Um backlash silencioso

Tem um perfume dos anos 90 no ar e ele está contaminado da mesma retaliação que as minorias receberam após os avanços das discussões de suas pautas décadas antes.

Em 2 de novembro de 2022, na edição online do jornal New York Post, foi publicada uma matéria intitulada Bye bye Booty: Heroin Chic is back, algo como “o fim da era bumbum grande e retorno do corpo da heroinômana chique”. Sim, caso você não saiba, a estética heroin chic foi moda nos anos 90 e determinou o corpo “certo” dessa década: magro como o de um usuária de heroína, pasmem. Voltando ao texto do New York Post, ele descrevia a nova onda de emagrecimento de influenciadoras e modelos nas semanas de moda mundiais e nas recentes aparições nas grandes premiações da indústria cultural. A foto central era de Kim Kardashian, numa montagem estilo antes e depois. Anote esse sinal aí.

As semanas de moda do primeiro semestre de 2023 aconteceram de janeiro a março e entre Nova York, Milão, Londres e Paris, foram desfilados 9.184 looks em 219 shows. Somente 17 desfiles tinham um look plus size. Ou seja, desde que começamos a contar a inclusão de diversidade de corpos nas semanas internacionais, que foi a partir de 2016, o ano de 2023 marca o fracasso dos avanços de anos de discussão dos movimentos de corpo livre, como o #bodypositive. Segura mais essa aí. Ah, sem contar que muitos desfiles de alta costura casualmente trouxeram o corset de volta, mais um sinal dos tempos.

Mas não para aí. Tem os filtros nas redes sociais, que afinam seu nariz, clareiam seu rosto e apagam suas linhas; tem o boom da Bichectomia no TikTok, com milhares de vídeos mostrando celebridades que fizeram; tem a droga emagrecedora do momento, o Ozempic, que ganhou capa da New York Magazine; e tem, desde sempre, o corpo feminino magro, branco e jovem em qualquer anuncio de qualquer loja, ou nas revistas, ou na televisão ou no cinema. Tudo de preferência retocado no Photoshop, mas sem te avisar para que você acredite que é possível. É só se esforçar. É só seguir a receita da coach de alimentação que nunca estudou sobre o assunto mas tem milhões de seguidores.

Sim, a magreza está de volta e é a hora de buscarmos a estética de uma usuária de heroína, como nos anos 90 e nos anos 2000, que causou uma onda de distúrbios alimentares entre meninas de 15 a 19 anos. Hoje, há levantamentos mostrando o aumento dos casos de desordem alimentar como se fosse uma pandemia infantil, afetando uma em cada três meninas. Fora os casos de Disformia Corporal, que nem diagnosticados são.

Só que ninguém vai te dizer que precisa ficar magra para conquistar capital social e afetivo. Agora, como dizem os homens em uma cena do filme da “Barbie”: “É o patriarcado, só que disfarçamos melhor”. Ninguém vai escancarar um “Emagreça!”, como faziam as revistas femininas dos anos 80, por aí, mas imagens de mulheres cada vez mais magras serão usadas para exemplificar o sucesso com fotos de antes e depois. Esses corpos esquálidos também serão usados para exaltar o luxo e há boatos de que modelos estariam perdendo os desfiles internacionais pois precisavam estar no tamanho americano zero, o 34 no Brasil.

Para comprovar que a magreza é um capital social (para mulheres), a Economist fez uma brilhante reportagem sobre a relação entre o corpo feminino e as oportunidades de emprego e salário. A chamada confirma o que os números apontaram: “É economicamente racional para mulheres ambiciosas se esforçarem ao máximo para serem magras”.

Já sabíamos que as oportunidades de trabalho para mulheres variam de acordo com a classe social, cor da pele, idade e também entre mães e não mães. Agora fica explícito que suas possibilidades de ascensão de carreira estão relacionadas também ao número da calça que você veste. O controle do tamanhos dos nossos corpos serve como manobra do contra-ataque da beleza exatamente como Susan Faludi escreveu em 1991, em seu já clássico livro “Backlash”. Lá, ela trazia os exemplos das construções imagéticas da moda e da beleza que formularam um “contra-ataque” que obrigou mulheres a ficarem concentradas em controlar seus corpos sem perceber que estavam numa armadilha maior. O que você sente como uma questão pessoal — “ah o meu corpo é isso ou aquilo” — é, de fato, algo que atravessa a todas nós, em maior ou menor grau, porque é social e político. Então, fique aí com esse trecho do livro que usei para escrever um artigo sobre o assunto para um congresso de moda, mas recebi um parecer de que a publicação de Susan era “antiga demais” para ser usada como referência bibliográfica principal:

“Um backlash contra os direitos da mulher tem sucesso na medida em que parece não ter conotações políticas, na medida em que se mostra como tudo, menos como uma luta. Ele é tanto mais poderoso, quanto mais consegue transformar-se numa questão privada, penetrando na mente da mulher e torcendo a sua visão para dentro, até ela imaginar que a pressão está toda na cabeça dela, até ela começar a impor as regras do backlash a si mesma.”

Zero surpresas com o parecer que recebi, publicações feministas sempre vão ser mal lidas, mal reconhecidas e pouco relevantes num mundo onde nosso valor só pode ocupar o corpo. Valemos quanto (menos) pesamos.

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