Fernando Luna
Hoje estou embriagado de universo
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre a versão brasileira do telescópio James Webb e a saga da vira-lata caramelo deveras semelhante a uma certa borboleta amarela
“Hoje estou embriagado de universo”
Giuseppe Ungaretti, 1916
O Brasil virou um telescópio James Webb: você bate o olho e enxerga o passado.
Mas se o novo gadget da agência espacial norte-americana se limita a reproduzir imagens do início do universo, a tecnologia bolsonarista é capaz de enfiar um país inteiro no túnel do tempo.
O golpismo voltou a 1964.
Milicos deixam de lado o dominó no Clube Militar e se assanham. Posam de especialistas em urnas eletrônicas e segurança digital – embora raramente consigam utilizar um telefone celular sem a ajuda dos netinhos.
A fome regressou a 1992.
O segundo maior produtor de proteína animal e quarto maior produtor de grãos do planeta não consegue alimentar os seus. São 33 milhões de pessoas com fome, sem nenhum Betinho à vista.
A inflação bateu 2003.
Paulo Guedes não tem absolutamente nada a ver com o estouro da meta. É tudo culpa do feijão-carioca, batata, gás, gasolina, Rússia, Ucrânia, ventos alísios, PT e, claro, Big Bang – foi quando tudo começou a desandar.
A evasão escolar tá como em 2006.
Só existe uma maneira de acabar com a doutrinação marxista e a ideologia de gênero, que corrompem nossas crianças nas escolas: vamos tirar todas as crianças das escolas, talquei?
A proteção ambiental regrediu a 2008.
A única coisa que aumenta mais que a inflação é o desmatamento da Amazônia: 57% nos últimos 3 anos e meio, de acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônica.
A produção industrial caiu pra 2009.
Lembra do pato amarelo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, pata aqui, pata acolá nas manifestações pelo impeachment? Tantas fez o moço que foi pra panela.
O PIB encolheu pra 2013.
Ah, que conceito antigo. Melhor trocar o Produto Interno Bruto por Felicidade Interna Bruta. Péra. O índice de suicídios vem aumentando nestes cada vez mais tristes trópicos.
Os versos de “A Noite Bela” são de 1916.
O poeta italiano Giuseppe Ungaretti era capaz de enxergar alguma esperança mesmo enfiado nas trincheiras da Primeira Guerra. Nas escaramuças em que nos metemos aqui, porém, a sensação é mais de ressaca que de embriaguez.
“A grande dor das coisas que passaram”
Luís de Camões, 1616
Mas, como eu ia dizendo, a borboleta caramelo, aliás, a vira-lata amarela, tava esbaforida.
Lógico, pensei, correr 3 quilômetros com essas patinhas equivale a uma maratona canina. Mas, 20 minutos depois, a respiração continuava curta.
Nesta altura, aquela senhora que tomava café ao lado de seu cachorro não era mais a senhora que tomava café ao lado de seu cachorro: era a Adriana com a Leela, totalmente envolvidas no alvoroço.
Ela – a Adriana, não a Leela – telefonou pro hotel de pet que frequenta – a Leela, não a Adriana. Descobriu uma veterinária de plantão e ainda me ofereceu uma carona até lá.
(Nem álcool, nem futebol; cachorro é o melhor lubrificante social: faz dois estranhos, no meio desta cidade pecaminosa e aflita, se juntarem pra socorrer uma vira-lata.)
Com a caramelo e suas pulgas no meu colo, atravessamos dois bairros, enquanto eu fazia por telefone mesmo uma reunião que era uma videoconferência – olha aí o universo já me recompensando.
Chegamos numa espécie de resort pra cães – 850 metros quadrados de áreas abertas e climatizadas. O proprietário ouviu toda a história e, de chofre, batizou a corredora: “Ela é maratonista, vamos chamar de Mara”.
Mara, porém, precisava de mais cuidados do que havia ali: soro, raio-X, ultrassom, exames de sangue, fezes e cinomose. Então despencamos, Mara e eu, rumo a uma clínica veterinária noutro canto da cidade.
Ela ficou três dias internada pra um check up completo. A respiração curta era uma gripe, curada com antibiótico, comida, abrigo e carinho – quando paguei a conta, até achei razoável o preço do meu plano de saúde.
Mara tá de volta à hospedaria, tocando o rebu com a cachorrada local. Eu sigo firme no apadrinhamento afetivo, fazendo visitas pra gente passear junto, enquanto não aparece um lar definitivo pra ela. Você se habilita? Vem de DM.
Agora ela me sorri latindo: “A grande dor das coisas que passaram” se dissipou, ao contrário do soneto de Camões – onde tá esse verso, que Rubem Braga considerava o mais belo da língua portuguesa. Até já, pequenina borboleta amarela.
“Para mim bastava amor somente”
Luís de Camões, 1616
Eu semana passada parei a minha crônica no meio da história da borboleta amarela, digo, da vira-lata caramelo.
Parei no instante em que passávamos, ela e eu, suados, diante da casa modernista do Warchavchik, com seu cacto de braços gigantescos no jardim. Por um instante, acreditei que, cansada de mim e de correr 3 quilômetros ao meu lado, a cachorra fosse voltar à sua viralatice sem destino. Mas que nada.
Continuava ao meu lado, como se tivesse sido assim desde a origem dos tempos.
Lembrei do pet shop logo na esquina da rua Bahia, já mirando o fim dos meus serviços de tutor canino: compro ração, consigo água e pronto. Sigo eu o meu caminho, consciência em paz; segue ela o dela, barriga cheia e sede saciada. Um win-win, como diz o coach.
Eis que, saindo da loja, encontro a bichinha tombada e arfante, em frente à cafeteria vizinha – uma franquia dessa rede com nome em inglês e em japonês, embora tenha sido criada em Curitiba.
Minha intrépida, pequenina e ofegante vira-lata caramelo!, pensei eu. Que fazes aqui, sozinha, sem coleira, com nariz machucado e, francamente, bastante fedida? Principalmente: que faço eu?
Telefonei pra várias ONGs de animais que encontrei na internet. Nenhuma acolhia cachorros: “Liga no 156, da prefeitura”. Liguei. “Para acolhimento de pessoa em situação de rua, digite 0; para transporte, digite 1”, etecetera e tal.
Com 42 mil pessoas sem teto em São Paulo e não apenas uma, mas duas greves de ônibus nos últimos 30 dias, deduzi que minha pequena corredora não seria prioridade naquela teleburocracia municipal.
Uma senhora, tomando café ao lado do seu cachorro, ouviu tudo e me fez a exata pergunta que você quer me fazer: por que não fica com ela?
Ora, expliquei, um gato chegou antes.
Um gato carismático e territorialista, que não aceita dividir sua casa – a casa claramente é dele, moro de favor – com ninguém que tenha mais de duas patas. De maneira que você tenha paciência; na outra crônica, vai ter mais história de vira-lata, com o auxílio luxuoso de Rubem Braga e Luís de Camões.
“De amor não vi senão breves enganos”
Luís de Camões, 1616
Cada cronista tem a borboleta amarela que merece.
A minha borboleta era uma cachorra. Passou roçando em meus calcanhares, e no primeiro instante pensei que fosse me morder, corredores e cachorros de rua em geral não se dão muito bem; mas, como olhasse, vi que era uma cachorra amarela.
Ou melhor: uma vira-lata caramelo.
Era quase na esquina da Itápolis com Angatuba; ela cachorrava atrás de uma lata pra virar à procura de comida, mas aqui na vizinhança até o lixo é protegido por grades altas, no caso, aquelas gaiolas de ferro fincadas na calçada.
Quando entendi que meus calcanhares não eram o objetivo de seus dentes, retomei com certo tédio minha corridinha matinal. Imaginei que ela logo se cansaria de correr à toa, sem que houvesse ao menos uma carrocinha em seu encalço.
Atravessamos a rua em frente ao centro Hare Krishna – o bairro, tradicionalmente judaico, anda cada vez mais ecumênico. Ela tocou, fagueira, pro outro lado, indiferente aos raros carros que passavam roncando junto a suas curtas patas.
Fora abandonada ou fugira em seu passo sassaricante e leve por algum portão mal fechado? Seguimos rumo ao estádio do Pacaembu, subindo e descendo ladeiras, quando demos meia volta e dobramos na rua Itaquera.
Passamos em silêncio pela jaqueira carregada, pra não perturbar as Yamins – falei que o bairro tá ecumênico. E a minha cachorra firme, sem perder o ritmo das passadas.
A minha cachorra!
Isso, que agora eu disse sem querer, era o que eu sentia naquele instante: a cachorra era minha, assim como a borboleta amarela foi do Rubem Braga há 70 anos, quando ele a seguiu pelo centro do Rio de Janeiro pra escrever a melhor crônica já escrita no Brasil.
(O que equivale a dizer a melhor já escrita no mundo, já que crônica é coisa nossa, muito nossa.)
Depois de suarmos juntos por nada menos que três quilômetros – conferi a distância num aplicativo –, fomos alongar nossas seis pernas a fim de evitar lesões. Semana que vem eu conto mais, inclusive o porquê desse verso de Camões.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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