Meu Irmão, Eu Mesmo
Em livro autobiográfico, escritor e ativista LGBTQIA+ João Silvério Trevisan lida com a perda do irmão, que era também seu melhor amigo
Em 1992, o escritor, dramaturgo e cineasta João Silvério Trevisan descobriu que havia sido infectado pelo vírus HIV. Ativista histórico da comunidade LGBTQIA+ no Brasil, ele sabia que, na época, o diagnóstico equivalia praticamente a uma sentença de morte. Mas a tragédia acaba atingindo mesmo o irmão Cláudio que, pouco depois, foi acometido por um câncer linfático fulminante e morreu aos 48 anos. Filho mais velho de uma família de classe média baixa do interior de São Paulo, João mantinha uma estreita amizade com o irmão, história que traz à tona em seu novo livro autobiográfico “Meu Irmão, Eu Mesmo” (Alfaguara, 2023)
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Foi quando contou a Cláudio, considerado o mais progressista da família, sobre sua homossexualidade que os laços entre João e o irmão se estreitaram de vez. “Tornou-se meu admirador e um amigo incondicional”, escreve na obra, na qual reflete sobre as primeiras lembranças ao lado de Cláudio e a melhor forma de abordar sua memória. “Sinto necessidade de lhe falar diretamente, como se compartilhássemos os fatos. Parece um modo mais legítimo de abrir espaço para a intimidade real que experimentamos quando você ainda era vivo.”
Por meio do amor incondicional por Cláudio e da dor de compartilhar seus últimos momentos, o escritor revela muito de si de maneira surpreendentemente franca. Fala das relações amorosas e sua vida intelectual, tendo como pano de fundo a luta da comunidade LGBTQIA+ na década de 1990 e a batalha interna frente à doença então praticamente desconhecida. Ao resgatar a infância ao lado de Cláudio, que desde cedo demonstrava um dom para atrair acidentes e ferimentos, o autor lida à sua forma, numa prosa limpa, direta e evocativa, com essa relação de irmãos e amigos cuja força se opunha à fragilidade de seus corpos.
Invocação
Como me aproximar de Cláudio José Trevisan? Faço a pergunta para lhe pedir licença, meu irmão, no início da empreitada hercúlea de adentrar sua história. Sinto necessidade de lhe falar diretamente, como se compartilhássemos os fatos. Parece um modo mais legítimo de abrir espaço para a intimidade real que experimentamos quando você ainda era vivo. Ao mesmo tempo, tiro você do anonimato que tenderia a torná-lo distante, como se eu o manipulasse ao relatar com minha voz a história que vivemos juntos. Uma tal interlocução não era prevista, nem fácil. Apesar do risco de não ser fiel ao tom das nossas conversas de antigamente, vou invocar sua presença direta quando achar necessário. Se a partir de agora eu lhe falo como a um personagem, é seu destino que me guiará.
Para tanto, peço sua bênção, meu irmão.
Sinto necessidade de lhe falar diretamente (…). Parece um modo mais legítimo de abrir espaço para a intimidade real que experimentamos quando você ainda era vivo
Postais
No jorro da memória, você, meu irmão, surge nalguma lembrança fantasmagórica, assim por nada. Como aquela, num anoitecer longínquo de dezembro de 1956, em Ribeirão Bonito. Postados diante da nossa casa, você e Toninho, irmãos inseparáveis de oito e sete anos, têm os olhos fixos no alto do morro Bom Jesus, que se ergue ali no fim da rua. Sem se dar conta dos seus corações a galope, aguardam o momento da tão propalada inauguração. De repente, faz-se a luz de neon que revela os contornos da capela de Nossa Senhora Aparecida, lá no topo. “Óia só, maninho!”, vocês exclamam seu deslumbramento, e nem há tempo de suspirar, porque a banda da cidade irrompe com o dobrado “Dois corações”. Quase ao mesmo tempo, a fonte começa a jorrar por entre luzes multicoloridas, e suas vozes se juntam ao grito uníssono que sobe de todos os cantos da cidade. Bocas escancaradas emudecem de pasmo. E os olhos se arregalam quando os fogos de artifício, inevitáveis nas festas anuais, enchem o céu de grandeza. No ímpeto dessa chuva de meteoritos, que abala e transfigura a pequena Ribeirão, vocês são levantados do chão pelo encantamento. Aquele era o mundo real, tecido de mistérios. Vocês riem de felicidade que, irradiada a partir do morro, concentrava todos os nexos do mundo ali, em Ribeirão Bonito. Aos borbotões, saltam da lembrança as marchas de John Philip Sousa que abriam a sessão domingueira do cine Piratininga, e nos seriados ecoam os urros do Tarzan, Nioka enfrenta perigos, Flash Gordon viaja ao planeta Mongo e seguem-se os tiroteios dos caubóis enquanto a molecada se contorce de entusiasmo, “Aí, mocinho”, e braços triunfais se levantam no The End, até o próximo domingo, maninho, um novo episódio da vida de verdade, projetada na tela de pano, em que bandidos sempre saem derrotados. Onde tais lembranças irão guardar sua significância tão desmedida, tão efêmera, meu irmão? Como resgatar o prazer sem tamanho da vida, ao mastigar o sanduíche de bife que tio Gustinho fritava com molho inglês no bar do Clube da Cidade? Não seria da ordem dos grandes banquetes que, pelos séculos afora, nunca mais se repetirão, nem que fossem principescos? Postais para o futuro.
Como resgatar o prazer sem tamanho da vida, ao mastigar o sanduíche de bife que tio Gustinho fritava com molho inglês no bar do Clube da Cidade?
Cacos
Nessa arqueologia elementar, resgato certas marcas de estranheza na infância do meu irmão Cláudio. Seu ouvido purgava, recorrentemente. Nossa mãe pingava óleo quente. E seu nariz vivia escorrendo secreção. Chorão e fechado, parecia um garotinho que precisasse resguardar sua pequena intimidade, seus mistérios. Lembro de um episódio marcante, que ninguém em casa sabia explicar. Durante o período do grupo escolar, Cláudio passou a colecionar borrachas, aquelas vermelhas de um lado e azuis do outro, por ele organizadas rigorosamente dentro de uma gaveta. Era uma coleção enorme, que não parava de crescer. Ele manifestava orgulho e zelo por essa coleção. Nada podia deixá-lo mais irritado do que alguém tirá-las da ordem. E exigia devolução quando se via pressionado a emprestar alguma. Comprava suas borrachas com a grana que ele e nosso irmão Antoninho ganhavam em bicos diversos, como engraxar sapatos após a missa de domingo no largo da Matriz, vender sorvete de fabricação caseira, ajudar numa farmácia ou percorrer a cidade oferecendo bananas de porta em porta — para receber uma gorjeta da dona da quitanda. Com pouca diferença de idade entre si, Cláudio e Toninho eram parceiros nas brincadeiras e nos “negócios”. Quando pequenos, viviam se chamando de “mano” e “maninho”, talvez porque tinham descoberto a palavra e a achavam chique, em substituição ao desgastado “irmão”. Nesse conluio, encontraram outro meio mais curioso (e talvez mais rentável) de obter alguma renda. Periodicamente, ambos apanhavam um saco de estopa e faziam a ronda em fazendas, sítios e matos ao redor da cidade recolhendo todo tipo de ossos que encontravam, desde boi morto por cobra ou por doença até carcaças descartadas de gado ou de porco consumidas pelas famílias sitiantes. Os donos até
agradeciam a limpa higiênica. Os ossos ficavam estocados no porão de nossa casa, à espera do caminhão que os comprava para revender às fábricas de pentes e botões. A renda como catadores de ossos só não era melhor porque o caminhão aparecia poucas vezes e a garimpagem rigorosa esgotava as ossadas, que demoravam meses para acumular outra vez. Tudo isso certamente permitia sustentar a crescente coleção de borrachas. A prática continuou em São Paulo, depois que Cláudio conseguiu trabalho em uma farmácia do bairro, entre seus doze e treze anos. Para economizar, ele fazia longos trajetos a pé, e aplicava a poupança da passagem de ônibus na aquisição de novas borrachas, estocadas em fileiras quase militares. Nunca entendemos de onde vinha aquele fascínio, quase obsessivo.
Chorão e fechado, parecia um garotinho que precisasse resguardar sua pequena intimidade, seus mistérios
As estranhezas ocorreram também em acidentes que marcaram seus primeiros anos de vida. Certa vez, ainda em Ribeirão Bonito, mamãe organizou uma novena, dessas que rodavam de casa em casa pela cidade. As mulheres da vizinhança se juntavam para rezar o rosário, em especial quando se tratava de pedir alguma graça ou pagar promessa. Nos intervalos das rezas, era comum servirem docinhos, bolos e licores de anisete ou jabuticaba, que mamãe preparava com pinga. Em casa, todos ajudavam, inclusive Cláudio. Então com uns oito anos, gostava de calçar alpargatas Roda de pano, cujas solas de corda não eram muito práticas para crianças ansiosas. Alguém o encarregou de levar até a sala uma licoreira cheia, para servir as visitas. Cláudio tropeçou na passadeira e caiu, com o rosto diretamente em cima dos cacos da vasilha espatifada. Uma cena assustadora, por causa do sangue. Aparentando calma, mamãe tirou um caco do seu rosto. Por sorte, nada pior aconteceu. Resultou apenas uma cicatriz no lado esquerdo, que até adicionou um charme especial aos seus traços faciais.
No início da adolescência, outro fato inusitado. Já em São Paulo, Cláudio foi mordido por uma cachorra com sintomas de infecção pelo vírus da raiva. Assim como no interior, nas periferias das grandes cidades esses cães doentes costumavam fugir de suas casas e caminhavam a esmo pelas ruas, atacando outros animais e seres humanos. Talvez ao tentar brincar com a cachorra, conhecida como Diana, Cláudio recebeu uma mordida, e poderia ter se infectado com o vírus, que provoca paralisia muscular generalizada. Não sei onde mamãe se informou ou se sabia previamente da necessidade de levar a cabeça do animal para analisarem o cérebro contaminado. Depois de procura aflitiva pelo bairro, ela conseguiu localizar a cachorra e, ante a recusa dos vizinhos, decapitou-a por sua conta. No Instituto Pasteur, para onde levou a cabeça, um exame laboratorial confirmou a doença. Daí foram semanas em que mamãe levava Cláudio para aplicação de injeções dolorosas na barriga, provavelmente com soro antirrábico, além da vacina específica. Foi o que evitou a infecção.
Foi um corre-corre para levá-lo a um hospital nas proximidades, onde ele passou por exames. Cláudio teria uns treze anos. Felizmente, salvou-se mais uma vez
No ano seguinte, ainda em São Paulo, aconteceu outro incidente quase fatal. Lurdinha, Cláudio e Toninho estudavam no curso noturno de um colégio na Freguesia do Ó. Certa noite, voltavam bem tarde pela avenida mal iluminada. Próximo à rua onde morávamos, numa curva perigosa, um jipe se desgovernou ao ultrapassar um ônibus e atropelou Cláudio, que vinha distraído pelo meio-fio, do outro lado da avenida. Foi um corre-corre para levá-lo a um hospital nas proximidades, onde ele passou por exames. Cláudio teria uns treze anos. Felizmente, salvou-se mais uma vez.
- Meu Irmão, Eu Mesmo
- João Silvério Trevisan
- Alfaguara
- 256 páginas
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