Coluna do Marcello Dantas: Precisamos falar de merda — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Precisamos falar de merda

É impressionante quão pouca atenção é dada ao intestino, órgão que participa da saúde do nosso corpo e da nossa mente

23 de Fevereiro de 2023

Falar do intestino é um tabu na nossa sociedade. Falar merda é muito mais aceitável do que falar de merda. Porém é no nosso intestino que vários caminhos da nossa vida são decididos. É impressionante quão pouca atenção é dada ao órgão que, na minha opinião, é quem realmente orquestra o cérebro. Sintomas tão vastos, do mau humor à depressão, são hoje associados a fenômenos intestinais.

Em 2008, fiz uma cirurgia bariátrica que mexeu nas profundezas do meu ser, cortou dois metros do meu intestino, reduziu o estômago e reconectou as glândulas. Perdi 60 quilos, acabei com a diabetes, mudei completamente meu metabolismo e passei a viver com inúmeras intolerâncias de quem passou a ter um ciclo intestinal substancialmente menor. Desde então o assunto intestino voltou meu interesse às ciências médicas, pois toda vez que surge alguma nova interação ela afeta a minha vida de forma contundente.

Muito além das questões estéticas e de peso, passei a ser sensível às questões sutis sobre o funcionamento dos hormônios, dos probióticos e das irritabilidades. No meio desse caminho, encontrei outras mentes que foram descobrindo que suas questões mais profundas só poderiam ser resolvidas se acessadas pela dimensão metabólica do intestino.

Durante décadas, desde a metade do século 20, temos nos intoxicado com antibióticos em todas as suas formas – seja em sua forma pura e direta ou pelos alimentos. Isso acarretou em mudanças essenciais no nosso microbioma. Atualmente com o aquecimento global, surgem novas mutações; consequentemente, novos desafios devem aparecer. A série de TV “The Last of Us” aborda, em tom de catástrofe distópica, o que acontece quando, com o aquecimento global, um fungo se adapta ao organismo humano e passa a controlar a mente humana. Futuro nada impossível nesse novo panorama.

Um dos maiores reservatórios de diversidade de microbiomas está nas populações indígenas que vivem isoladas nas florestas do mundo. Distantes dos antibióticos e dos alimentos processados industrialmente, essas populações possuem um valor inestimável de capacidade de cura e de reconexão com nossos biomas originais. Possuem as bactérias necessárias para tratar doenças como obesidade, depressão, ansiedade e Alzheimer.

Os microbiologistas Martin J. Blaser e Maria Gloria Dominguez-Bello da New York University, reconhecidos por investigar o esgotamento generalizado da diversidade do microbioma humano, são o tema do documentário “The Invisible Extinction“. O filme revela os planos de dois cientistas para criar o Micro-biota Vault – um repositório internacional, modelado após o banco de sementes de Svalbard Global Seed Vault, na Noruega – que conteria cepas de todas as bactérias conhecidas e a possibilidade de serem replicadas e introduzidas em pessoas que sofrem de um microbioma esgotado e das doenças relacionadas.

Praticamente todos os fenômenos relevantes da nossa existência passam por processos químicos que ocorrem em nossos intestinos

Giulia Enders em seu livro “ O Discreto Charme do Intestino” (WMF Martins Fontes, 2017) explora todas as camadas das manifestações do orgão na vida cotidiana — achar que ele é apenas um processador de alimentos é uma maneira grosseira de compreender as sutilezas dessa parte tão importante do nosso corpo. Das mais profundas depressões aos estados bipolares, da sensação de felicidade às erupções cutâneas, da obesidade à atração sexual. Praticamente todos os fenômenos relevantes da nossa existência passam por processos químicos que ocorrem em nossos intestinos.

Mas como podemos ser ativos nesses processos? Por meio de uma maior consciência sobre o que comemos. Depois da cirurgia bariátrica que vivi, passei a entender que leite era um veneno dificílimo de ser digerido. Ao mesmo tempo que, depois da segunda taça de vinho tinto, eu iria começar a ter uma reação alérgica e a espirrar compulsivamente, ou ainda que os açúcares e a frutose teriam consequências inevitáveis na proliferação da minha flora bacteriana intestinal. E que cada vez que eu tomasse antibióticos, teria que ativamente reconstituir essa flora, pois toda ela estaria seriamente comprometida.

O método mais eficaz até o momento para atuar nesse nível é o que se chama transplante de fezes, quando as fezes de uma pessoa saudável são liquidificadas e introduzidas no intestino grosso de uma pessoa que sofre alguma dessas doenças, com resultados impressionantemente eficazes e de resposta imediata.

Mas a grande descoberta que tive foram os probióticos, esses sim nossos maiores aliados numa batalha intestinal que antecede e perdurará além do nosso tempo de vida. É preciso entender que a única maneira que possuímos de criar uma forma de linguagem com nosso intestino é por meio das bactérias benéficas que enviamos a ele pela nossa boca. Os probióticos também podem ajudar a manter um sistema imunológico saudável, o que pode ter efeitos positivos na saúde e no bem-estar geral. De fato, alguns estudos apontam que os probióticos podem ser benéficos no tratamento de certos distúrbios psicológicos. Um deles apontou que um probiótico contendo Lactobacillus rhamnosus reduziu a ansiedade e melhorou o humor em voluntários saudáveis.

A maneira de criar uma forma de linguagem com nosso intestino é por meio das bactérias benéficas que enviamos a ele pela nossa boca

Os probióticos afetam o humor com seu impacto no eixo intestino-cérebro. Este eixo é um sistema de comunicação bidirecional e desempenha um papel importante na regulação do humor e das emoções. Os probióticos podem ajudar a modular o microbioma e melhorar a saúde geral e ter efeitos positivos na saúde mental.

Talvez esse seja um dos territórios das ciências médicas que ultrapassam a capacidade de relacionamento e síntese da mente humana. Somente o uso da inteligência artificial talvez consiga relacionar tantas variáveis entre microorganismos interagindo juntos em tantos contextos diferentes que incluem o clima, a quantidade de estresse e o tipo de alimentação, entre outros fatores.

A primeira maneira de monitorarmos a qualidade da nossa dimensão probiótica é conseguir falar mais sobre esse assunto tabu, que é o cocô nosso de cada dia. Em certas culturas o desenho dos vasos sanitários, como na Alemanha, é feito para que o usuário veja suas fezes. Na Holanda, em Amsterdã, foi criado o excelente Micropia Museum, o museu do cocô, que ensina as pessoas sobre as formas que o nosso organismo se manifesta na intimidade bacteriológica. A monitoração visual é a primeira forma de relacionamento com nossa saúde interior. Trazer o tópico para a mesa do jantar pode fazer com que as escolhas feitas ali levem mais em conta o que está acontecendo embaixo da mesa, em nossas vísceras. Às vezes, o óbvio é o maior não dito.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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