Coluna do Marcello Dantas: "Al-Ula, lá a Hegra é outra" — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Al-Ula, lá a Hegra é outra

Há uma compreensão de que não há avanço como sociedade sem o desenvolvimento das artes e da cultura. Às vezes, os exemplos estão onde menos esperamos

06 de Setembro de 2022

Existe um lugar onde foi decidida a história do mundo e a maior parte das pessoas nem sabe que esse lugar existe. Na porção ocidental da Arábia Saudita resta uma cadeia de montanhas arenosas com formas que parecem terem sido esculpidas em outro planeta, um oásis que produz tâmaras, cítricos e oliveiras. Esse lugar se chama Al-Ula. Trecho essencial e inevitável de passagem das rotas de comércio ancestrais como as de incenso e especiarias que passavam em caravanas e se reabasteciam nesse oásis. O que define uma rota comercial dessa magnitude é a logística, essencialmente a rota reflete um mapa dos aquíferos que se encontram acessíveis no caminho, e se ajusta por ele e pelo risco de ser pilhada no caminho.

Nessa região já existiam cidades importantes no século 4 a.C., como Hegra, cujo povo Nabateu fundou uma civilização que antecede o cristianismo e o islamismo, e que se manifestava de forma plural e eclética. Os nabateus eram nômades do deserto que se tornaram mestres mercadores, controlando as rotas de comércio de incenso e especiarias através da Arábia e Jordânia em direção ao Mediterrâneo, Egito, Síria e Mesopotâmia. Caravanas puxadas por camelos, carregadas de pilhas de grãos de pimenta, gengibre, açúcar e algodão, passaram por Hegra, um oásis ao sul da sua região.

Os nabateus também se tornaram fornecedores de incenso e mirra, sendo principalmente viajantes de várias regiões que exploraram as oportunidades do entreposto estratégico.

Essa cidade possui algumas construções sobre pedra absolutamente intrigantes que reúnem motivos fenícios, gregos, persas e romanos, esculpidos diretamente sobre a rocha que se mantiveram preservados pelo clima extremamente seco do deserto. Os nabateus são uma das civilizações mais enigmáticas das quais muitos nunca ouviram falar antes.

Por mais obscuros que possam ser para nós agora, os nabateus foram antigos pioneiros em arquitetura e hidráulica, com soluções criativas e inovadoras que aproveitavam o implacável ambiente do deserto em seu benefício. A água da chuva que descia das montanhas, por exemplo, era coletada em cisternas ao nível do solo. Canos de água naturais foram construídos ao redor dos túmulos para proteger suas fachadas da erosão, o que os manteve bem preservados milhares de anos após sua construção. Hegra, apesar de pouquíssimo visitada, foi nomeada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade.

A arte pode reconectar sensibilidades, curar feridas e, acima de tudo, fertilizar a inovação

A descoberta das Américas e todo o mapa redondo de nosso planeta, se deu porque depois da reconquista cristã da península ibérica, esse caminho entre a Ásia e a Europa estava com o acesso comprometido para as caravanas europeias. O jeito foi encontrar um outro caminho além-mar e, o resto, é a história que já sabemos no que deu.

A Arábia Saudita é um país de somente 90 anos, seus tempos ancestrais eram dominados por clãs que exerciam poder em pequenos enclaves que só foram unificados em 1932. Durante esses 90 anos, o reino se manteve em conflitos ou fechado à visitação externa. Por essa razão, esses lugares permaneceram completamente fora do imaginário coletivo e ficaram bastante virgens da documentação fotográfica e audiovisual do planeta.

Uma espécie de fronteira desconhecida, mas não menos impactante visualmente, até a decisão de 2019 de abrir o território da Arábia aos visitantes do mundo. Eis que surgem esses novos lugares para serem interpretados e iconizados. Essa mistura de paisagem natural, presença humana ancestral e protagonismo da história contemporânea, apresenta um ruído como se algo de novo surgisse no mundo.

Essa mistura de paisagem natural, presença humana ancestral e história contemporânea apresenta um ruído como se algo de novo surgisse no mundo

A paisagem que mais parece ser extraterrena inspirou grandes artistas contemporâneos a produzirem intervenções permanentes nesse cenário, gente potente como James Turrell, Michael Heizer, Agnes Denes, Alicja Kwade, Jim Denevan, além de artistas árabes, como Ayman Zedani, Shezad Dawood e Shaika Al Mazrou, que criaram obras de grande impacto em diálogo com a vegetação, topologia, ancestralidade e com a geografia natural. O projeto Desert X, criado por Neville Wakefield com intervenções artísticas sobre o deserto, nasceu na Califórnia em 2017 e já se estabeleceu como uma bienal de artes no deserto de Al-Ula.

Ousados projetos de arquitetura e hotelaria estão se desenvolvendo na região, resgatando um protagonismo arquitetônico que não se via ali desde tempos pré-romanos. A ambição de se criar obras gigantescas, como site specific na paisagem e, de forma permanente, como a land art, é uma rara proposição nesse mundo comoditizado da arte contemporânea. A decisão tomada pelo Reino da Arábia Saudita de dar protagonismo às artes na construção de um novo legado histórico para a região tem um nível de ambição para impressionar o mundo.

Apresentando a ideia de que a arte pode reconectar sensibilidades, curar feridas e, acima de tudo, fertilizar a inovação. Essa visão de longo prazo que o mundo oriental possui permite que se criem legados além de mandatos, que se plantem tamareiras que só darão frutos no próximo século, e que se pense em formar artistas e construir públicos a longo prazo. Tentar mensurar as sociedades islâmicas pela regra das democracias ocidentais é uma maneira de não entender os fundamentos que as organizam como sociedade. Claro que existe um processo de tornar mais aberta e permeável a ideias um Estado que sempre foi monárquico e familiar.

Mas também há uma compreensão, diferentemente do Brasil atual, de que não existe avanço como sociedade sem o desenvolvimento das artes e da cultura. Às vezes, os exemplos estão onde menos esperamos.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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