O velho normal da Justiça brasileira
Caso Mariana Ferrer nos leva a refletir sobre a seletividade do direito penal e sobre o tratamento das mulheres vítimas de violência pelo sistema
Ontem, o site The Intercept Brasil divulgou parte de audiência em processo criminal no qual André Aranha foi julgado pela acusação de estupro contra a influencer Mariana Ferrer em 2018, durante um evento no Café de La Musique, em Florianópolis.
No trecho da audiência divulgado, o advogado de defesa, Claudio Gastão da Rosa Filho, humilha e constrange Mariana ao mostrar fotos supostamente produzidas por ela em posições sensuais e afirmar, ao ser questionado sobre a pertinência das fotos em relação aos fatos do processo, que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana. Completou dizendo: “Também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você”. Diz que “a desgraça dos outros” é o “ganha-pão” de Mariana. Ridicularizou o choro da vítima durante a audiência, enquanto ela apenas pedia para ser tratada com respeito. A conduta do juiz, Rudson Marcos, e do promotor, Thiago Carriço, diante das agressões do advogado à vítima foi objeto de repúdio pela comunidade jurídica e, ao que tudo indica, será apurada pelos Conselhos Nacional de Justiça e do Ministério Público.
A notícia trouxe outra discussão à tona: ao intitular a matéria como “Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando a jovem”, rapidamente a atenção da mídia e das redes sociais se voltou para esse ponto e muitos criticaram a sentença utilizando a frase “não existe estupro culposo” como lema contra o desfecho do caso na justiça. No site do Senado Federal foi veiculada notícia afirmando que André foi absolvido porque “o juiz acolheu a tese de defesa de que foi cometido um estupro culposo e que André não teria tido a intenção do crime, apesar de a vítima estar dopada”. A revista Veja publicou matéria com o seguinte título: “Caso Mariana Ferrer: sentença inédita de ‘estupro culposo’ inocentou acusado”. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, divulgou nota manifestando “veemente repúdio ao termo ‘estupro culposo’” e afirmou que questionou a sentença desde setembro, quando foi proferida.
Sentenças que analisam todas as provas para absolver são raras. Uma das únicas exceções são crimes que envolvem homens ricos e mulheres
Não existe o crime de estupro culposo. A sentença que absolve André Aranha não fala em estupro culposo. O termo sequer é mencionado e não se diz que André Aranha não tinha intenção de manter relações sexuais com a vítima.
O art. 213 do Código Penal e criminaliza a conduta de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. No caso em discussão, o réu foi acusado de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A do Código Penal e que criminaliza a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. Isso porque Mariana relatou à polícia que foi dopada antes de ser levada por André Aranha para o quarto onde ocorreram os fatos. No caso do estupro de vulnerável (ou seja, de pessoa que não pode oferecer resistência), a lei permite a condenação do réu independentemente de prova de violência ou grave ameaça. No limite, a vítima pode até consentir expressamente com o ato sexual, mas essa manifestação não é considerada válida.
Em ambos os casos (estupro e estupro de vulnerável), o acusado só pode ser condenado se comprovada intenção de estuprar (que é chamada de dolo no Direito Penal). Não há, no caso do estupro, a possibilidade de alguém ser condenado por culpa, isto é, por negligência, imprudência ou imperícia. No homicídio, por exemplo, uma pessoa que não teve intenção de matar pode ser condenada por homicídio culposo. O exemplo mais claro é o acidente de trânsito que resulta em morte e no qual foi comprovado que o acusado dirigia de forma imprudente.
O juiz absolveu André Aranha por falta de prova de que ele sabia que Mariana estava em um estado no qual não poderia oferecer resistência. O termo técnico para a situação daquele que age sem conhecimento sobre uma das características necessárias para a configuração do crime é erro de tipo, previsto no art. 20 do Código Penal: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”. Isso quer dizer que se o acusado não tem conhecimento sobre algum elemento necessário para a configuração do crime, não pode ser reconhecido o dolo (a intenção). Não havendo modalidade culposa prevista por lei para o estupro, o erro de tipo tornaria o fato atípico, ou seja, não criminoso, porque não previsto em lei. É isso que diz a sentença.
Não se trata de tese inovadora. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou caso no qual o réu havia sido condenado por manter relações sexuais com menor de 14 anos e alegou desconhecer sua idade. Neste caso, o STJ afirmou que “o desconhecimento da idade da vítima pode circunstancialmente excluir o dolo do acusado quanto à condição de vulnerável da vítima mediante a ocorrência de erro de tipo (art. 20, do CP)” e o réu foi absolvido (RESP 1746712, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª T., julgado em 14/08/2018).
Impossível não lembrar de ‘Praia dos Ossos’ ao assistirmos à vítima ser colocada no banco dos réus
A discussão aqui está na suficiência da prova do conhecimento de André sobre a incapacidadede Mariana oferecer resistência. A ponderação dessas provas é impossível de ser realizada sem acesso aos laudos e aos depoimentos, mas é importante destacar que o STJ já decidiu que “em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos”.
Se a tese adotada pelo juiz não é inovadora ou absurda, por que o caso chama atenção? Para além do show de horrores dos trechos audiência que foram divulgados, os pedidos de absolvição feitos pelo Ministério Público ao final do processo, como aconteceu aqui, são raros no dia a dia da justiça criminal. Sentenças minuciosas e que analisam todas as provas produzidas para absolver são raras, tanto quanto a aplicação expressa da regra do in dubio pro reo (princípio do direito penal brasileiro que determina que, no caso de dúvida sobre os fatos, o acusado deve ser absolvido). A frase “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente” é rara.
Uma das únicas exceções? Crimes que envolvem acusações de violência supostamente praticadas por homens ricos contra mulheres.
A solução para a diferença de tratamento não pode e nem deve ser a supressão de direitos e garantias de defesa também nesses crimes, mas precisamos estudar e refletir sobre a seletividade do direito penal e sobre o tratamento das mulheres vítimas de violência pelo sistema de justiça.
Impossível não lembrar do excelente podcast “Praia dos Ossos” ao assistirmos, mais de 30 anos depois do julgamento de Doca Street, à vítima ser colocada no banco dos réus.
Luisa Moraes Abreu Ferreira é mestre em direito penal pela USP e doutoranda na FGV Direito SP com pesquisa sobre o julgamento de crimes sexuais pelo sistema de Justiça