Fernando Luna
Sou todo coração
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre um roteiro de turismo cardíaco, Caetano Veloso e o heavy metal, um sonho que se sonha junto e os desafios do novo sexo
Comigo a anatomia ficou louca. Sou todo coração
Vladímir Maiakóvski, 1922
É preciso ver o lado bom das coisas: teremos novamente um coração no Palácio do Planalto.
Seria preferível que ele batesse no peito do presidente, em vez de chacoalhar num pote de vidro cheio de formol, mas não se pode querer tudo.
O órgão de Dom Pedro I chegou num voo da Força Aérea Brasileira, de resto habituada a transportar cargas heterodoxas, como 39 quilos de cocaína, Damares Alves ou o maquiador da primeira-dama.
O Itamaraty informa que os 300 gramas de carne humana serão tratados com pompa e circunstância, como se o imperador estivesse vivo – ou seja, as vísceras vão receber mais atenção oficial que a população brasileira.
(Coração e loucura ficam melhor na Praça da Paixão, como escreveu o camarada Maiakóvski no poema “Adultos”, do que na Praça dos Três Poderes, mas enfim.)
Já sabemos que distribuir dentaduras num país de desdentados é boa estratégia política. Agora descobriremos qual o efeito eleitoral de posar pra fotos ao lado de restos mortais.
Não deixa de ser um lampejo de sensatez da Tchutchuca do Centrão.
Ciente de que lhe falta algo do lado esquerdo do peito, foi atrás de uma maneira de corrigir sua falha. Não é o que todos deveríamos fazer, reconhecer e mitigar nossas deficiências? Ainda que pra isso seja necessário esgarçar a necropolítica como nem Achille Mbembe imaginaria.
Como sempre é possível aperfeiçoar boas ideias, gostaria de sugerir que se aproveite a ocasião pra recompor Dom Pedro I numa única peça.
Pra isso basta acrescentar uma nova parada cardíaca ao roteiro turístico do coração: o Monumento à Independência, no bairro paulistano do Ipiranga, onde há 200 anos ouviram às margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante.
É lá que tá sepultado o resto do corpo do imperador. Um alquimista do Ministério da Saúde poderia juntar tudo e, misturando os escritos esotéricos de Olavo de Carvalho à cloroquina, produzir um elixir da vida.
Aí então a nobre figura se reanimaria, só pra ver, com os olhos que a terra houve de comer, a desgraça em que nos metemos desde aquela bravata de “independência ou morte”.
Pois quando eu te vejo eu desejo o teu desejo
Caetano Veloso, 1979
Ali pelos 13 anos, repetia pra mim mesmo: “Nunca vou gostar de Caetano, porque só velho gosta de Caetano”.
Jovens deviam gostar, acreditava aquele jovem em sua convicção adolescente, de Iron Maiden, Judas Priest, Deep Purple, Black Sabbath e, principalmente, AC/DC.
(O primeiro show gringo que vi foi justamente do AC/DC, no Rock in Rio de 1985. Bem, tecnicamente foi o segundo, porque o Scorpions tocou antes, mas eu achava “Still Loving You” insuportável.
Meu primo e eu, dois moleques, pegamos um ônibus da Zona Sul carioca até a Zona Oeste, no que parecia aos nossos olhos uma circunavegação do planeta.
Pra evitar as já legendárias filas do Bob’s, única chance de comer na Cidade do Rock, levei na minha mochila tudo o que precisava pra sobreviver: uma quentinha com almôndegas de frango.)
Difícil, porém, ser metaleiro à beira-mar, com o morro Dois Irmãos de um lado, o Arpoador do outro, sol a pino, jacaré, frescobol e as meninas do Leblon.
Por milagre comecei a namorar uma delas, que logo me daria de presente um disco do Caetano – ninguém dizia “vinil” e você comprava nas Lojas Americanas, não num espaço alternativo cheio de begônias pintadinhas.
Era uma coletânea chamada “Personalidade”. Na capa, ele com a mão no queixo e um brinco na orelha direita – nos enrustidos anos 1980, brinco na orelha direita era gay, brinco na orelha esquerda talvez não.
(Na live desse domingo pra celebrar seus 80 anos, Caetano fez uma homenagem a Dedé e Paulinha, “mulheres importantíssimas na minha vida”, e também a “uns caras, mais raros e geralmente fugazes, mas nem por isso menos importantes”. Na onda ultraconservadora que quebrou na cabeça do país, ele continua menos estrangeiro no lugar do que no momento.)
O lado B começava com “Menino do Rio”, lançada uns anos antes em “Cinema Transcendental”. Adolescendo solar, aquilo me pareceu fazer bem mais sentido do que “Highway to Hell” ou “The Number of the Beast”.
Larguei os cabeludos de pele branca, roupas pretas e satanismo desbotado, pra sonhar com um claro futuro de música, ternura e aventura.
Ah, diz ele, você sonhando de novo/ E então eu digo que estou feliz porque sonho
Louise Glück, 2021
Tão deixando a gente sonhar.
“E então eu digo”, como na “Canção” de Louise Glück, “que estou feliz porque sonho/ o fogo ainda está vivo”. Esse poema é uma das “Receitas de Inverno da Comunidade”, seu primeiro livro após o Nobel de Literatura.
O fogo tá vivo, aqui: tem brasa no Brasil.
Esse inverno de quase quatro anos, que ameaçava virar uma nova era glacial, agora parece ter data pra acabar – de outubro não passa. Eu já escuto seus sinais.
Depois de centenas de notas de repúdio sem grande repercussão, de repente, não mais que de repente, 634 mil pessoas assinam a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito.
(Inclusive, vale o registro, dois candidatos da terceira via, aquela que foi sem nunca ter sido: Simone Tebet e Ciro Gomes, sem medo de ser feliz.)
As pesquisas mais recentes mostram que 60% dos eleitores declaram votar em um nome que não seja o do atual presidente – entre ele e Pazuzu, digitam 666 na urna eletrônica. A maioria não aguenta mais a pior gestão da história.
(Paradoxalmente, o que salvou o país do aniquilamento total foram a preguiça e a incompetência de Jair Bolsonaro: se ele foi capaz de tamanho estrago sem ao menos trabalhar, só pulando da moto pro jet ski, imagina nosso apocalipse caso ele gostasse da lida e tivesse algum talento.)
Até os Estados Unidos, escolados com maluco usando chapéu de chifre no Capitólio, já mandaram o embaixador dizer e o secretário de defesa repetir: a política da boa vizinhança recomenda não fazer de 2022 um novo 1964.
A conta do golpe é cara e ninguém quer pagar.
De qualquer jeito, já tem muita coisa pra acertar: dezenas de milhares de quilômetros quadrados desmatados, dezenas de milhares de mortos por negacionismo federal, dezenas de milhões de pessoas com fome, dezenas de bilhões de reais tungados pelo orçamento secreto.
Sem falar na tragédia subjetiva, difícil de medir, do país afundado num pesadelo, sem perspectivas além dos terrores noturno e diurno. Se ainda não acordamos de vez, pelo menos voltamos a sonhar com dias melhores.
A felicidade pode ser de carne
Armando Freitas Filho, 1994
Só existe uma coisa melhor que sexo: o novo sexo.
O velho e bom sassarico, até mesmo um eventualmente incrível sassarico, sem o qual você e eu não estaríamos aqui, deixou de empolgar a humanidade no último filme de David Cronenberg, “Crimes do Futuro”.
(Atenção: não confundir “Crimes do Futuro” com crimes do futuro, aqueles que serão revelados daqui a 100 anos, quando cair o sigilo imposto pelo Charlatão do Povo. Até lá, padecemos com os crimes do presente, da Codevasf à Wal do Açaí.)
Nesse amanhã não tão distante imaginado pelo diretor canadense, o tradicional rala-e-rola é substituído por um sanguinolento corta-e-cola: “Cirurgia é o novo sexo”, resume Timlin, a personagem de Kristen Stewart.
Bisturis, incisões e entranhas provocam desejo e êxtase, ao invés de sofrimento e repulsa. Por alguma razão que ninguém perde tempo explicando, as pessoas não sentem mais dor. Talvez por isso, são capazes de apreciar a, digamos, verdadeira beleza interior.
O centro cirúrgico do filme são dois artistas plásticos, interpretados por Viggo Mortensen e Léa Seydoux: Saul desenvolveu a bizarra capacidade de produzir novos órgãos em seu próprio corpo, enquanto sua companheira Caprice os remove em operações performáticas e, literalmente, viscerais.
(Como nos versos de Armando Freitas Filho, publicado em “Números Anônimos”, “A felicidade pode ser de carne/ de pele apenas (…) tudo chegando junto, de uma vez/ ou aos poucos, esquartejado”.)
Mesmo frequentadores do repertório de Cronenberg, acostumados com cabeças explodindo em “Scanners” ou com a gosma mezzo homem, mezzo inseto em “A Mosca”, podem sentir engulhos.
Mete um Vonau Flash embaixo da língua e vai ao cinema.
Aos 79 anos, o cineasta mostra a exuberância do seu estilo tardio. Ao contrário dos mais recentes e menos abusados “Cosmópolis” e “Um Método Perigoso”, ele retoma e expande os temas e a estética de “Crash” e “Videodrome”: a colisão violenta entre tecnologia, corpo e mente.
“Crimes do Futuro” é um acidente de carro: mesmo sem querer, é estranhamente irresistível parar pra olhar.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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