Coluna da Letrux: Síndrome da caçula sem muitas informações — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Síndrome da caçula sem muitas informações

Antes d’eu encaixar meu olho num telescópio e observar o mundo, preciso arduamente analisar minha família, e entender como estou aqui

09 de Março de 2022

Sou a caçula de três. Há menos fotos e registros meus. Talvez seja artista por isso, risos. Nunca tive o momento meu pai, minha mãe e eu. Tinha sempre Leo e Bernardo, os galalaus, para disputar atenção. Meu irmão mais velho tem o primeiro dente, primeiro corte de cabelo, anotações da fala, do choro, do peido, tudo. Bernardo também tem bastante coisa. Eu tenho uns papeis soltos com ínfimas anotações e menos fotos, claro. Nenhum registro de vídeo, porque roubaram a câmera do meu pai, ainda teve isso. Meus hermanos têm vídeos cinematográficos do primeiro passinho, essas coisas. Mas adivinha quem da família gosta de investigar essas coisas? Eu, claro. Eles não ligam. Está tudo no sótão da casa, um lugar de acumuladores saudáveis, diria. As redações, as quinquilharias todas. Tudo lá. Mas sou eu que frequento, como uma arqueóloga buscando um tesouro.

Parei de zapear muito tempo nas plataformas de streaming, perdi tanto tempo fazendo isso que agora só entro quando já tenho certeza que quero ver alguma coisa. Me valho de dicas de amigues, de sites, mas não dá mais pra ficar meia hora vendo tudo o que tem e, ainda assim, ter dificuldade em escolher. Chega. Pesadelo isso. E foi assim que numa noite, resolvi ver os filmes que salvei na minha listinha (tem isso também, uma galera salva mil coisas na lista mas nunca vê de fato, tô tentando mudar isso). “Circus of Books” ou “Atrás da estante” (2019) está na Netflix, e já de cara fiquei intrigada por ser um documentário feito pela filha caçula de uma família de cinco pessoas. Gosto dessa gente que investiga os bastidores da própria família. Investigo a minha na análise, porque acho que não renderíamos um documentário, mas quem tem família digna de filme, por favor, façam películas sobre ela. Eu, uma tarada por backstages, agradeço.

“Circus of Books” era uma livraria de um típico casal norte-americano, que na década de 80 se transformou num grande epicentro da cena gay de Los Angeles. Estamos falando de uma era pré-internet, pré-Grindr. Era ali onde jovens conseguiam ter acesso a um mundo ainda cheio de controvérsias e tabus: revistas e vídeos pornográficos gays se espalhavam pelos corredores da loja, que era comandada por um simpático casal branco e heterossexual. Os filhos não podiam saber o que os pais faziam. “Se perguntarem, seus pais têm uma livraria e ponto”, era o que ensinavam a ser dito. Mas claro, crianças são seres muito curiosos e ao longo do documentário inteiro você se maravilha, se espanta, se comove. Com um pouco de spoiler, mas nada que vá prejudicar, temas muito importantes acontecem ao longo do filme: AIDS, trabalhar com gays era uma coisa, ter algum gay na família era oooooutra coisa. A própria filha diretora entrevistando o pai e a mãe (figuras inacreditáveis, super yin-yang), a chegada da internet, o fim do mercado, enfim, prato cheio para debater assuntos sérios sob uma perspectiva familiar próxima, quente. Recomendo com força.

Há algo voyeur em mim que gosta de meter a lupa onde talvez nem deveria. É uma síndrome da caçula sem informações. Tudo quero saber, signo, fofoca, intrigas

Vou dar uma guinada nesse texto, mas é porque algumas coisas se esbarram e eu sempre andei torta na rua (um suplício pra quem está ao meu lado). Como dei essa dica de documentário, pensei numa outra dica, que também está na mesma plataforma já citada acima: “Filmes Que Marcaram Época” (2019) é uma série documental que conta histórias de bastidores a respeito de vários longa-metragens clássicos, como “Esqueceram de Mim”, “Dirty Dancing”, “Jurassic Park” entre outros. Eu gosto das obras de artes como elas são. Os discos que ouço, os filmes que vejo, os livros que leio. Mas confesso que há algo voyeur em mim que gosta de meter a lupa onde talvez nem deveria. Acho que é uma síndrome da caçula sem muitas informações. Tudo quero saber, signo, fofoca, intrigas.

Pausa para um grande espanto meu: Jim Carrey interpretou ou se metamorfoseou em Andy Kaufman, polêmico comediante dos EUA, no filme “O mundo de Andy” (1999). Vi no cinema na época, foi bem impressionante, gosto de Jim Carrey, como ator hilário e como ator dramático, sempre o defenderei. E aí que fizeram um documentário 20 anos depois contando como foi esse processo. E simplesmente deixaram de fora uma informação que pra mim seria uma cerejinha no bolo: Jim Carrey e Andy Kaufman nasceram no mesmo fucking dia – 17 de janeiro. Como documentarista eu não deixaria essa coincidência passar. Mas deixaram.

Fecho o parênteses que nem cheguei a abrir e volto para tal série que indiquei acima e que conta muitos babados sobre a feitura de vários filmes. Quase chorei quando lembrei do meu suplício pra fazer um edital de R$ 100 mil (e claro, não passar), porque a série mostra o suor de quem pede US$ 45 milhões em Hollywood. E você até pensa que é muito dinheiro, mas muitas vezes nem é, pro nível de loucura de “Forrest Gump” (1994), por exemplo. (Tom Hanks e o diretor tiveram que meter a mão no bolso durante a filmagem. Claaaaro que eles lucrariam depois, mas e se o filme não fosse um sucesso? E se? Eles teriam dado uma grana. Gente que ama o próprio trabalho é tudo igual. Aqui ou lá, a gente é doido. E gente que não valoriza arte e cultura é tudo igual idem. Aqui ou lá, eles são todos babacas.) Não darei muitos spoilers porque são filmes que já vimos zilhões de vezes e aqui o que vale são as fofocas mesmo.

Há quem prefira telescópio, há quem prefira microscópio. Ambos aparelhos nos auxiliam em descobertas

Passei um tempo com culpa voyeur de querer ficar sabendo essas coisas. Me questionei, lembrei da minha amiga poeta e escritora Bruna Beber que disse: “Anoto muita coisa, tenho centenas de cadernos e papéis sem ordem onde guardo as iminências. E não tenho nenhum amor por eles, tiro o que me interessa, organizo metodicamente, e depois jogo fora. Me incomoda muito a ideia de que alguém possa vir aqui em casa e, como quem não quer nada, e ler minhas anotações. Não consigo entender o fascínio pelo processo do escritor, sua intimidade criativa, sua privacidade cotidiana na lida com o texto. Isso me soa como invasão. Documento é o que o escritor publica, o resto é bisbilhotagem”.

Me senti uma bisbilhoteira, vasculhando migalhas de informações sendo que a obra de arte já foi entregue e ela é o que é. Depois refleti mais e pensei que há interesse para todas as áreas. Há quem prefira telescópio, há quem prefira microscópio. Ambos aparelhos nos auxiliam em descobertas. Antes d’eu encaixar meu olho num telescópio e observar o mundo, preciso arduamente analisar minha família, e entender como estou aqui. É bem terrível o que vemos no microscópio às vezes. Acontece. Mas é da maior importância. Eu estava na dúvida se fazia um texto sobre fazer análise ou se falava sobre dicas de filmes e séries. Acaba que consegui juntar tudo. A real é que todo mundo devia fazer análise. A real é que todo mundo sempre quer uma diquinha boa do que ver.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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