Isabelle Moreira Lima
E esse vinho brasileiro, é bom?
Produção brasileira vive grande fase, com a primeira denominação de origem exclusiva para espumantes do hemisfério sul, ao mesmo tempo que congrega rebeldes que fazem vinhos sem regra
Não é exagero dizer que existe uma transformação em curso no vinho brasileiro. Há menos de dez anos, eu ouvia esse tipo de declaração com desconfiança e cinismo, mas agora enumero os fatos: batemos recordes de consumo da bebida no começo da pandemia e os mantivemos quando voltamos a circular; vemos novos movimentos como o do vinho natural e novas possibilidades de consumo com a bebida embalada em latas, caixas e até saindo de torneiras; vemos gente apaixonada fazendo vinho artesanal até em apartamentos nas metrópoles brasileiras; novos cursos, podcasts e livros não param de proliferar; e, o mais legal de tudo, o vinho brasileiro passa a ser visto sem o ranço de algo inferior por muita gente. Quem está aberto a provar pode constatar.
Neste ano, a lista ficou ainda maior com duas notícias: há pouco mais de um mês, o país ganhou uma nova Indicação Geográfica, para a região do Vale do São Francisco, no Nordeste, a primeira para vinhos tropicais; e há duas semanas uma nova Denominação de Origem, a de Altos de Pinto Bandeira, a primeira do hemisfério sul para vinhos espumantes, e a segunda do país (a primeira é a de Vale dos Vinhedos).
Altos de Pinto Bandeira Divulgação
A ideia de se ter regras claras de produção para uma região não é nova. A primeira demarcação de que se tem notícia foi a da região produtora do Douro, em Portugal, em 1756 para proteger os vinhos do Porto. Mas foi a França que deu um gás novo à ideia da demarcação, fazendo um pacote completo que envolvia também a ideia de terroir, no início do século 20. A criação de denominações de origem veio como uma resposta à baixa qualidade de vinhos que passaram a ser produzidos na Europa pós-filoxera, a praga que destruiu as plantações em todo o continente no século 19. Esses vinhos eram produzidos de qualquer jeito na Argélia, então colônia francesa, e no Languedoc, em esquemas que envolviam adulteração e fraude e inundavam o mercado francês dando pouca chance pra quem majava do cortado.
Um produtor influente de Châteauneuf-du-Pape, Baron Le Roy, entendeu que não bastava ter apenas a demarcação regional, mas era preciso ter também a lista de uvas que se davam bem naquele lugar, os métodos de produção, detalhes como formas de realizar podas na videira e até o máximo de gradação alcoólica permitida no lugar. Assim, o sistema de denominação de origem francês estava pronto na década de 1930 e o mundo passou a se inspirar nele nas décadas seguintes.
No Brasil, no início dos anos 1990, os registros de indicação geográfica começaram com indicação de procedência (IP) um passo anterior à DO, concedidos a regiões reconhecidas pela produção apenas. O Vale dos Vinhedos foi a primeira indicação geográfica do país e também a primeira DO (2012). A diferença da IP para a DO é que a segunda é uma garantia a mais da procedência porque demarca as regras de produção também. Quando uma região vira DO, ela passa a ter uma espécie de manual de instruções a que os produtores devem seguir (muitas vezes, são as que eles já seguem; mas quem começar por ali depois vai ter que se adequar se quiser o selo também). Agora, certeza da qualidade de um vinho mesmo quem vai dar é produtor.
Finalmente chegando ao Altos de Pinto Bandeira, que atinge uma área entre os municípios de Pinto Bandeira, Farroupilha e Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, as regras dizem que só se pode produzir espumantes de método tradicional (o mesmo de Champagne), com Pinot Noir, Chardonnay e Riesling Itálico (que não deve passar de 25% dos blends) cultivadas em vinhedos conduzidos em espaldeira, colhidas em determinado momento para que se mantenha níveis de acidez altos e álcool controlado.
Cave Geisse Divulgação
Vale dizer que a região tem alguns dos melhores produtores de espumantes do Brasil, sendo talvez o mais badalado deles a Cave Geisse. É uma vinícola familiar fundada pelo enólogo chileno Mario Geisse, que chegou ao Brasil na década de 1970 a serviço da Moët & Chandon. Foi ainda naquela época que reconheceu o potencial do local e passou a cultivar algumas videiras próprias. Hoje, eles têm um portfólio amplo com espumantes de R$ 79, na linha de entrada Cave Amadeu, a R$ 920, o Cave Geisse 2011. As outras vinícolas que têm vinhedos no local são a Don Giovanni, a Valmarino e a Aurora.
Como aficionados por vinho, temos sorte de viver no Brasil, um país que tende a mostrar certa democracia nesta área
Aurora Divulgação
Para o consumidor, comprar o vinho com o selo de uma DO pode representar algum tipo de segurança do que vai encontrar na garrafa (no caso de Altos de Pinto Bandeira vai ser espumante tradicional feito com 12 anos de contato com as leveduras com as tais cepas, por exemplo). Mas existe um outro lado dessa moeda. Não fazer parte de uma DO onde seus vinhedos estão alocados não significa que aquele vinho é de qualidade inferior. E vou usar o exemplo de um gênio italiano para comprovar minha tese:
No início dos anos 2015, o produtor do Piemonte Stefano Bellotti, morto em 2018, resolveu lançar mão de novas culturas como alternativa a pesticidas químicos em sua Cascina Degli Ulivi. Plantou pêssego, amêndoas, mostarda e bordo perto de seus vinhedos para conseguir um ambiente mais balanceado e evitar pestes e doenças. Passou ainda a criar galinhas e patos para que comessem ervas daninhas. Com tudo isso, acabou perdendo o direito de usar o selo DOCG (denominação de origem controlada e garantida), a mais alta na Itália, sob a justificativa de que não produzia uma única cultura. Suas videiras, portanto, não configurariam mais uma vinícola.
Bellotti viu a extinção do selo com bons olhos. “O fato de eu ter me liberado destas histórias de controles, parâmetros e protocolos me dá uma grande sensação de leveza. Tenho certeza de que meus vinhedos expressaram autenticidade, eu não preciso de carimbo. Hoje, vendo mais como Stefano Bellotti do que como DOCG”, afirmou a esta que vos escreve à época.
A moral da história? Para alguns, ficar preso a determinadas castas e métodos de produção pode acabar fazendo vinhos padronizados, unificados e sem identidade, ainda que a ideia seja justamente expressar um terroir.
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O vinho avança no Brasil e fica cada vez mais interessante também por causa de rebeldes como estes. Garagistas – como são chamados os pequenos produtores que fazem vinhos em suas garagens –, gente que migrou da cerveja para o vinho, apaixonados pela bebida e a filosofia biodinâmica e natural têm modificado o vinho no Brasil da mesma forma como as vinícolas mais comerciais, como as tradicionais, como as que estão há gerações em uma mesma família crescem e ajudam a desenvolver o mercado. Alguns nomes para não perder de vista: Arte da Vinha, Vinha Unna, Casa Viccas, Vivente, Faccin… A lista realmente parece não ter fim.
É por essas e por outras que eu acho que, como aficionados por vinho, temos sorte de viver no Brasil: é um país que tende a mostrar certa democracia nesta área. Temos rótulos do mundo inteiro nas importadoras e produzimos de todos os jeitos do Nordeste ao Sul do país. Temos a oportunidade de assistir a olho nu uma revolução neste instante e a provar com paladar atento ao vinho que cresce e aparece por essas terras.
Saca essa rolha
Rosé Sabina Sacramentos Divulgação
OS MELHORES BRASILEIROS QUE PROVEI EM 2022
O Syrah Testardi da Miolo me levou aos céus. Um vinho de pernambuco, concentrado, macio, suculento e delicioso que acompanhou churrasco de carneiro foi como uma madeleine que eu jamais havia provado. O delicioso e divertido clarete Cherry Bomb da ousada Garbo é um tinto leve para o verão. E o Rosé Sabina Sacramentos é podre de chique e delicioso. Menção honrosa ao laranja Outro Vinho, descoladíssimo, e ao vinho feito em parceria entre Beverino e Viccas, Piccolo, vendido no bar.
Casa Ferreirinha Vinha Grande Branco e Domaine Rominger Alsace Pinot Noir 2020 Divulgação
PARA HARMONIZAR COM A CEIA DE NATAL
Vou aqui desafia-lo a abrir um branco para acompanhar a ave, o pernil ou o bacalhau. Pra gastar até R$ 100 a dica é o Esporão Colheita, que está no ponto certo, equilibradíssimo, com acidez brilhante, notas cítricas e de flor de laranjeira. Se der para gastar mais, o Casa Ferreirinha Vinha Grande Branco é vinho de gente grande mesmo. Complexo, redondo, segura a ceia inteira. Para quem não resiste a um tinto, sugiro o Rocamadre, se você for da turma dos modernos; um Domaine Rominger Alsace Pinot Noir 2020, se for para botar para quebrar; ou ainda o Pinot Noir Trapazio Finca, se for para gastar bem pouco.
Indra Sur Lie, da Vallontano e Otto Nature Divulgação
PARA ESTOURAR NO REVEILLON
Qualquer espumante da Cave Geisse vai bem aqui e ainda vale, de quebra, para celebrar a nova DO. Se quiser que eu escolha para você, vá de Rosé Nature, que tem zero adição de açúcar na dosage. Da Aurora, o Aurora Pinto Bandeira Extra Brut faz bonito sempre. Mas ando meio apaixonada pelos espumantes sem filtragem, que são turvos na taça e fechados com tampinha de garrafa. Desses, amei profundamente o Indra Sur Lie, da Vallontano. Complexo e delicioso. Outros dois nomes no mesmo estilo para experimentar: Lírica Bruta, da vinícola Hermann, e Otto Nature.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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