O Espírito da Floresta
Em meio à crise Yanomami, livro reúne reflexões do xamã Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert sobre a floresta e os impactos devastadores de sua destruição
Quando o xamã Yanomami Davi Kopenawa publicou “A Queda do Céu” (Companhia das Letras, 2015), em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, os autores empreenderam uma pequena revolução na visão sobre os povos indígenas e a proteção da natureza. Agora, a dupla retorna às prateleiras com “O Espírito da Floresta” (Companhia das Letras, 2023), coletânea de reflexões e diálogos produzidos ao longo de duas décadas, que evoca os saberes dos Yanomami sobre a biodiversidade e o contato com as florestas, assim como os imensos perigos de sua destruição. A tradução da obra, publicada primeiro na França, é de Rosa Freire d’Aguiar.
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Logo na abertura de um de seus textos mais fortes no livro — cujo trecho você lê logo abaixo –, o pensamento de Kopenawa parece refletir a recente crise dos Yanomami, uma tragédia humanitária que vinha sendo silenciada até pouco tempo atrás: “Vocês não conhecem nossa floresta e nossas casas. Não compreendem nossas palavras. Assim, era possível que acabássemos morrendo sem que vocês soubessem.”
Albert, que conviveu por mais de três décadas com os Yanomami, escreve no prólogo que os textos restituem ainda uma versão da memória, da sensibilidade e da intensidade das trocas entre os dois autores sobre o “espírito da floresta”. E lembra que o território dos Yanomami está hoje “devastado por uma invasão maciça de garimpeiros ilegais que não para de intensificar-se, submetendo mais da metade da população Yanomami a graves problemas de saúde, violência e exploração sexual, insegurança alimentar e degradação social.”
Gente de perto, gente de longe
Davi Kopenawa
DEFENDER A FLORESTA
É possível que vocês tenham ouvido falar de nós. No entanto, não sabem quem somos realmente. Não é uma boa coisa. Vocês não conhecem nossa floresta e nossas casas. Não compreendem nossas palavras. Assim, era possível que acabássemos morrendo sem que vocês soubessem. É por isso que, se ficarmos no esquecimento de vocês como tartarugas escondidas no chão da floresta, penso que é pena.
Os brancos em torno da nossa terra são hostis. Não sabem nada da gente e nunca perguntam como viviam nossos ancestrais. Só pensam em ocupar nossa floresta com seu gado e em destruir nossos rios para catar ouro. Só a gente de longe quer nos conhecer e nos defender. Suas palavras são fortes e vêm nos ajudar. Graças a elas, a gente de perto, que não para de falar contra nós, desistirá de invadir a floresta.
Brancos vieram de longe para fazer uma exposição de nossas imagens. Viveram entre nós e ouviram nossas palavras. Viram-nos com seus próprios olhos e comeram nossas comidas. Fizemos amizade. Agora, o pensamento deles é direito, e eles estão ao nosso lado. Na volta deles, falarão de nós para as pessoas de suas terras. Contarão o que viram e ouviram na floresta. Mostrarão nossas imagens e farão ouvir nossas vozes. Muitos deles, por sua vez, nos compreenderão. Se for assim, vou ficar feliz. Será uma coisa bonita e direita.
Quando a gente de longe nos conhece e fala de nós, a gente de perto hesita em nos destruir. Sem o apoio dessas palavras amigas, os colonos e os fazendeiros continuarão a se aproximar de nós. Vão talvez um dia consertar a rodovia que deixaram abandonada na nossa floresta. Então, os garimpeiros vão de novo afluir. Os políticos mandaram máquina para furar o solo e procurar minerais, e os militares vão ser cada dia mais numerosos.
É assim. Entre os brancos há os que são gente de Omama a. São aqueles cujo pensamento é direito e que nos defendem. Os outros — aqueles cujo espírito é enfumaçado e cheio de esquecimento, os que querem destruir a floresta e expulsar os espíritos — são a gente de Yoasi a, o irmão mau de Omama a, que nos deixou as doenças e a morte.
Os brancos em torno da nossa terra são hostis. Não sabem nada da gente e nunca perguntam como viviam nossos ancestrais. Só pensam em ocupar nossa floresta
No momento em que eu falo, vocês trabalham perto de nós. Olham nossa floresta e a Montanha do Vento que está acima dela. Vocês nos veem comer, trabalhar e dormir. Vocês nos veem caçar e fazer dançar nossos ancestrais animais. Você nos veem agir como espíritos. Vocês desenham nossas palavras, pegam nossas imagens. Nós inalamos diante de seus olhos o pó yãkoana a para curar os nossos. Nós trazemos de volta o princípio vital das crianças, levado pelos espíritos maléficos. Nós salvaguardamos seu duplo animal ferido por caçadores distantes. Nós os defendemos contra os espíritos aves de rapina enviados por xamãs inimigos. Vocês nos observam e dizem: “Haixopë! É assim que, longe de nós, os Yanomami viviam desde sempre. Eles fazem descer os espíritos para curar. Nós não sabíamos”. Eu convidei vocês para virem à nossa aldeia para lhes dar esse pensamento.
Depois de fazerem muitas imagens na nossa casa e na nossa floresta, vocês vão levá-las para longe, para outras terras. Vão mostrá-las às crianças, às moças, aos moços, aos adultos e aos anciãos que irão ver a exposição. Eles farão perguntas e vocês responderão: “Sim, os Yanomami são outras pessoas; eles protegem sua floresta desde sempre”. Vocês vão lhes dar assim pensamentos direitos. Então, eles terão interesse por nós, quererão nos defender. Pensarão: “Haixopë! Gostamos de ver os Yanomami e ouvir suas palavras. São grandes xamãs. A floresta deles é bela e eles sabem defendê-la. Ela foi fechada, outrora, pelo governo do Brasil. Se outros brancos querem invadi-la, falaremos duro para afastá-los”.
Eu gostaria que aqueles que veem nossas imagens tenham esse pensamento. Então, ficarei satisfeito, pois não quero mais que os brancos que nos são hostis continuem a dizer: “Os Yanomami são gente da floresta, como animais. São violentos. São preguiçosos e ocupam terra demais para nada”. Não quero mais que nossos filhos morram de malária e de gripe. Quero que cresçam na floresta e que, por sua vez, se tornem xamãs.
Não quero mais que nossos filhos morram de malária e de gripe. Quero que cresçam na floresta e que, por sua vez, se tornem xamãs
FAZER DANÇAR OS ESPÍRITOS
Inalamos o pó yãkoana a para entrar em estado de fantasma. É assim que fazemos dançar os espíritos xapiri pë. Antigamente, eles se deslocavam diante de todos. Hoje, suas imagens continuam presentes, mas ficaram invisíveis para as pessoas comuns. Eles se esconderam nas alturas e só descem a pedido dos xamãs. Cuidam de nós e conhecem os males que nos afligem. Eles os extirpam do corpo dos doentes e os jogam para longe, no mundo subterrâneo. Eles nos curam. É por isso que os espíritos são importantes para nós.
Os brancos não os conhecem. É preciso inalar por muito tempo o pó yãkoana a para fazê-los dançar e se tornar um xamã sólido, capaz de combater os espíritos maléficos e vingar os doentes. É tão importante como estudar nos papéis e mandar engolir remédios, como vocês fazem. Vocês devem pensar nisso com sensatez e dizer: “Sim, é bom ver e ouvir os Yanomami chamaremos espíritos”.
Nós não nos tornamos outros sem razão. Nossos espíritos são minúsculos mas muito poderosos. Sabem destruir as doenças e nos curar. Lutam contra os espíritos maléficos que nos devoram como caça. Podem calar os trovões, acabar com as chuvas muito abundantes e acalmar o vento de tempestade que quebra as árvores. Fazem crescer as plantas das roças e chamam a fertilidade da floresta que engorda a caça. Impedem o céu de desabar e a floresta de se encher de cobras ou epidemias. É nisso que os xamãs trabalham. A ação deles se estende bem para lá de nossas aldeias.
Os espíritos vivem nas montanhas de pedra, como a que está acima de nossa casa. É uma casa de espíritos, uma casa de ancestrais. Os espíritos são inúmeros. Seus caminhos se ramificam em todas as direções. A floresta é coberta por seus espelhos. Se eles não existissem mais, não estaríamos vivos: os espíritos maléficos teriam devorado até o último de nós. É assim. E se todos os xamãs viessem a morrer, a raiva dos espíritos do fogo celeste, Thorumari a, destruiria tudo para vingar a morte deles. Os brancos não escapariam disso, nós também não.
Se todos os xamãs viessem a morrer, a raiva dos espíritos do fogo celeste, Thorumari a, destruiria tudo para vingar a morte deles. Os brancos não escapariam disso, nós também não
É graças ao trabalho dos xamãs que estamos vivos. Por isso,vocês devem pensar que, quando nos defendem, os xamãs yanomami continuam a proteger vocês também. A terra de vocês parece muito distante. Não é o caso para os espíritos. É por isso que queremos que vocês os conheçam. Assim, talvez pensem:
Os xamãs yanomami nos defendem também. Não protegem apenas sua floresta. Os brancos já fizeram muitos deles morrer. Hoje isso deve parar. São habitantes da floresta. Defendem o que dela resta, o que ainda não foi destruído. Assim é bom. Se os Yanomami desaparecessem, acabaríamos morrendo também. Que os xamãs deles continuem, portanto, a combater as doenças, que continuema segurar o céu e a repelir o espírito da fome!
Os maus brancos de Yoasi a costumam nos repetir: “Mandem embora seus espíritos xapiri pë, eles não têm nenhum valor, eles sujam o seu peito!”. Mas a imagem de Omama a nos diz: “Se esquecerem os espíritos, seus filhos não vão parar de morrer. As chuvas vão cair sem limite e a noite não terá mais fim. Os espíritos maléficos e as epidemias vão invadir a floresta!”. É por isso que continuamos a convocar os espíritos e a recusar que os fazendeiros e os garimpeiros destruam nossa terra. Assim, é preciso explicar aos que veem nossas imagens e ouvem nossas vozes de longe sem ainda compreendê-las: “Os Yanomami querem continuar a fazer dançar os espíritos. Não deixem que seja enviada até eles a gente de Deus que quer pô-los em fuga. Esses espíritos são deles. Eles os conhecem. Só eles sabem inalar o pó yãkoana a para chamá-los e fazer ouvir seus cantos”.
- O Espírito da Floresta
- Bruce Albert e Davi Kopenawa
- Companhia das Letras
- 232 páginas
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