Trecho de livro: "Falso espelho" de Jia Tolentino — Gama Revista

Trecho de livro

‘Falso Espelho’

‘Os meios de comunicação continuam escrutinando a aparência das mulheres, mas de um jeito feminista.’ Leia trecho de novo livro de ensaios sobre identidade e autoimagem da jornalista e ensaísta Jia Tolentino

04 de Abril de 2020

“Ao longo da última década, acompanhamos uma mudança radical que parece épica e, ao mesmo tempo, pouco reconhecida: para uma mulher, passou a ser completamente normal compreender sua vida, e a vida de outras mulheres, sob uma ótica feminista. Enquanto antes era padrão chamar qualquer mulher difícil de lidar de “louca” ou “barraqueira”, “louca” e “barraqueira” agora são consideradas palavras que mascaram visões sexistas. Em outros tempos, os meios de comunicação escrutinavam a aparência física das mulheres; agora, eles continuam fazendo isso, mas de um jeito feminista. Tachar alguém de vadia, uma prática popular no início dos anos 2000, transformou-se em um chavão a ser evitado ainda no fim dessa mesma década, e depois, em 2018, num grande tabu cultural. A jornada, que foi de Britney Spears sem calcinha nas capas dos tabloides até a consagração de Stormy Daniel como heroína política adorada, tem sido tão acidentada e vertiginosa que é fácil não percebermos a profundidade dessa mudança.

A reconfiguração da dificuldade feminina, de uma responsabilidade a um produto, foi resultado de décadas e décadas de pensamento feminista que, de uma hora para outra, floresceu de forma muito persuasiva no espaço ideológico aberto da internet. Isso foi solidificado por uma espécie de engenharia narrativa conduzida retrospectivamente ou em tempo real: a vida das celebridades está sendo reescrita como textos feministas. O discurso feminista relativo às celebridades opera da mesma maneira que a maioria da crítica cultural na era das redes sociais: como disse Hua Hsu na New Yorker, ele segue a linha do “reconhecimento de padrões ideológicos”. Os escritores pegam a vida de uma celebridade e sua narrativa pública, iluminam-nas com luz negra e apontam para o sexismo quando ele começa a brilhar.

As celebridades têm sido a principal ferramenta didática por meio da qual o feminismo online identifica a força deformadora do julgamento patriarcal, e então resiste a ela. Britney Spears, inicialmente pintada como uma ingênua sem graça hipersexualizada que virou psicopata, agora parece alguém com quem devemos simpatizar: o público exigia que ela fosse sedutora, inocente, perfeita e rentável, mas Britney desmoronou diante da impossibilidade dessas demandas contraditórias. Vivas, Amy Winehouse e Whitney Houston eram frequentemente retratadas como monstros viciados; mortas, passaram a ser consideradas pessoas que haviam sido geniais ao longo de toda a sua vida. Monica Lewinsky não era uma vagabunda burra, mas uma garota comum de vinte e poucos anos que de
repente se viu em meio a um caso de exploração com o chefe mais poderoso dos Estados Unidos. Hillary Clinton não era um vácuo de carisma estridente incapaz de conquistar a confiança das pessoas comuns, mas sim uma funcionária pública superqualificada cujas ambições foram frustradas devido ao fanatismo e à raiva de seus oponentes.

Analisar o sexismo pelo viés das celebridades femininas é um método pedagógico catnip: pega-se um passatempo cultural adorado (calcular o valor exato de uma mulher) e adiciona-se a ele uma importância política progressista. Trata-se também de uma questão pessoal, uma vez que, quando recuperamos as histórias que cercam as celebridades femininas, recuperamos também as histórias das mulheres comuns. Nos últimos anos, a cobertura feminista — cobertura justa, em outras palavras — tornou-se cada vez mais comum na mídia. O escândalo envolvendo Harvey Weinstein, e todos os seus desdobramentos, veio à tona em grande parte porque as mulheres finalmente podiam contar com uma base de interpretação narrativa feminista. As mulheres sabiam que suas histórias de vítimas seriam compreendidas do jeito que queriam — não por todas, mas por muitas pessoas. Annabella Sciorra podia confessar que o estupro fizera com que ela fosse banida da indústria do cinema; Asia Argento podia confessar que aceitara sair com Weinstein depois de ter sido estuprada por ele. Sob essa nova atmosfera, ambas as mulheres podiam acreditar que tais fatos não as tornariam suspeitas ou patéticas. (A cobertura do terrível epílogo da história de Argento — a alegação de que, mais tarde, ela teria agredido sexualmente um ator muito mais jovem do que ela — também foi = relativamente complexa e calculada, com veículos condenando o comportamento de Argento e declarando que abuso gera abuso.)

Dessa maneira, apresentadas as histórias em que mulheres famosas eram sujeitos, não objetos, muitas mulheres comuns puderam se reconhecer naquilo que viam. As mulheres foram capazes de articular fatos que, com frequência, não eram verbalizados: que ter um relacionamento com alguém não impedia que elas se tornassem vítimas — muitas vezes, uma coisa era consequência da outra —, e que o assédio e a agressão sexual podiam arruinar sua carreira. Por meio de Hillary Clinton, as mulheres podiam ver o quanto os Estados Unidos desprezam uma mulher que quer o poder; por Monica Lewinsky, enganada pelos dois Clinton, podiam ver com que facilidade nos tornamos vítimas da ambição de outras pessoas; pela cobertura do colapso de Britney Spears, podiam ver como o sofrimento feminino é transformado em piada. Qualquer mulher cuja história tenha sido alterada e distorcida pela força do poder masculino — portanto, qualquer mulher — pode ser considerada uma heroína complicada, sepultada pelo patriarcado, depois ressuscitada do reino dos mortos pelas feministas.

Mas, quando o valor de uma mulher se baseia, em parte, na injustiça que ela sofre, as coisas podem se tornar escorregadias, sobretudo porque a internet expande até o infinito o alcance do ódio e do escrutínio injusto — algo que continua acontecendo, mesmo que as ideias feministas tenham se tornado preponderantes. Toda mulher enfrenta crítica e reações negativas. Mulheres extraordinárias enfrentam muito mais. E essa crítica sempre vem dentro de um contexto sexista, assim como tudo na vida de uma mulher. Esses três fatos se misturaram de tal maneira a ponto de criarem a ideia de que críticas duras feitas a uma mulher são sempre sexistas e, além disso,
de forma mais sutil, de que o fato de receber críticas sexistas, por si só, demonstra o valor de uma mulher.

Quando as ferramentas do discurso das celebridades pop feministas são aplicadas a figuras políticas como Kellyanne Conway, Sarah Huckabee Sanders, Hope Hicks e Melania Trump — como de fato são, e cada vez mais —, os limites desse tipo de análise começam a se revelar. Eu me pergunto se estamos entrando num período no qual a fronteira entre valorizar uma mulher que sofreu maus-tratos e valorizar uma mulher porque ela sofreu maus-tratos está se tornando difusa; se a necessidade legítima de defender as mulheres de críticas injustas se metamorfoseou em uma necessidade ilegítima de defender as mulheres de qualquer crítica; como se fosse possível exaltar uma mulher justamente porque ela é criticada — e apenas por esse fato inexpressivo.”

Jia Tolentino é ensaísta e jornalista de ‘New Yorker’. Seu novo livro, ‘Falso Espelho’, reúne nove ensaios sobre identidade, autoimagem, cultura e política

Produto
  • Falso Espelho
  • Jia Tolentino
  • Editora Todavia
  • 368 páginas

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