CV: Igi Ayedun
Comunicadora, galerista e editora de moda, a artista está à frente da primeira galeria liderada por uma equipe negra na história da arte brasileira
O primeiro contato de Igi Ayedun com a comunicação foi no fim da era dos processos analógicos da mídia impressa, em 2005, aos 14 anos. Nascida na periferia do Brás e inserida na cultura preta das escolas de samba e da africanidade iorubá, foi no prédio da Editora Abril, para a qual ela colaborou até os 23 anos, que um mundo de oportunidades que não estavam disponíveis antes se abriu. “Eu entendi que aquele mundo da comunicação, o mundo da imagem, seria uma porta para disponibilizar o que não estava disponível para mim, e que com aquilo eu ia viajar para outros países, falar outros idiomas, conhecer pessoas, me vestir de outro jeito. Ali era o caminho, porque o caminho que eu tinha na minha rua não ia me levar a esse lugar.”
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Os primeiros passos: fazendo as capas da revista Capricho com recortes; analisando imagens com uma lupa; passeando pelos setores da Editora Abril e passando horas no arquivo de imagens no subsolo do prédio, o Dedoc, vendo imagens de décadas atrás, e as adaptando para contar o que estava acontecendo no agora. O mundo de fotos de diversos temas incitou a criatividade da artista, que começou a misturar a arte visual com a inclinação para a moda e para a ilustração de textos que se relacionavam com a vivência pessoal e o ambiente que a cercava.
A disponibilidade para aprender trouxe experiência em várias áreas, da moda à pintura, passando pelo jornalismo e a educação; e a levou a uma carreira internacional. Hoje aos 31 anos, Ayedun já passou por França e Inglaterra e, recentemente, em 2019, fez uma viagem de inspiração e autodescoberta em Marrocos, de onde vem sua ascendência. Transitar por aqui e lá não tirou o equilíbrio da artista – com a inauguração da galeria HOA em 2020, a primeira a ser desenvolvida com uma equipe inteiramente negra no Brasil, ela conquistou mais um de diversos primeiros lugares: primeira editora de moda e primeira stylist preta brasileira a assinar um desfile internacional e, agora, primeira galerista preta.
As conquistas são mencionadas por ela como parte de uma responsabilidade agridoce, pesada, mas parte de um processo de anunciação de pessoas negras chegando em novos espaços. Hoje com 17 anos de carreira e guardando ainda deslumbre pelo mundo, ela conta à Gama os obstáculos e delícias da trajetória, a paixão pela comunicação, a importância da ancestralidade e de estar aberto às oportunidades.
Entendi que aquele mundo da comunicação e da imagem seria uma porta para disponibilizar o que não estava disponível para mim
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G |Como você chegou até aqui?
Igi Ayedun |Meu primeiro trabalho foi na Editora Abril, na revista Capricho, aos 14 anos, enquanto eu estava no colégio. Peguei o final do analógico nas editoras, muitos processos de fazer tipografias à mão, com uma caneta no papel vegetal, para escanear e colocar no Photoshop antigo, cortar e fazer aquelas capas super malucas. E dentro dessa experiência na Capricho eu transitava em todas as áreas da revista, então às vezes eu estava com a galera do design entendendo como eram os processos de fazer cenografia para as matérias, receber prova de cor de uma página ou de uma tipografia, e depois, do outro lado, ia com a galera da moda acompanhar shoots, arrumar acervo, organizar as roupas. Com a galera do comportamento, ia buscando personagens para as pautas, trazendo histórias de meninas que seriam legais sugerir para que os editores e os repórteres tivessem uma outra fonte para contar. Eu passava muito tempo no Dedox da Abril, que era um subsolo de arquivos, desde o início, dividido por prateleiras, por anos e temas. Essa foi a minha primeira relação com a imagem, e a minha relação com isso até hoje desenhou o que eu faço. Depois de lá eu tive um tempo, um hiato aos 15 anos. Foi pouco tempo entendendo a regulamentação da minha situação na Abril e como eu poderia continuar trabalhando lá, por causa da idade, e eu estava em um programa que era temporário. Quando fiz 16, voltei para a redação como produtora de moda, e foi aí que eu entendi que aquele era o setor que eu queria ficar. Fiquei na Abril até 2014, então foram quase dez anos de colaboração.
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G |Algo representou uma virada de chave para explorar outras áreas?
IA |Eu nunca tive uma chave só que virou e transformou tudo, acho que todo o meu caminho tem a ver com construções e muito trabalho, passo a passo experimentando diversas áreas. A Abril aconteceu na minha vida por meio de um concurso, então também não era algo que eu esperava. E ver aquele mundo, aquela magnitude de mídia, a cobertura da Semana de Moda, cobertura de feiras de arte, ver as editoras que viajavam a outros países, tudo fez com que eu começasse a projetar na minha cabeça. Eu olhei e pensei: eu venho de uma realidade onde nenhuma dessas coisas estão disponíveis para mim. Isso eu entendi nesse choque de sair do Pari para ir até Pinheiros todos os dias quando não tinha a linha amarela do metrô, uma hora e meia dentro de um ônibus que mal passava lá perto de casa para poder chegar na Editora Abril. Era um choque muito grande – as pessoas falavam inglês, tinham outras roupas e se comportavam de outras maneiras muito diferentes do meu universo natural. Ali eu comecei a entender que aquilo não estava disponível porque eu não tinha aquelas condições, aqueles lugares para estudar outros idiomas e viajar para outros países. Tinham meninas que ganharam o concurso junto comigo que iam passar férias no Canadá, comemorar formatura em Cancún, coisas assim. Eu não tinha nada disso. Entendi que aquele mundo da comunicação, o mundo da imagem, seria uma porta para disponibilizar o que não estava disponível para mim, e que com aquilo eu ia viajar para outros países, ia falar outros idiomas, conhecer pessoas, me vestir de outro jeito. Ali era o caminho, porque o caminho que eu tenho na minha rua não vai me levar para esse lugar, mas o caminho que tem dentro desse prédio vai.
Nunca foi legal acumular esses muitos primeiros lugares. Havia um estranhamento sobre o que eu trazia, o repertório da minha vivência
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G |Quais foram os maiores desafios da área?
Igi Ayedun |Eu fui a primeira de muitas coisas. A primeira assistente preta de moda do andar de comportamento da Editora Abril, a primeira produtora de moda preta a fazer editoriais e capas, depois fui a primeira editora de moda preta da história da moda no Brasil, a primeira galerista preta. Nunca foi legal acumular esses muitos primeiros lugares porque existia um estranhamento muito grande dentro desses ambientes a partir do que eu trazia enquanto repertório da minha vivência. Trazer o que vivo enquanto identidade para os espaços de trabalho que eu estava é ainda, sempre foi, o maior desafio. Mas quando eu falo que sou a primeira de todas as coisas vem muito mais uma ideia de estar avisando que depois vão vir muitos. Eu passei muito tempo sendo obrigada a me adaptar aos moldes da branquitude em como eu deveria fazer as coisas, tive que fazer todo o caminho do branco, então tudo, todos os lugares, todas as roupas, o jeito de arrumar o cabelo, a forma de falar, sentar, o que eu consumi de filme, música, tudo eu tive que fazer o caminho do branco para conseguir provar que eu fazia o caminho do branco melhor do que o branco para que depois eu pudesse fazer o meu próprio caminho.
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G |Quais lições você aprendeu no tempo que passou no Marrocos, França e na Inglaterra? Como você compara esses países com o Brasil?
IA |Quando eu cheguei na Europa era um outro lugar, dez anos atrás. Era muito sobre se adaptar, mais um lugar que eu tinha que me adaptar aos moldes de uma hegemonia branca que era a cara do Reino Unido naquele período. Acabei morando em Paris até 2016 e era num lugar que existia aquele fluxo migratório que a gente atravessa hoje, só que em um lugar de marginalização extrema. Depois, através do trabalho e do jornalismo, foi quando eu comecei a fazer correspondência e enviar materiais para o Brasil sobre as coisas que aconteciam, comecei a entender que eu poderia direcionar o que eu produzia enquanto o conteúdo para as indústrias de moda, de luxo e da arte. Aí eu voltei para o Brasil da geração tombamento [movimento social e estético de empoderamento negro baseado no Afro-Futurismo], e isso mexeu muito comigo, porque o Brasil que eu deixei não era assim. Eu saí do Brasil fugindo da marginalização e quando voltei, era a São Paulo que tem a Batekoo [festa de celebração da cultura negra inaugurada em 2014], que tem uma galera preta com cabelo colorido, para cima. E ali eu entendi que precisava de mim de novo, que os meus processos de adaptação não eram mais necessários e que eu poderia romper com eles, porque existia um lugar em casa que me permitia muito mais ser o que eu sou. Entendi também que eu poderia contribuir para que esses processos de emancipação se acelerassem, porque eu voltei adulta, falando francês e inglês fluentemente, conhecendo a galera da Off White [grife italiana], conhecendo a galera da Vogue Paris, conhecendo a galera da Dazed. Depois disso, o Marrocos veio em uma fase que eu entendi que precisava me conectar com o que eu era antes de existir. A HOArte foi um resultado de todas essas somas, de negar o processo de adaptação mas continuar tendo acesso a esse lugar que só é disponível para uma hegemonia, não perder o que somos no bairro que nascemos, o que vivemos de infância e a cultura que carregamos.
Não discuto mais sobre ocupação de espaços; discuto sobre construção dos nossos próprios espaços
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G |O que pode ser feito para que a arte e a moda negra e LGBTQIA+ ocupem mais espaço hoje em dia?
Igi Ayedun |Eu acho que a gente tem que parar de ocupar espaços, na verdade. Eu não discuto mais sobre ocupação de espaços; discuto sobre construção dos nossos próprios espaços. Acho que precisamos caminhar para um lugar de transação e negociação onde nós nos fortalecemos enquanto estruturas que se relacionam com outras estruturas, sejam elas brancas, amarelas, indígenas, europeias, gringas, nacionais, não interessa. Não quero ocupar o lugar de ninguém. Não quero entrar em lugar onde uma hegemonia no final das contas se beneficia de tudo que eu faço. Eu quero construir lugares. Tem muito espaço para construir coisas, só que temos pouca estrutura para conseguir construir as coisas. Então temos que saber como a gente olha para formas de desenvolver estruturas. Eu não quero mais ocupar espaços, eu quero construir espaços que durem séculos, por gerações. Espaços que não ninguém consiga mais tirar o nosso nome da frente, que todo mundo se lembre que foi a gente construiu.
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G |Você tem alguma missão de carreira?
IA |Ao mesmo tempo que eu sou uma pessoa que tem projeções, as minhas projeções são abstratas. O que eu vejo para mim nem chamo de missão porque acho o conceito de missão muito cristão, e eu não sou cristã, tenho uma criação Iorubá desde casa. Não me compete entender as coisas como dadas e outorgadas, mas tenho um desejo de estar sempre em movimento. Porque o movimento transforma, causa efeito. Quero estar em movimento nessa vida e nas próximas.
Antes de querer ser grande, tenha a dimensão do quão grande o mundo é para então entender qual é o seu lugar nele – e o resto é consequência
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G |Quais foram seus maiores aprendizados nessa trajetória?
Igi Ayedun |Estou aprendendo todo dia. Mas tem uma coisa da desobediência dentro do nosso lugar social, tem que desobedecer mesmo. Desobedecer tudo o que está prescrito para a gente. Aprendi porque tive que obedecer, mas só pela desobediência comecei a entender a minha potência. E no nosso contexto a desobediência é muito importante. E respeitar o tempo. Tudo tem seu próprio tempo, por mais que a gente lide com muitas urgências, a gente precisa também respeitar o tempo. E respeitar o tempo não é fazer as coisas devagar ou negligenciar as urgências das nossas vidas, as nossas situações. Estudar também é algo que nunca deixei de fazer, apesar de não ter faculdade, nunca deixei de aprender coisas, de ir atrás de informação e de conhecimento seja com livros que eu já li, pessoas que eu já conheci, viagens que eu já fiz, encontros.
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G |Quais conselhos você tem para quem quer trilhar um caminho parecido?
IA |Estudar sempre é muito importante, de todas as formas que forem possíveis e disponíveis. Estudar nem sempre é você entrar numa instituição e concluir um percurso em uma instituição porque a gente sabe que nem sempre é possível, sobretudo com a realidade que a vivemos hoje. E não se fechar para o conhecimento que está em volta da gente. Conhecimento liberta porque a partir dele você cria novas perspectivas, que mudam e transformam seus parâmetros, que fazem com que você entenda para onde você quer seguir caminhando. É importante o conhecimento para desbloquear muitas restrições de dimensionalidade que temos. Elas são impostas para a comunidade preta sobretudo para que a gente não tenha a dimensão do quão grandes as coisas podem ser e não tenha vontade de ser grande. Antes de querer ser grande, tenha a dimensão do quão grande o mundo é para então entender qual é o seu lugar nele – e o resto é consequência.
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