Coluna da Vanessa Rozan: Um novo rosto — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Um novo rosto

Normal você achar, com 20 anos, que tem traços arredondados. O que não é normal é você achar que tem que arrumar isso para ser feliz

10 de Fevereiro de 2023

Se você achava que o padrão de beleza atual é parecer com uma Kardashian, puxa a cadeira que, como escreveu Sangeeta Singh-Kurtz na excelente reportagem da The Cut, a novidade é outra. Parece que é o fim de uma era no Hemisfério Norte, onde a harmonização facial – ou melhor, a padronização facial, também conhecida por deixar todo mundo com a mesa cara – fez miséria com preenchedores e toxina e criou “uma estética específica marcada por rostos em forma de coração, narizes minúsculos e lábios e bochechas carnudos”. A gente poderia até respirar tranquilos aqui se não tivesse na porta um novo rosto. Sai o anguloso e preenchido de bebê, com lábios de travesseiro e entra a remoção de “gordura” facial. O tal novo rosto tem um nome: snatched, algo como arrebatado, chocado, surpreso, que é como talvez você fique agora ao ler as próximas linhas.

Com a febre dos preenchedores, hoje você encontra clínicas especializadas até em shoppings, onde é possível fazer sua harmonização na hora do almoço e pagá-la em suaves prestações. O que antes era um segredo das celebridades hoje é compartilhado em posts do tipo “antes e depois” pelas próprias pacientes famosas – ou quase famosas. Harmonização é como comprar uma bolsa de grife: vale compartilhar essa conquista com seus seguidores, afinal “cheguei lá”. Em tese, apenas médicos dermatologistas e dentistas especializados na área podem fazer uma harmonização. Mas, em uma única pesquisa, achei cursos de 16 horas que habilitam os profissionais a se iniciar na área.

Harmonização é como comprar uma bolsa de grife: vale compartilhar essa conquista com seus seguidores, afinal ‘cheguei lá’

Corta para a bichectomia, uma cirurgia estética que consiste na remoção de parte ou de toda a bolsa de tecido adiposo que todo mundo tem na bochecha, um procedimento irreversível, até onde eu entendi. Vou digitar de novo: I-R-R-E-V-E-R-S-Í-V-E-L. Diferente de preenchedores que podem dar ruim, sair com o tempo ou mesmo serem removidos (com processo doloroso y caro), a bichectomia não. Mesmo as tais sobrancelhas definitivas (eu estava lá vendo isso tudo em 2008 e pensando no ruim que ia dar em alguns anos), hoje podem ser removidas com lasers específicos, revertendo minimamente qualquer possível arrependimento.

Agora, se você tem o Tik Tok instalado, basta fazer uma pesquisa rápida em #buccalfatremoval e verificar que hoje essa tag tem 110 milhões de visualizações. São pencas de antes e depois e fotos e mais fotos de celebridades que parecem ter feito o procedimento. Muitos influencers de beleza e – e de tudo – contam o quanto o procedimento mudou a vida deles e que, agora sim, são seres muito mais felizes.

Tenho certeza que tem gente que pode se beneficiar desse procedimento; que, com análise cautelosa e acompanhamento profissional, talvez a remoção dessa gordura possa mesmo mudar a vida. Há também excelentes profissionais que sabem manejar os injetáveis sem deixar todo mundo com a mesma cara. Mas vamos direto para a verdade, segura essa: usuários de Tik Tok são em sua maioria jovens com idade entre 19 e 24 anos e eu me lembro bem das minhas selfies de Cybershot de quando eu era um deles. Se você tem mais de 40, vale uma comparação. Pegue suas fotos de 15 ou 20 anos atrás e compare com as de hoje. Vai perceber que, sim, o rosto era naturalmente mais arredondado, com mais gordura, mais colágeno, mais água (mais sonhos…), que são o que – PASMEM – garantem a sustentação da pele, a firmeza. Conforme o tempo passa, a nossa pele fica mais fina, perde as camadas de colágeno e também a de gordura, que segura tudo o que vem em cima. É isso que dá aquela sensação de derretimento da face, coisa normal da vida que a gente ainda não normalizou por aqui.

Se não olharmos o que está por trás de cada nova trend, iremos brincar de pôr e tirar alguma coisa no rosto de tempos em tempos

Remover as bolas de Bichat, nome técnico do procedimento, para muitos médicos, é algo que não compromete a sustentação da pele ou a estrutura do rosto com o passar dos anos; seria então um trem que não faz diferença, meio sem função. Eu não sou médica e falo em outro registro. Mas lembro que o silicone também era inofensivo, até que se descobriu a doença do silicone. Agora mesmo discutimos o quanto os preenchedores labiais “andam” após algum tempo, migrando para fora dos lábios, como mostra a mesma reportagem da The Cut. Os médicos, até agora, não sabem explicar o porquê.

Normal você achar, com 20 anos, que o seu rosto é mais arredondado. O que não é normal é você achar que tem que arrumar isso pra ser feliz. Infelizmente essa trend te pega na hora errada de propósito; o capitalismo das redes sociais e da influência sabe o que está fazendo direitinho. Enquanto tudo estava no campo da maquiagem e se fazia um, dois, três passos para afinar o rosto, até que estava tudo bem. Maquiagem, no pior dos casos, lavou, saiu. Agora, se não discutirmos a estrutura e aprendermos a olhar e entender o que está por trás de cada nova trend, iremos brincar de pôr e tirar alguma coisa no rosto de tempos em tempos. Essa busca pela conformidade com um desenho impossível de ser alcançado vai acabar por moldar nossa identidade. Eu falo e repito: os rostos de filtros de Instagram e de outras redes sociais são criados por inteligência artificial, para compor volumes que não existem na realidade. São a mistura feita por algoritmo de traços eurocêntricos, com recortes de outras etnias, como olhos superamendoados e lábios supervolumosos, que só podem ser conquistados se uma pessoa de dedica a moldar o próprio rosto como argila.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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