Marilene Felinto
Dicionário pulou verbete “A causa negra segundo os brancos”…
Um assunto que é verdadeiro tabu, tratado à boca miúda em círculos de conversa sobre relações raciais aqui e ali
O título desta resenha é uma ironia, ou uma provocação, como queiram. E não pretende diminuir em nada a qualidade do excelente “Dicionário das Relações Étnico-Raciais Contemporâneas” (Perspectiva, 2023). É que fui ler esta obra com curiosidade, mas também com certo espírito de porco: como se trata de texto autoral, em que os verbetes são assinados, quis verificar se havia brancos, e quantos, escrevendo sobre questões concernentes à causa negra, temática de 99% deste repertório de conceitos sobre relações raciais.
Isso (o espírito de porco) tem a ver com uma queixa recente que me fizeram pessoalmente alguns docentes – negros e negras norte-americanos – ligados à Universidade de Princeton e à Universidade da Pensilvania, nos Estados Unidos: reclamaram da postura arrogante de certos intelectuais brancos brasileiros “especialistas” em relações raciais do Brasil, que vão pesquisar ou expor seus trabalhos em instituições americanas e desdenham de pesquisadores negros dos EUA que também estudam o tema no contexto brasileiro e americano.
A reclamação reforçou uma impressão que eu já tinha sobre essa conduta de certos pesquisadores brancos daqui que se dedicam a temas da negritude e têm projeção internacional. Mas voltarei no final deste texto a esse assunto que é verdadeiro tabu, tratado à boca miúda em círculos de conversa sobre relações raciais aqui e ali, em São Paulo e outras cidades do Brasil.
Eis um dicionário que tem também como função o que se chama hoje de “letramento racial”, trabalho necessário e esclarecedor nos seus 55 verbetes escritos quase que totalmente por intelectuais negras e negros brasileiros, fator que legitima ainda mais o empreendimento.
A obra, segundo seus organizadores, propõe-se a atender a crescente demanda por autorias negras e indígenas e a “suprir uma lacuna no tocante a quadros de referência qualificada e especializada para consulta dos termos usados nas discussões atuais” sobre as desigualdades raciais, a segregação e a interseccionalidade, ampliando referências teóricas e bibliografia de epistemologias críticas à branquitude.
Os organizadores, a socióloga Flávia Rios, o cientista político e pesquisador Marcio André de Oliveira Santos e o antropólogo Alex Ratts chamam a atenção também, na introdução ao dicionário, para o cuidado no processo de escolha dos autores dos verbetes.
Tenho recebido reclamações de docentes negros e negras americanos da postura arrogante de intelectuais brancos brasileiros ‘especialistas’ em relações raciais”
Três critérios de escolha destacam-se: autores negros e pesquisadores de “pertencimento identitário” aos grupos maiores vítimas das consequências negativas do racismo; “número expressivo de mulheres negras em particular”; e diversidade geográfica para “evitar mais uma vez a hegemonia do sudeste brasileiro”.
Notável o diálogo de diversos verbetes do dicionário com questões de cunho geracional, com os anseios, as formas de expressão e a militância da juventude negra brasileira contemporânea.
No verbete “Diáspora negra”, por exemplo, escrito pelas pesquisadoras Luciana da Cruz Brito e Clícea Maria de Miranda, o conceito de diáspora africana vai do “espalhamento de pessoas escravizadas (…) da África nas Américas e na Europa entre os séculos XVI e XIX”, à correlação desse fluxo com a apropriação do hip-hop pela juventude africana. Embora nascido na América, afirmam as autoras, o movimento musical traduz também, para essa juventude, “nas suas letras, a denúncia do colonialismo e do racismo na contemporaneidade”.
Verbetes como “Colorismo” e “Intelectuais negros” juntam-se na tentativa de localizar e explicitar tensões no debate nacional sobre identidade negra e legitimação cultural da intelectualidade negra brasileira.
Maria Andrea dos Santos Soares, docente da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), destrincha com muita propriedade o verbete “Colorismo” – que, como definição geral, é a “diferença de tratamento recebida por pessoas negras de pele clara em relação às pessoas negras de pele escura” – no contexto da atualíssima e bastante controversa discussão a respeito das classificações por cor da pele e ascendência no que diz respeito à construção identitária do negro no Brasil hoje. No âmbito dessa discussão estão a luta pela continuidade das políticas de ação afirmativa e a reserva de cotas como meio de grupos étnicos excluídos ascenderem ao ensino superior público.
O sociólogo e professor Matheus Gato, por sua vez, no verbete “Intelectuais negros”, toca muito indiretamente no tabu que mencionei no início desta resenha. Gato alerta para a importância de os negros assumirem a própria fala, o que “significa se constituir como um sujeito do pensamento científico, deslocando-se do lugar de objeto de estudo num mundo acadêmico tradicionalmente branco e questionando as implicações da subordinação interseccionada de raça e gênero para formação de conceitos e interpretações sobre a realidade social”.
E Gato destaca também um outro tabu – com elegância admirável, que não cabe a espíritos de porco como eu –, referente à constituição de intelectuais negros frente às barreiras raciais que precisam enfrentar. Ele diz que o modelo do pensador militante de gerações anteriores, forjado do engajamento numa instituição do movimento negro, convive no Brasil de hoje com outros estilos de expressão intelectual originários da atuação dos negros em diferentes nichos do campo da cultura.
Se isso é bom, porque, por um lado, amplia os espaços de vocalização pública e política desse grupo étnico, por outro, representa um problema quando o intelectual negro se transforma em “celebridade” cuja atuação se dissocia da luta coletiva. Gato aponta para a figura do escritor prestigiado, que ele chama de “celebrity”. Poderia ter incluído na crítica outras figuras públicas negras, personalidades de governo inclusive, menos afeitos à implantação efetiva de mudanças e mais deslumbrados com o espetáculo midiático vazio.
A provocação que dá título a esta resenha não quis enveredar pela discussão sobre a desgastada (porque equivocadamente supervalorizada) expressão “lugar de fala”, ou seja, não se quer dizer que a causa negra não pode ser objeto de reflexão e estudo por parte de gente branca.
Tratou-se de aproveitar a oportunidade para apontar a prepotência com que certa “elite” intelectual branca brasileira age, feito dona da temática das relações raciais e da história dos negros, “elite” carimbada sempre por um ou outro nome que menospreza, aqui e além-mar, conforme me confidenciaram os docentes americanos, todos os que não estabelecem com eles uma relação de subserviência e bajulação.
Por fim, como qualquer dicionário, também este talvez esteja anacrônico num futuro próximo, em alguns de seus aspectos, merecendo revisão e atualização. Por ora, porém, é obra absolutamente fundamental.
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).
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