Winnie Bueno
Somos mulheres negras
As lutas de mulheres não podem ser analisadas a partir de lentes monocategóricas que silenciam ou excluem outras mulheres
Desde que comecei a militar junto ao movimento de mulheres negras, sempre soube que a categoria “mulher” não dava conta das experiências de todas nós. Há séculos as intelectuais negras têm denunciado o quanto a universalização do termo é uma forma de dominação sexista e racista. Já nos primórdios do movimento feminista mulheres negras questionavam essa universalidade partindo de suas próprias experiências — direta ou indiretamente. No contexto dos EUA, temos o exemplo de Sojourner Truth e seu discurso “E eu não sou uma mulher?”, testemunho direto de como as mulheres negras estadunidenses do século 19 enfrentavam os problemas produzidos pelos diferentes sistemas de dominação. Mas esses exemplos não são os únicos que nos convidam à reflexão. A carta de Esperança Garcia, recentemente reconhecida pela Ordem dos Advogados do Brasil como a primeira advogada brasileira, também nos dá indicativos de que as condições e os enfrentamos das mulheres brasileiras no século 18 não podiam ser reduzidos a uma única narrativa ou experiência. Esse histórico foi central para compreendermos que as lutas de mulheres não podem ser analisadas a partir de lentes monocategóricas que silenciam ou excluem outras mulheres. Nossas trajetórias não são únicas, nossas lutas se organizam de formas múltiplas e os sentimentos que temos mediante situações de opressão também não são uma coisa só.
Intelectuais negras como Sueli Carneiro, Cláudia Pons Cardoso, Luiza Bairros, Lélia Gonzáles, Nilma Bentes, Zélia Amador de Deus, Valdecir Nascimento, Heliana Hemetério e tantas outras empenharam significativos esforços para que as lutas de mulheres negras brasileiras fossem reconhecidas e elas não fossem excluídas do acesso ao direito e à cidadania. No artigo “Amefricanizando o Feminismo: O pensamento de Lélia Gonzalez”, Claudia Pons Cardoso nos relata o quanto Lélia foi pioneira na luta contra o feminismo hegemônico a partir de seu ativismo intelectual e da produção de um conhecimento de resistência. Produzido por todas estas mulheres, ele é constituído pelo compromisso de não afastar a produção intelectual das lutas cotidianas, um compromisso de escuta ativa e militância para a justiça social.
O que estava inscrito sobre ser mulher no pensamento feminista hegemônico não só não nos contemplava como era uma poderosa ferramenta de opressão
É esse compromisso que vejo renovado cada vez que me reúno com o movimento negro e com aquelas que ainda estão na ativa — Lúcia Xavier, Jurema Werneck, Maria da Conceição Fontoura, Vanda Nascimento, Vilma Reis. É ele também que me mantém atenta e me ajuda a não me deixar seduzir por atalhos que reduzem o legado intelectual do pensamento de mulheres negras, especialmente para interesses próprios. Se hoje podemos falar em nosso próprio nome enquanto mulheres negras, é porque as que vieram antes evidenciaram que o que estava inscrito sobre ser mulher no pensamento feminista hegemônico não só não nos contemplava como era uma poderosa ferramenta de opressão.
É contra as ferramentas de opressão que seguimos pensando, lutando e escrevendo. É contra toda e qualquer forma de dominação que observamos as nossas diferenças enquanto mulheres negras cis e trans, mulheres negras travestis, mulheres negras lésbicas e bissexuais, mulheres negras que menstruam, mulheres negras que não menstruam, mulheres negras com útero, mulheres negras sem útero, mulheres negras mães, mulheres negras jovens, mulheres negras idosas, mulheres negras com deficiências, mulheres negras resistindo às mais diferentes formas de opressão. Cada uma de nós com potências distintas que se encontram em resistência e que, justamente por isso, fazem do movimento de mulheres negras brasileiro uma das mais importantes frentes de resistência atuantes no Brasil.
Aprendi com Patricia Hill Collins sobre o poder da autodefinição. É ela que nos permite resistir às imagens de controle. No que diz respeito ao racismo e ao sexismo no contexto brasileiro, parte significativa dessas imagens está relacionada aos corpos de mulheres negras. Desumanizar os corpos delas, de nós, é naturalizar a violência que é destinada a estes corpos. Logo, toda e qualquer tentativa de desumanização do corpo de uma mulher negra é uma forma de consolidar violências contra elas. Quando se tenta, por exemplo, associar a categoria mulher a aspectos biológicos encerrados em si mesmos, está se tentando naturalizar a desumanização de mulheres negras travestis e transexuais. Esse mesmo pensamento foi o que naturalizou a violência contra toda a negritude no contexto da escravidão. Os atributos biológicos dos negros e negras eram utilizados como justificativa para a escravidão. Agora, categorias biológicas são utilizadas, mais uma vez, para negar a condição de mulher a mulheres que não menstruam, a mulheres que não têm útero, a mulheres que são diferentes do que está padronizado pelo heterocispatriarcado.
Categorias biológicas são utilizadas, mais uma vez, para negar a condição de mulher a mulheres que não menstruam
Creio que precisamos ficar muito atentas a discursos que flertam com teorias que minimizam ou negam a humanidade de qualquer grupo subordinado. Especialmente quando estes discursos se valem do legado intelectual de mulheres negras como recurso argumentativo, descontextualizando os esforços intelectuais e ativistas daqueles que fizeram menos complexo ser uma intelectual negra no Brasil. Em 1995, Luiza Bairros já demonstrava que o conceito mulher era insuficiente para definir a totalidade das mulheres e defendia que, à luz das teorias do ponto de vista, requalificássemos essa categoria, conforme nos demonstra Ana Claudia Jaquetto Pereira em “Intelectuais Negras Brasileiras: Horizontes Políticos” (Editora Letramento, 2019). Somos mulheres negras, de muitas experiências, de muitos saberes, de muitos lugares. O nosso compromisso ético com a justiça social e com a construção de políticas públicas e ações que emancipem e empoderem nossa gente jamais foi umbuiguista, ele sempre esteve alinhado com a perspectiva de construir o bem-viver para todes.
Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.