As Margens e o Ditado
Livro reúne textos inéditos da italiana Elena Ferrante, de “A Amiga Genial”, sobre a escrita e as aventuras literárias da autora
Em seu novo livro, a autora da “Tetralogia Napolitana” e de “A Filha Perdida” deixa as ensolaradas paisagens da Itália para adentrar o também rico, mas muitas vezes árido território da escrita literária. “As Margens e o Ditado” (Intrínseca, 2023), que traz o subtítulo “Sobre os prazeres de ler e escrever”, reúne quatro breves ensaios em que Elena Ferrante explora suas origens nos caminhos da literatura.
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Um dos maiores fenômenos da arte contemporânea, a escritora italiana aborda no livro suas principais influências, as lutas da juventude e a formação intelectual. Também não ignora as maneiras pelas quais a tradição literária excluiu sistematicamente a voz das mulheres ao longo da história. O que, inclusive, afetou suas leituras e inspirações na infância. “Eu lia muito, e tudo o que me agradava quase nunca era escrito por mulheres. Das páginas, parecia sair uma voz masculina, e aquela voz me ocupava, eu tentava imitá-la de todas as maneiras”, conta em determinado trecho do livro.
Ao falar do equilíbrio entre a organização de que tanto gosta – a busca por permanecer dentro das margens citadas no título –, e um desejo pela desordem, Ferrante dá pistas sobre os processos que levaram à criação de suas obras mais conhecidas. Embora sua própria identidade permaneça oculta, a não ser por investigações externas, a escritora não hesita em falar sobre as motivações e como desenvolveu as personagens Lenù e Lila, apresentadas ao mundo em “A Amiga Genial”. De certa forma, as contradições entre ambas incorporam o próprio dilema da literatura e do que significa escrever para Ferrante.
Água-marinha
Senhoras e senhores, hoje começo com uma regra que me impus entre os dezesseis e os dezessete anos. Quem escreve — anotei em um caderno que ainda guardo — tem o dever de colocar em palavras os empurrões que dá e que recebe dos outros. Reforcei tal formulação com uma citação: “diga a coisa como ela é”, proveniente de Jacques, o fatalista, e seu amo, de Denis Diderot. Na época, eu nada sabia do livro de Diderot, a frase havia sido citada para mim, na forma de um conselho, por uma professora por quem eu nutria afeto.
Quando garota, eu sentia paixão pelas coisas reais, e as queria circunscrever, descrever, prescrever, até proscrever, se necessário. Não me continha, planejava lançar-me sobre o mundo, para dentro do outro, dos outros, e escrever a respeito. Eu pensava: tudo o que estimula casualmente o nascimento de uma narrativa está lá fora, esbarra em nós e vice-versa, nos confunde, se confunde. Dentro — dentro de nós — só existem os mecanismos frágeis do nosso organismo. O que chamamos de “vida interior” é um lampejar permanente do cérebro que quer se materializar sob a forma de voz, de escrita. Por isso, eu olhava à minha volta, esperando; para mim, então, a escrita tinha, essencialmente, olhos: o tremor da folha amarela, as partes reluzentes da cafeteira, o anular da minha mãe com a água-marinha que emanava uma luz celeste, minhas irmãs que brigavam no pátio, as orelhas enormes do homem calvo com o avental azul. Eu queria ser um espelho. Associava fragmentos de acordo com um antes e um depois,
encaixava-os uns nos outros, surgia uma história. Era algo que acontecia com naturalidade, que eu vivia fazendo.
A escrita tinha, essencialmente, olhos: o tremor da folha amarela, as partes reluzentes da cafeteira, o anular da minha mãe com a água-marinha que emanava uma luz celeste
Depois o tempo passou e tudo se complicou. Comecei a guerrear comigo mesma: por que isso, por que não aquilo, está bom assim, não está. Em poucos anos, passei a ter a impressão de não saber mais escrever. Nenhuma página estava à altura dos livros que me agradavam, talvez porque eu fosse ignorante, talvez porque fosse inexperiente, talvez porque fosse mulher e, portanto, melosa, talvez porque eu fosse burra, talvez porque não tivesse talento. Tudo me parecia bloqueado: o quarto, a janela,
a sociedade, os mocinhos, os vilões, suas roupas, suas expressões, os pensamentos, os objetos que permaneciam impassíveis mesmo quando eram manipulados. E havia também as vozes, o dialeto da minha cidade que, na escrita, me incomodava. Assim que eu o transcrevia, soava distante do dialeto verdadeiro, estridente dentro da bela escrita que eu tentava ser capaz de criar.
Quero dar um pequeno exemplo, que retirei das minhas anotações de muito tempo atrás: a água-marinha no dedo de minha mãe. Era um objeto verdadeiro, e muito, e, no entanto, não havia nada mais flutuante dentro da minha cabeça. Deslocava-se, entre dialeto e língua, no espaço e no tempo, junto da figura dela, ora nítida, ora confusa, sempre na companhia dos meus sentimentos afetuosos ou hostis. A água-marinha era furta-cor, parte de uma realidade furta-cor, de uma eu furta-cor. Se eu conseguia isolá-la em uma descrição — quanto me exercitei nas descrições — e atribuir-lhe uma luz celeste, já naquela fórmula a pedra perdia sua substância, tornava-se uma emoção minha, um pensamento, um sentimento ora de prazer, ora de mal-estar, e ficava opaca como se tivesse caído na água ou como se eu mesma tivesse bafejado em sua superfície. Aquela opacidade tinha consequências: tendia a me fazer, quase inadvertidamente, subir o tom, como se assim eu pudesse devolver o brilho à pedra. É melhor — eu dizia a mim mesma — escrever “luz azul-pálida”. Ou nada de luz, bastava a cor, uma água-marinha azul-pálida. Mas ficava insatisfeita com a duplicidade das palavras compostas, pesquisava no dicionário e escrevia ciano, cor ciano, depois, por que não, cianótica. Mas a luz da água-marinha cianótica — ou a luz cianótica da água-marinha — já se expandia, com as imagens que evocava, para a história de minha mãe, para o protótipo de mãe napolitana que eu vinha construindo, em um atrito violentíssimo com a sua voz dialetal. Isso era bom, era ruim? Eu não sabia. Só sabia que aquele pequeno adjetivo agora queria me fazer sair da história cinza de uma família real e entrar em uma história negra, quase gótica. Então eu recuava depressa, mas de má vontade. Nada de “cianótica”. Contudo, já havia perdido confiança: agora, o anel verdadeiro — que, por ser um objeto verdadeiro de uma experiência minha verdadeira, deveria imprimir verdade à escrita — parecia inevitavelmente falso.
Minha vocação realista, perseguida com obstinação desde a adolescência, a certa altura se transformou em uma constatação de incapacidade. Eu não sabia obter uma reprodução exata da realidade
Delonguei-me um pouco com a água-marinha para destacar que a minha vocação realista, perseguida com obstinação desde a adolescência, a certa altura se transformou em uma constatação de incapacidade. Eu não sabia obter uma reprodução exata da realidade, não era capaz de dizer como era uma coisa.
- As Margens e o Ditado
- Elena Ferrante
- Intrínseca
- 128 páginas
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