Trecho de Livro: A Morte de Jesus, de J.M. Coetzee — Gama Revista

Trecho de livro

A Morte de Jesus

Com implicações bíblicas, o vencedor do Nobel J.M. Coetzee encerra sua trilogia literária desafiando os limites da ficção

Leonardo Neiva 30 de Junho de 2023

No centro da história, um jovem tão preguiçoso e atrevido quanto potencialmente genial. Reconhecendo a inteligência peculiar do filho David, seus guardiões Simón e Inés têm dificuldade de decidir como direcionar os talentos ainda indefinidos do garoto. Considerado intratável pelos professores da escola pública que chegou a frequentar, David leva jeito para a dança, mas ninguém é capaz de lhe ensinar nada que ele já não saiba. Também não gosta de fazer contas por um preconceito com a aritmética e considera “Dom Quixote” a única leitura de que precisa para compreender o mundo.

MAIS SOBRE O ASSUNTO
Pança de Burro
Como dar liberdade aos adolescentes
As Margens e o Ditado

A trama potente e trágica de “A Morte de Jesus” (Companhia das Letras, 2023) fecha com rigor a mais recente trilogia do vencedor do Nobel de Literatura J.M. Coetzee. Um dos expoentes mais importantes da literatura contemporânea, o autor sul-africano, que hoje vive na Austrália, decidiu centrar seus três últimos livros na história de um homem, uma mulher e um garoto que acabam formando uma família improvável. Embora a referência bíblica nos títulos esteja longe de ser casual — as obras anteriores se chamam “A Infância de Jesus” e “A Vida Escolar de Jesus” (Companhia das Letras, 2013 e 2018) —, as alegorias que o escritor traça com a vida de suas personagem também não soam nada óbvias.

Abordando temas como memória, educação, infância e a condição eternamente deslocada do estrangeiro, o autor de livros como “Desonra” e “Vida e Época de Michael K.” (Companhia das Letras, 2000 e 2003), que lhe valeram dois Booker Prizes, conclui uma jornada existencial na literatura que pode até ter começado na fantasia, mas termina assustadoramente próxima da realidade. Com seu olhar tipicamente sóbrio e irônico, Coetzee desafia os limites da narrativa para espremer da ficção muito mais do que um simples comentário sobre o mundo contemporâneo.


É o quarto ano de residência deles no prédio de apartamentos. Embora o apartamento de Inés no segundo andar seja suficientemente grande para os três, por acordo mútuo ele alugou um apartamento para si no térreo, menor e com mobília mais simples. Ele consegue pagar por ele porque seus ganhos tiveram um aumento devido a um subsídio de incapacidade por causa de um problema nas costas que nunca sarou completamente, do tempo em que foi estivador em Novilla.

Ele tem seu próprio salário e seu próprio apartamento, mas não tem nenhum círculo social, não porque seja um ser antissocial ou porque Estrella seja uma cidade inamistosa, mas porque muito tempo atrás resolveu se dedicar sem reservas à criação do menino. Quanto a Inés, ela passa os dias e às vezes as noites cuidando da butique de moda da qual é coproprietária. Seus amigos pertencem ao Modas Modernas e ao mundo mais amplo da moda. Ele é deliberadamente pouco curioso em relação a essas amizades. Se ela tem amantes dentre esses amigos, ele não sabe e não quer saber, contanto que ela continue a ser uma boa mãe.

Sob o cuidado deles, David desabrochou. Está forte e saudável. Anos antes, quando moravam em Novilla, tiveram um embate com o sistema de educação pública. Os professores de David o acharam obstinado, intratável. Desde então, o mantiveram longe de escolas públicas.

Ele, Simón, tem certeza de que uma criança com uma inteligência inata tão clara pode ficar sem ensino formal. É uma criança excepcional, ele diz a Inés. Quem pode saber para que lado vão os seus dotes?

Na Academia de Música de Estrella, David assiste às aulas de canto e dança. As aulas de canto são supervisionadas pelo diretor da Academia, Juan Sebastián Arroyo. No que diz respeito à dança, não há na Academia ninguém que possa ensinar algo a ele. Nos dias em que resolve comparecer à aula, ele dança o que quer; os outros alunos acompanham ou, se não conseguem acompanhar, assistem.

Ele, Simón, dança também, embora seja um adepto tardio e sem qualquer talento especial. Ele o faz em particular, à noite, sozinho. Veste o pijama, põe o gramofone no volume baixo e dança para si mesmo, com os olhos fechados, até esvaziar a mente. Depois, desliga a música, vai para a cama e dorme o sono dos justos.

Os professores de David o acharam obstinado, intratável. Desde então, o mantiveram longe de escolas públicas

Quase todas as noites, a música é uma suíte de danças para flauta e violino composta por Arroyo para marcar a morte de sua segunda esposa, Ana Magdalena. As danças não têm título; o disco, prensado na sala dos fundos de uma loja na cidade, não tem rótulo. A música em si é lenta, solene, triste.

David não se digna a comparecer a aulas regulares e fazer, em particular, exercícios de matemática como um menino normal de dez anos, por causa do preconceito contra a aritmética encorajado nele pela falecida señora Arroyo, que afirmava aos alunos que passavam por suas mãos que números integrais são divindades, entidades celestes que existiam antes de o mundo físico se constituir e que continuarão a existir depois que o mundo acabar e, portanto, merecem reverência. Misturar números uns com os outros (adición, sustracción) ou cortá-los em pedaços (fracciones) ou aplicá-los a medir quantidades de tijolos ou farinha (la medida) constitui uma afronta à divindade deles.

Em seu décimo aniversário, Simón e Inés deram a David um relógio de pulso, que David se recusa a usar porque (diz ele) fixa os números em ordem circular. Nove horas pode vir antes de dez horas, diz ele, mas nove não está nem antes nem depois de dez.

À devoção aos números da señora Arroyo, que ganhava forma nas danças que ensinava aos alunos, David acrescentou um toque idiossincrático próprio: a identificação de números específicos com determinadas estrelas do céu.

Ele, Simón, não entende a filosofia dos números (que particularmente não considera uma filosofia, mas um culto) pregada na Academia: abertamente pela señora falecida, mais discretamente pelo viúvo Arroyo e seus amigos músicos. Ele não a entende, mas a tolera, não só em consideração a David, mas também porque, quando está no humor certo, durante suas danças noturnas, às vezes lhe vem uma visão, momentânea, passageira, daquilo que a señora Arroyo costumava falar: esferas prateadas, numerosas demais para que se possam contar, rodando em torno uma da outra com um zumbido extraterreno, no espaço sem fim.

Ele dança, tem visões, mas não se vê como um convertido ao culto dos números. Para suas visões, há uma explicação razoável que o satisfaz quase sempre; o embalo ritmado da dança, o canto hipnótico da flauta, induzem a um estado de transe no qual fragmentos são sugados do leito da memória e rodopiam diante do olho interior.

Sabe de cor o Dom Quixote, numa versão abreviada para crianças; ele o trata não como uma história inventada, mas como uma história verdadeira

***

David não consegue ou não quer fazer somas. Mais preocupante ainda, ele se nega a ler. Quer dizer, depois de ter aprendido a ler sozinho o Dom Quixote, ele não mostra interesse em ler nenhum outro livro. Sabe de cor o Dom Quixote, numa versão abreviada para crianças; ele o trata não como uma história inventada, mas como uma história verdadeira. Em algum lugar no mundo, ou se não neste mundo no próximo, Dom Quixote está no exterior, montado em seu corcel Rocinante, com Sancho trotando a seu lado em um burro.

Tiveram discussões a respeito de Dom Quixote, ele e o menino. Se você ao menos se abrisse para outros livros, diz ele, descobriria que o mundo tem uma multidão de heróis além do Dom, e heroínas também, conjurados do nada pelas mentes férteis dos autores. Na verdade, como um menino dotado, você pode inventar heróis próprios e enviá-los mundo afora para viver aventuras.

David mal escuta. “Não quero ler outros livros”, ele diz, desinteressado. “Já sei ler.”

“Você tem um entendimento errado do que significa ler. Ler não é só transformar sinais impressos em sons. Ler é uma coisa mais profunda. Ler de verdade significa ouvir o que o livro tem a dizer e refletir a respeito — talvez até ter uma conversa com o autor na sua cabeça. Significa aprender sobre o mundo — o mundo como ele é de fato, não como você quer que ele seja.”

“Por quê?”, David pergunta.

“Por quê? Porque você é jovem e ignorante. Você só vai se livrar da sua ignorância ao se abrir pro mundo. E o melhor jeito de se abrir pro mundo é ler o que outras pessoas têm a dizer, pessoas menos ignorantes que você.”

“Eu conheço o mundo.”

“Não, não conhece. Não sabe absolutamente nada do mundo além do seu limitado campo de experiência. Dançar e chutar uma bola são boas atividades em si, mas não ensinam sobre o mundo.”

“Eu li o Dom Quixote.”

O melhor jeito de se abrir pro mundo é ler o que outras pessoas têm a dizer, pessoas menos ignorantes que você

“Eu repito, Dom Quixote não é o mundo. Longe disso. Dom Quixote é uma história inventada sobre um velho alucinado. É um livro divertido, suga você para dentro da sua fantasia, mas a fantasia não é real. Na verdade, a mensagem do livro é exatamente alertar leitores como você para que não sejam sugados por um mundo irreal, um mundo de fantasia, como acontece com o Dom Quixote. Não se lembra de como o livro termina, quando Dom Quixote cai em si e fala para a sobrinha queimar seus livros para que ninguém no futuro tenha a tentação de seguir o seu caminho louco?”

“Mas ela não queima os livros.”

“Ela queima! Pode não dizer isso no livro, mas ela queima! Ela fica até muito agradecida de se livrar deles.”

“Mas ela não queimou o Dom Quixote.”

“Ela não pode queimar o Dom Quixote porque está dentro do Dom Quixote. Não dá para queimar um livro se você está dentro dele, se é um personagem dele.”

“Dá, sim. Mas ela não queima. Porque se tivesse queimado eu não teria o Dom Quixote. Ele estaria queimado.”

Ele sai intrigado dessas disputas com o menino, ainda que obscuramente orgulhoso: intrigado porque não consegue superar um menino de dez anos numa discussão; orgulhoso porque o menino de dez anos consegue tão habilmente confundi-lo. O menino pode ser preguiçoso, pode ser arrogante, ele diz a si mesmo, mas pelo menos o menino não é burro.

Produto

  • A Morte de Jesus
  • J.M. Coetzee
  • Companhia das Letras
  • 192 páginas

Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação