Marilene Felinto
Viagem de turismo tem sempre algo de ridículo e ilusório
Que experiência a viagem trouxe? E esta sensação de vazio, de não pertencer a lugar nenhum? E se tivesse ficado em casa, não teria aproveitado melhor o tempo e o dinheiro ralo?
Então, por que viajar? Obviamente a pergunta não é problema de gente feliz, que acha tudo bacana. Nem se trata de um questionamento da velhice. É coisa de seres estranhos, nunca totalmente contentes com nada, desde a juventude.
Viajar a turismo é tão ridículo quanto escrever carta de amor (mal comparando com o consagrado verso de Fernando Pessoa), pois o corajoso desprendimento inicial não compensa o constrangimento final, para não falar em arrependimento mesmo.
Viajar ou não viajar? Tantos poetas já se questionaram sobre isso, já responderam, ou não encontraram respostas. Para que viajar?
A pergunta também pode ser: como ficam os que foram visitados? O que pensam eles sobre o forasteiro esquisito que passou por ali, olhou e foi embora?
Assim a norte-americana Elizabeth Bishop, em seu clássico poema “Questions of Travel” (Questões de Viagem) percebe esse olhar voyeur do turista sobre a vida alheia, numa terra estrangeira: “Is it right to be watching strangers in a play/in this strangest of theatres?” (Em tradução livre: “É correto ficar assistindo a gente estranha numa peça/deste mais estranho dos teatros?”)
Obviamente não estou falando de viagens de instrução, estudo ou trabalho. O ponto aqui são as viagens de férias, para suposto descanso, especialmente quando se vai conhecer um lugar pela primeira vez. E falo do ponto de vista daquele cidadão mediano e de classe média, que tem algum acesso a turismo, mas que se angustia diante das interações, quase sempre superficiais com o universo local visitado, com o estranhamento ao habitat diferente.
Seja como for, de avião, de automóvel, de trem, por qualquer meio de transporte, pelo país ou para fora do país, a curiosidade que disparou a decisão pela viagem acaba em certa culpa, e em mais perguntas: que experiência a viagem trouxe? E esta sensação de vazio, de não pertencer a lugar nenhum? E se tivesse ficado em casa, não teria aproveitado melhor o tempo e o dinheiro ralo?
Admiro as pessoas que já desistiram de viajar, porque conhecem o sentimento de decepção e ridículo
Como turista, é como se não tivesse sido eu aquele indivíduo que esteve em viagem – como se a pessoa em questão fosse outra, sempre em busca de uma ilusória Pasárgada qualquer em algum ponto do universo.
“Vou-me embora pra Pasárgada”, o lugar ideal do poema deste grande Manuel Bandeira, o canto imaginário para onde o turista foge, rumo à suposta liberdade que a viagem iria trazer. “Vou-me embora pra Pasárgada/Aqui eu não sou feliz/Lá a existência é uma aventura/De tal modo inconsequente/ (…) Tomarei banhos de mar! (…) Em Pasárgada tem tudo/É outra civilização/(…) — Lá sou amigo do rei/ (…) Vou-me embora pra Pasárgada!”
Admiro as pessoas que já desistiram de viajar, porque conhecem o sentimento de decepção e ridículo. No meu caso, sempre viajei e ainda viajo de tempos em tempos apenas por uma necessidade atávica de ver o mar onde nasci, de estar no mar ou perto mar do Nordeste, do Ceará ao sul da Bahia. Viajo como quem busca esse mar perdido, já que vivo há meio século nesta cidade sem mar que é São Paulo.
Às vezes desejo também me enfiar sertão adentro, para entrar em contato de novo com as origens de minha mãe… os recantos miseráveis onde meu pai se criou. Mas o que fazer nos sertões, como conviver ainda hoje com tanta pobreza? Que impacto social (para usar um termo ultra em voga) minha viagem pode ter? Que ridícula caridade?
Curiosidade não falta para percorrer os confins deste Brasil espetacular na sua diversidade de nomes lindos, de gente de todo tipo, e de histórias saborosas ou absurdas de violência e desigualdade.
Sim, eu gostaria de ir! Queria “conhecer” Abaré, Chorrochó e Macururé, por exemplo, municípios baianos que fazem fronteira com o sertão pernambucano em uma área recentemente descrita como o primeiro território à beira de virar deserto no Brasil! Gostei tanto dos nomes, e me atraiu a notícia de que a situação é “alarmante”, muito além da conhecida seca sertaneja. Mas que beneficência faria o meu turismo em Chorrochó?
Sim, eu gostaria de ir! Queria ajudar de algum modo o povo Pataxó Hã-hã-hãe do Sul da Bahia, atacados e assassinados por ruralistas sanguinários, como ocorreu recentemente. Em que outro país ou língua do mundo existe um nome tão maravilhoso como “Pataxó Hã-hã-hãe”? Queria ir! Mas que impacto social…? A mesma pergunta sem resposta.
Ora, turismo gera renda e emprego, diz o mercado indignado com esse tipo de reflexão subjetiva e contraproducente para ele, “mercado”, essa entidade sem cara e sem alma. Em certos lugares, sim, turismo certamente gera a renda de esmola que recebe a cozinheira negra da casa de praia dos proprietários ricos da cidade. Em outros, deixa uns trocos também no comércio local de municipiozinhos perdidos no tempo, ignorados pelo poder público.
“O Turista Exausto” (em contraposição ao importante estudo “O Turista Aprendiz”, de Mário de Andrade) poderia ser o título do livro deste ser perdido, o turista fora da curva, o viajante não padrão, ele que, mal chegou ao lugar, sente imediatamente falta de casa. Ele para quem o melhor momento da viagem é a hora de voltar.
Ora, o homem, diz outro genial poeta em seu “O homem, as viagens”: “O homem, bicho da Terra tão pequeno/chateia-se na Terra/lugar de muita miséria e pouca diversão,/faz um foguete, uma cápsula, um módulo/toca para a Lua”. E depois (continua Carlos Drummond de Andrade), toca para Marte, para Vênus, para Júpiter.
E quando já não houver mais planeta no sistema solar onde caiba a chatice das viagens, quando já não houver ilusão de Pasárgada nenhuma, então, conclui o poeta: “Ao acabarem todos/só resta ao homem/(estará equipado?)/a dificílima dangerosíssima viagem/de si a si mesmo(…)”.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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