato, do que representar o país para o mundo significava. E tampouco tinha referências na profissão, sobretudo as femininas. “Foi essencialmente uma escolha porque encontrei um desafio próximo a coisas que eu gostava, sem conhecer muito. Na época, eu não conhecia nenhum diplomata, por exemplo. Foi realmente fortuito”, diz.
Quase quatro décadas depois, Irene, hoje com 62 anos de idade, sabe a que veio. Especializada em relações do Brasil com a África, já cumpriu missões em diversos países do continente, como Luanda, Gabão, República Democrática do Congo, São Tomé e Príncipe, Libéria e Serra Leoa. Acompanhou as questões relacionadas à temática africana no Conselho de Segurança da ONU, em Nova York, e viveu na Europa.
Atualmente, é subchefe do Escritório de Representação do Itamaraty em São Paulo e presidente da Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras (AMDB), movimento formado em 2013 e formalizado legalmente em janeiro de 2023 por diplomatas, na ativa ou aposentadas, com o principal objetivo de criar um Itamaraty mais igualitário e representativo.
Vivemos em um Itamaraty que ainda não nos acolhe
Em entrevista a Gama, Irene Vida Gala fala sobre a sua trajetória profissional, os desafios de ser uma mulher diplomata e o trabalho na AMDB em prol da equidade de gênero no Ministério das Relações Exteriores, instituição muito masculinizada.
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G |Quais são os grandes desafios da diplomacia? Como a senhora lida com eles?
Irene Vida Gala |Para um diplomata, talvez o maior desafio seja refletir os interesses do Brasil ao representar o país. Quando estamos no exterior, nós somos a face do Brasil. Todos os interesses do país estão corporificados na nossa pessoa. Um diplomata no exterior é diplomata 24 horas por dia, sete dias por semana. É um desafio muito grande nós sermos sempre o reflexo da imagem do Brasil. Mais recentemente, na medida em que eu fui avançando na carreira, encontrei também o desafio de superar as dificuldades de uma carreira bastante concentrada na história e no poder masculino. Fui tentando entender como furar essa barreira e alcançar um espaço de maior protagonismo. Então, para um diplomata em geral, há esse desafio importante de refletir as preocupações do Brasil. Já para nós, as diplomatas mulheres, há o componente adicional de, além de viver as mesmas realidades dos colegas, passar pelas mesmas provações, pela mesma trajetória e pelos mesmos exames, não temos as mesmas oportunidades que eles.
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G |A senhora enfrenta o machismo diariamente na diplomacia?
IVG |O Itamaraty está aprendendo, sobretudo com as novas gerações, a conviver com as mulheres em igualdade de condições. Mas a instituição como um todo ainda não acolhe a mulher na forma como nós entendemos ser importante para a diplomacia brasileira. O tema não é apenas a representação das mulheres numericamente, é a qualidade do aporte que nós trazemos para o trabalho. No setor privado, em algumas outras áreas em que isso já está bem estudado, nós vemos como a contribuição feminina dá ganhos para o trabalho que, normalmente, é feito e conduzido apenas por homens. Vivemos em um Itamaraty que ainda não nos acolhe e que ainda não encontrou meios para fazer com que a máxima de que a mulher vai contribuir para uma melhor representação diplomática se realize. Eu não diria que, individualmente, tenho tantos problemas, até tenho, mas, enfim, não é uma questão individual. Pessoalmente, por já estar numa posição muito alta, por ser presidente da Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, eu tenho uma imagem e eu pago um certo preço por isso. Mas diríamos que, para o conjunto das mulheres, o problema não é individual, é realmente coletivo. Nós precisamos que o Itamaraty crie condições para que as mulheres progridam todas juntas, façam todas juntas um movimento para uma participação mais equitativa, mais equilibrada e, portanto, mais benéfica ao serviço diplomático brasileiro.
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G |Foi em busca dessa equidade que a senhora e algumas colegas de profissão criaram a AMDB em janeiro de 2023?
IVG |Na verdade, desde 2013 existe esse movimento de mulheres diplomatas, porém, nós não tínhamos uma organização formal. Era uma plataforma por onde a gente conversava. A internet e as redes sociais facilitaram o diálogo entre nós porque as mulheres diplomatas do Brasil estão espalhadas pelo mundo inteiro. Numericamente, somos poucas, cerca de 360 hoje na carreira. Portanto, a internet propiciou esse diálogo e facilitou a nossa organização. Aí, quando o terceiro governo Lula começou, após quatro anos bastante difíceis, em que as mulheres foram totalmente silenciadas durante o governo Jair Bolsonaro e dentro do Itamaraty, nós entendemos que era o momento para criar a AMDB. As minhas colegas mais ativas se organizaram, fizeram toda a parte legal e me convidaram para assumir a presidência. E eu assumi com grande alegria e com o compromisso de levar adiante uma pauta que é absolutamente contemporânea e que, por mais difícil que seja, é muito meritória e vale o nosso esforço.
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G |Qual balanço a senhora faz desse trabalho que tem pouco mais de um ano? Houve avanços?
IVG |Sim, houve avanços. E de múltiplas naturezas. Acredito que o principal avanço foi no sentido de mostrar à sociedade civil brasileira, ao governo, ao parlamento e ao Judiciário que existem mulheres diplomatas. As mulheres eram invisibilizadas dentro do Itamaraty porque as imagens todas eram masculinas. Então, mostrar que existem mulheres foi o nosso primeiro ganho. Para se ter uma ideia, no ano passado eu fiz algumas gestões no Senado, junto a senadores que estavam na Comissão de Relações Exteriores, e quando eu chegava para conversar, por exemplo, sobre a baixa quantidade de mulheres nomeadas como chefes de missão diplomática consular no exterior, as perguntas que eu mais ouvia, sem exceção, eram: “Mas tem mulher? Quantas vocês são? Qual é o critério para indicar candidatos para ocupar a chefia das missões?”. A Comissão de Relações Exteriores tem a responsabilidade constitucional de aprovar os nomes indicados pelo Itamaraty e pela Presidência da República para ocupar a chefia de missão diplomática. O Brasil tem a tradição de indicar diplomatas, e não políticos, para ocupar esse posto. Esses nomes vêm da chancelaria e o ministro das Relações Exteriores é quem apresenta ao presidente e eu diria que, em 99% dos casos, o presidente concorda. Sempre me perguntam como essa decisão é tomada e, na verdade, essa escolha é personalista. Não existem critérios objetivos para que a gente possa se candidatar ao posto; é um processo obscuro que ninguém sabe nem quais são os postos disponíveis para poder pleitear. Isso prejudica muito as mulheres, mas prejudica também aquele grupo de diplomatas que não faz parte do círculo restrito do poder próximo ao ministro e ao gabinete. Veja então que as mulheres estão capitaneando uma campanha para que haja transparência e critérios objetivos. As mulheres estão capitaneando esse processo, mas esse processo beneficiará não apenas as mulheres, mas todos aqueles que não fazem parte do círculo mínimo de poder. As mulheres querem republicanismo, a gente quer objetividade. Acho que as mulheres estão no Itamaraty dando uma contribuição muito positiva por meio desse nosso movimento para arejar a instituição.
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G |Em 39 anos de carreira, a senhora teve algum mentor ou alguma mentora?
IVG |Quando eu entrei para o Itamaraty, em 1986 [Irene ingressou no Instituto Rio Branco em 1985 e tomou posse na carreira diplomática em dezembro do ano seguinte], as mulheres que hoje são embaixadoras já aposentadas, naquela época talvez fossem conselheiras em cargos pequenos. Não havia nomes de mulheres. As histórias de grandes mulheres que nós tivemos — como a da primeira mulher a ingressar no Itamaraty, Maria José de Castro Rebello Mendes, a da Bertha Lutz, que teve uma participação importantíssima na Conferência de São Francisco que redigiu a Carta das Nações Unidas, e a da nossa primeira embaixadora, Odette de Carvalho e Souza — ainda não eram conhecidas. A história das mulheres foi recuperada no final do século passado. Então, quando eu entrei, nós não tínhamos referência de mulheres. No entanto, eu e minhas colegas tivemos muita sorte porque no ano em que nós entramos, numa turma de 44, nós éramos dez mulheres. E eu entendo que o nosso grupo foi muito importante, nós criamos uma aliança de sobrevivência. Uma ajudava a outra. Acredito que, àquela época, a gente não tinha noção disso porque o tema do feminismo não existia tanto ali, mas acho que mulheres muito potentes se juntaram nessa turma e conseguiram fazer esse percurso. Todas nós fomos seguindo juntas. E é muito interessante, eu sempre sublinho isso, que na nossa turma de dez mulheres, seis chegaram ao posto máximo da carreira. É uma taxa de sucesso altíssima, de 60%, sendo que uma das colegas que certamente também teria chegado teve uma morte bastante precoce, era uma mulher brilhante. Nós fomos mulheres muito potentes, conseguimos construir carreiras marcantes, e a maioria de nós vindas de ambientes não diplomáticos. Havia uma filha de embaixador, que é uma querida colega, mas as outras nove eram pessoas vindas de outros ambientes, da classe média, ou seja, não das tradições da sociedade brasileira com nome e sobrenome. Nós fomos muito resilientes. Por isso, acho que as minhas referências foram as minhas colegas.
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G |Qual é a sua missão na profissão hoje? Ela mudou com o tempo?
IVG |No início, eu não sabia muito bem como seria o meu ofício, só achava interessante poder representar o Brasil. Essa continua sendo a nossa missão. Ela apenas ganhou mais conteúdo do que naquela época, que, para mim, ainda era uma ideia meio que vazia. Hoje, representar o Brasil talvez seja até menos do que efetivamente nós fazemos, sobretudo quando você chega a uma posição como a minha, de embaixadora, em que você não só representa o país, mas, principalmente, faz parte da reflexão sobre o que é essa representação. É estar ativamente engajada na percepção do que precisamos fazer para que o Brasil possa aproveitar da melhor forma possível as oportunidades que estão no exterior e que respondam aos interesses da maioria da população. Acho que nesses quase 40 anos houve uma mudança muito positiva na carreira diplomática. Nesse período, nós agregamos um componente democrático muito forte. Quando eu entrei, nós ainda estávamos saindo da ditadura. Depois, em 1988, tivemos a Constituição Cidadã. E nos últimos anos, sobretudo, sei lá, talvez nos últimos 20 anos, nós vimos como a política externa é uma política pública que tem profunda responsabilidade na entrega de benefícios que a sociedade brasileira espera. A política externa era bem mais estreita no sentido dos objetivos, porque o poder brasileiro era mais estreito, as classes beneficiadas pelo poder eram mais reduzidas. A partir de 1988, mas sobretudo no final dos anos 1990, já na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, e depois, com o presidente Lula, que mudou muito o marco em que eu comecei. Hoje nós temos, além de representar o Brasil, a responsabilidade de pensar uma política externa que entregue aos brasileiros o que eles esperam, que é inclusão e democracia. A diplomacia também é um agente, e vimos muito isso durante o período da eleição de 2022. A diplomacia é um instrumento para construir alianças em prol da democracia, da mesma forma como ela pode ser mal utilizada para construir alianças em favor da extrema-direita, em favor dessas experiências nada democráticas que infelizmente nós vemos hoje no mundo.