#JustiçaporMiguel: privilégio da branquitude vai da exploração de mão de obra à morte de crianças — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

#JustiçaporMiguel: privilégio da branquitude vai da exploração de mão de obra à morte de crianças

A exploração desmedida da mão de obra de mulheres que integram a economia de cuidados, de maioria negra e mães de crianças negras, permite entrever uma fratura brutal que atinge nossas futuras gerações

26 de Julho de 2023

É histórica a decisão da 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que, no dia 28 de junho, condenou Sérgio Hacker Corte Real e Sari Corte Real — ex-prefeito e ex-primeira dama do município de Tamandaré (PE) — a pagar uma indenização de R$386 mil por danos coletivos. Essa determinação não versa sobre a morte do menino Miguel, mas sobre a contratação fraudulenta de Mirtes Santana e sua mãe Marta Santana, que embora exercessem as atividades na residência do casal em Recife, eram registradas pela prefeitura de Tamandaré.

A decisão carrega em si importantes significados simbólicos que descortinam as relações de trabalho nefastas vividas por trabalhadoras domésticas, com raízes coloniais nesse passado que insiste em não passar. Para o Ministro José Roberto Freire Pimenta, relator do processo, “em virtude dessa ideologia racista operante no mundo do trabalho, mantiveram-se intocados os benefícios usufruídos pelas pessoas brancas que ao longo da história lucraram em cima da mão de obra negra”.

Dois grandes aspectos fazem da sentença motivo de celebração de todos que percebem o racismo como elemento definidor das relações sociais e das hierarquias no Brasil. O primeiro deles é o entendimento de que o dano causado pelo casal não afeta diretamente somente à Mirtes e sua mãe, mas implica toda a coletividade de mulheres negras. Como se tratam de relações de poder estruturais, isto é, que perpassam todo tecido social, o dano é compartilhado. O segundo aspecto refere-se ao reconhecimento textual por parte de um tribunal superior de que o privilégio branco – como âncora do racismo – foi preponderante para a conformação das relações trabalhistas espúrias entre o casal e Mirtes, culminando de modo dramático na morte do menino negro Miguel, de apenas 5 anos.

É como se o privilégio branco fosse o pavimento de uma estrada de curvas sinuosas e que envolve improbidade administrativa, peculato, superexploração de mão de obra e, no fim da trilha, a morte de uma criança. A branquitude é o lócus de privilégio materializado por meio dessas teias relacionais que solapam a lei e a democracia, utilizando do esforço de grupos sociais não brancos e de recursos públicos para benefício próprio e exclusivo. Parece querer manter intactas as hierarquias raciais presentes na sociedade brasileira, edifício no qual pessoas negras são enxergadas como propriedade, recompondo o período escravista.

Desproteger mulheres pardas e pretas é desamparar crianças e interromper oportunidades de rompimento com ciclos de reprodução de assimetrias

O reconhecimento do tribunal é que “[a morte de Miguel] é o desfecho de uma cadeia de problemas estruturais envolvendo as violações trabalhistas sofridas pela família de Mirtes”. Portanto, a justiça legitima a costura existente entre as relações de trabalho ancoradas em práticas que remontam o colonialismo e o triste destino de Miguel.

Mirtes Santana deu declaração contundente à Repórter Brasil em que afirma: “A maioria das mulheres que trabalham no serviço doméstico são negras. E as pessoas que estão no poder, contratando, são brancas. Há um pacto da branquitude para que a gente não tenha autoconhecimento e possa usufruir do nosso trabalho de forma até ilegal.” Essa declaração é impactante pois deixa incontornável que analisemos as relações de poder no trabalho sob a lente racial, em que a brancura é elemento de vantagem subjetiva e material. Como exemplo, dados da plataforma CEDRA, extraídos do Censo Demográfico de 2010, apontam que o rendimento por hora de trabalho em ocupações predominantemente negras era ? do rendimento médio das ocupações predominantemente brancas. Em números absolutos, correspondia a R$471,06 contra R$2532,56.

Importa sublinhar que a exploração desmedida da mão de obra de mulheres que integram a economia de cuidados – de maioria negra e mães de crianças negras – permite entrever uma fratura brutal que atinge nossas futuras gerações. Persiste a convivência, lado a lado, no mínimo incoerente, da aposta feita pela Carta de 1988 na adoção de um modelo universal de infância, dotada de direitos, e o vácuo de instituições incumbidas por proteger e garantir os brasileiros do amanhã.

A trama que finda no trágico falecimento de Miguel fere de morte, também, a decisão coletiva de incluir as infâncias negras e pobres na ordem democrática. É dever da família, da sociedade e em especial do Estado zelar pelas crianças e pelos adolescentes, sujeitos de direitos. No auge da pandemia, Mirtes, longe de ser um caso isolado, precisou levar seu filho para o local de trabalho, uma vez que não contava com rede de apoio no âmbito da vizinhança, tampouco rede institucional capaz de cuidar de Miguel enquanto cumpria sua jornada laboral.

Desproteger Mirtes e tantas outras mulheres pardas e pretas é desamparar crianças e, ato contínuo, interromper oportunidades de rompimento com ciclos de reprodução de assimetrias. Mirtes representa, até onde sua genealogia nos possibilita conhecer, a segunda geração de trabalhadoras domésticas. Sua mãe, Marta, também prestava serviços domésticos para a mesma família. O que restaura, mais uma vez, o período colonial, como bem descreveu a sentença do TST.

O menino Miguel, sem dúvidas, encarnava a esperança da quebra do padrão de precariedades daquele núcleo familiar. Filhos são os nossos sonhos de uma continuidade melhor, de um futuro mais ameno, de um amanhecer diferente. Mas o colonialismo, como aponta a intelectual Grada Kilomba, “é uma ferida que nunca foi tratada, uma ferida que dói sempre, por vezes infecta e outras vezes sangra.”

Thales Vieira é sociólogo (PUC-Rio) e mestre em antropologia (UFF). Atuou no poder público, em organismos internacionais e em fundações. Pai da Naíma, Nina e Maya, é fundador e diretor executivo do Observatório da Branquitude.

Carol Canegal é mestre e doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou como pesquisadora no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF) e analista de políticas públicas no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Atualmente é coordenadora de pesquisas do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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