Maria Ribeiro
Sorte do Oscar se tiver “Pedágio”
É claro que a gente, depois de tanto descaso com a cultura, fica feliz de ver nosso cinema indo tão longe. Mas principalmente pra que ele chegue aqui
Pare. Olhe. Escute. Agora, feche os olhos. O que te lembra essa junção de palavras? Três verbos tão simples, vistos em sequência há tanto tempo, que a gente até esquece de prestar atenção. Mesmo sendo uma placa de trânsito, ou seja, algo feito com to-dos os instrumentos possíveis e imagináveis para eliminar qualquer distração à sua volta. O que é praticamente impossível em tempos de likes.
Alias, “atenção”, em caixa alta — coisa que normalmente detesto — é outra placa que eu adoraria ter na vida. Na sala. Na rua. No espelho. Atenção!, levantaria eu, vez ou outra por aí, roubando inclusive o fundo amarelo, e me incluindo no alerta, ainda que gentil. Mas vou voltar pro “Pare”. E segurar minha vontade de procurar poesia no que leio nas estradas.
Parou? Agora lê. Lê com calma. Lê de novo. Lê pra alguém. Estamos na cidade de Cubatão, estado de São Paulo, um dos lugares menos instagramáveis do Brasil. O que, mais uma vez, reforça o quão subjetiva pode ser uma ideia de beleza. E o quanto de Deus habita em pontos de vista. Uma placa, um cruzamento, a vida que segue apesar do que a cerca.
O quão subjetiva pode ser uma ideia de beleza. E o quanto de Deus habita em pontos de vista
A cena é um plano de “Pedágio”, novo filme de Carolina Markowicz, roteirista e diretora do igualmente brilhante “Carvão”. Parei nesse frame, que não deve durar nem dez segundos, porque é exatamente o que quero dizer sobre o cinema que vem sendo feito por Carolina.
“Carvão”, por exemplo, foi recentemente eleito pela crítica do The Times um dos melhores longas do ano. E não são só os ingleses que estão vendo o que é que a paulistana tem. Além de estrear “Pedágio” no 48º Festival de Toronto, que começa nesta quinta-feira (7), Markowicz também receberá um dos principais tributos do cinema norte-americano. Que, detalhe — ou melhor, beijinho no ombro —, nunca havia sido concedido a um brasileiro. Com ela (espero esse post), estarão nomes como Pedro Almodóvar e Spike Lee.
E antes que eu prossiga com meu “coté” de atriz colonizada — tinha pensado até em comparar “Pedágio” à obra da argentina Lucrécia Martel, como se fosse preciso, olha como sou boba — vou voltar ao que importa: meu país. Meu cinema. Minha identidade.
É claro que a gente, depois de tanto descaso com a cultura, fica feliz de ver nosso cinema indo tão longe. Mas principalmente pra que ele chegue aqui. Em cada motorista e em cada trabalhador de pedágio. Pra que a gente se olhe, se respeite, se conheça, se reconheça, e admita o abismo de classes e de gênero que é o Brasil.
Maeve não atua, ela é. Simples, real, contraditória, a atriz consegue ser comum e deslumbrante, correta e corruptível, carinhosa e violenta
A protagonista de “Pedágio”, que também quebra tudo (e até um pescoço de galinha) em “Carvão”, é Maeve Jinkings. Aqui, como lá, encontramos uma atriz que dá vontade de ver e de contracenar, de amar e odiar, de trocar telefone e bloquear no WhatsApp. Maeve não atua, ela é. Simples, real, contraditória, a atriz consegue ser comum e deslumbrante, correta e corruptível, carinhosa e violenta. Por mim, ganhava prêmio até em silêncio.
Falando em prêmio, “Pedagio” esta na pré-seleção da Academia Brasileira de Cinema pra representar o Brasil no Oscar. Um filme que fala do país com essa profundidade e com esses atores, sobre desigualdade, homofobia, corrupção, hipocrisia. Nossa, Sorte do Oscar se eles puderem ter essas duas minas naquele tapete.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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