Como o Xou da Xuxa tirou do ar o primeiro programa de TV feminista do Brasil?
Há 35 anos, a Globo fazia uma grande mudança em sua programação: chegava ao fim o TV Mulher. Em 1986, após seis anos no ar, a atração deixava de ocupar as manhãs brasileiras para dar lugar ao Xou da Xuxa
O ano de 1980 começou intenso para as mulheres brasileiras. Era 17 de janeiro quando um grupo de cerca de 40 ativistas se reuniram para protestar a favor da legalização do aborto em frente a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, no Centro. Nesse mesmo dia, duas mulheres tinham sido presas em flagrante em uma clínica clandestina, minutos antes do horário em que seriam submetidas ao procedimento.
Três meses depois, esse tema, e tantos outros relacionados à realidade da mulher brasileira da época, ganhou um espaço diário e ao vivo na televisão. Em 7 de Abril de 1980, estreou o primeiro episódio do TV Mulher, um programa da rede Globo que nos próximos seis anos ocuparia as manhãs da emissora para falar dos direitos, desejos, prazeres e dificuldades de ser mulher. Um programa que não se dizia feminista, mas estavam lá todas as bandeiras do movimento. Deu até na capa do New York Times desse mesmo ano: “As manhãs brasileiras são feministas.”
Atrás das câmeras estava Nilton Travesso. Então com 46 anos, ele já era reconhecido por dirigir programas históricos como “Os Festivais da Música Brasileira” (1966-1969), na TV Record, durante o período da ditadura militar. Ele passou duas décadas trabalhando na emissora até que, em 1974, foi convidado para tocar, ao lado de outros diretores, um novo programa da rede Globo, o Fantástico, gravado no Rio de Janeiro. Em 1980, Nilton partiu para um outro projeto e, agora, com episódios diários e gravado em São Paulo. O TV Mulher significou a expansão da emissora para a capital paulista.
Reprodução / TV Globo
O primeiro time do TV Mulher, lançado em 26 de junho de 1986, posa para foto no estúdio localizado na Praça Marechal Deodoro (SP)
Para trabalhar ao seu lado, o diretor convidou a jornalista Rose Nogueira, então com 34 anos. Chegou a ela o convite para um projeto secreto com a primeira reunião marcada na casa paulistana de Nilton. Ela logo disse sim. “Gostei do fato de ser dirigido a mulher e de ser jornalístico. Eu pude experimentar uma linguagem nova no texto, provando que a tv podia levar a pensar em uma época em que todo mundo achava que quem via a tv era idiota, ficava bobo.” Essa primeira e principal fase foi de 1980 a 1986. Em 2016, uma nova temporada de dez episódios foi lançada.
Rose havia trabalhado nos principais veículos do país. Na época, era editora de texto do Jornal Nacional. Antes, foi editora de internacional do Jornal da Cultura, quando teve Vladimir Herzog, jornalista assassinado pela ditadura, como seu chefe. Se agora Nogueira tocava um programa com discurso libertário para a época, onze anos antes ela havia sido presa política e passado oito meses atrás das grades submetida a sessões de tortura e sem contato com o filho recém-nascido.
A época de estreia marcava o final da ditadura militar, o período de redemocratização e de uma imprensa que experimentava um fase de relativa flexibilidade, mas nem por isso livre. Diariamente, como lembra a jornalista, um documento com uma prévia do programa do dia seguinte deveria ser mandado para a Polícia Federal. Apesar da grave crise econômica pela qual passava o país, era uma época em que as mulheres do Brasil e do mundo manifestavam-se pelos seus direitos, num momento de crescimento o movimento feminista, e se tornavam mais atuantes na economia.
As agências de propaganda descobriram o óbvio, que as mulheres eram as maiores consumidoras do país. Quem decidia se um novo produto era bom ou ruim, se seria bem vendido ou não, eram elas
“A primeira coisa que determinou o TV Mulher foi uma demanda do mercado publicitário para programas femininos num horário que não fosse o de novelas e a preço acessível”, diz a Gama José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que durante 30 anos ocupou a direção da Globo, criando o conceito de grade de programação que segue até hoje. O TV Mulher representava o interesse em atingir o público feminino com uma publicidade direcionada. Todas as manhãs. “As agências de propaganda descobriram o óbvio, que as mulheres eram as maiores consumidoras do país. Quem decidia se um novo produto era bom ou ruim, se seria bem vendido ou não, eram elas”, diz Nogueira. Entre os anunciantes, marcou história o lançamento do primeiro molho de tomate enlatado. O anúncio trazia uma dona de casa que abria a lata, colocava em cima do macarrão e concluía: ‘a gente compra e pronto’. Uma verdadeira revolução para as donas de casa que gastavam horas de vida no fogão.
Com uma audiência surpreendente, o programa foi ganhando cada vez mais atenção da área comercial da emissora. O que inicialmente era para durar 60 minutos, alcançou quatro horas de duração, tamanho sucesso. O TV Mulher trazia não apenas audiência, mas faturamento. “Ninguém esperava que o programa ia dar 48, 50 pontos de audiência, uma loucura!”, o que significa quase metade das TVs ligadas no programa dentro do universo pesquisado. “Os comerciais começaram a aparecer jorrando. Tinha fila para os clientes novos, que depois passaram a ser os grandes clientes da noite, da novela”, lembra Travesso a Gama.
Está no ar, o TV Mulher
A música de abertura trazia a voz de Rita Lee cantando “Sexo frágil/Não foge à luta/E nem só de cama/Vive a mulher”. Era “Cor de Rosa Choque”, escrita por ela e Roberto de Carvalho para o TV Mulher a pedido de Travesso. “Éramos amigos porque eu fiz muito clipe com ela no Fantástico”, diz. Ele lembra que chegou a botar Rita para cantar “Agora só Falta Você” (1975) dentro de um um avião da Esquadrilha da Fumaça, da FAB, em um clipe exibido no programa dominical.
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A abertura trazia a voz de Rita Lee cantando “Sexo frágil/Não foge à luta/E nem só de cama/Vive a mulher”. Mulheres vestidas de macacões industriais aparecem operando câmeras em salas de edição
“Eu telefonei para Rita e ela falou ‘olha, tô indo para Nova Iorque. Como é o programa?’ Expliquei tudo, falei que íamos estrear e depois de dois dias ela ligou de Nova Iorque e disse ‘vê o que você acha dessa música’ e começou a cantar. Eu falei que tinha tudo a ver com o TV Mulher!” A música virou a abertura do programa. Tempos depois, ela passou a cantar nos shows e a canção entrou no álbum ‘Rita Lee e Roberto de Carvalho’, de 1982, “mas foi criada para o programa com total exclusividade, em Nova Iorque”, garante Travesso.
Se a música-tema já bradava que “dondoca é uma espécie em extinção”, na abertura mulheres vestidas de macacões industriais apareciam operando câmeras, apertando botões em salas de edição meio futuristas, como se estivessem tocando uma TV — essa era ideia original de Travesso, uma espécie de emissora só para as mulheres. Sob o comando dos apresentadores Marília Gabriela e Nei Gonçalves Dias, com Xênia Bier (1935-2020) de comentarista, a estreia foi ao vivo — assim como todos os episódios seguintes do programa. De frente com Gabi, a primeira entrevistada foi Elis Regina (1945-1982) na companhia da filha Maria Rita.
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A apresentadora mais lembrada do programa: Marília Gabriela
Nos 400 metros quadrados do estúdio da Globo na Praça Marechal Deodoro, Centro de São Paulo, que originalmente era um cinema antigo, 22 quadros eram gravados em pequenas baias com diferentes cenários, apresentadores e suas respectivas especialidades. Em um episódio histórico, Nei Gonçalves Dias derrubou o cenário inteiro no meio do programa, denunciando o improviso. “Eu tenho saudades do heroísmo dessa época. Era um programa heróico, no sentido de recursos técnicos, de espaço e no próprio sentido de conteúdo”, lembra Boni.
Na formação original, que ao longo dos anos foi se modificando, Clodovil Hernandes (1937-2009) falava de moda e comportamento — “Moda não é futilidade como as pessoas pensam. Antes de mais nada é um problema sociológico, econômico, cultural que é muito importante. Terapêutico às vezes, é muito bom que as pessoas saibam que moda é terapia também”, disse o apresentador em um dos episódios. A russa Ala Szerman, passava exercícios físicos, mostrando que as mulheres podiam e deviam cuidar do corpo; Zora Yonara (1929-2020) fazia previsões astrológicas.
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Clodovil Hernandes falava de moda e comportamento
Os quadros que mais incomodavam a ditadura ainda vigente foram o Comportamento Sexual, com a então psicóloga Marta Suplicy e o TV Homem, em que o cartunista Henfil (1944-1988) trazia esquetes em preto e branco, como uma tirinha de jornal, em que ironizava a situação política da época. Marta respondia às dúvidas sexuais das leitoras (foram mais de 6 mil cartas recebidas), falava de aborto e defendia o “direito ao prazer”. Para a Gama, Marta lembra da vez em que ela e o diretor Nilton Travesso foram chamados pela censura para uma conversa porque “estavam indo um pouco longe demais”:
-”Longe demais como?”, perguntou Marta.
-“Ah, tem algumas palavras que não podem ser ditas”, respondeu o censor.
-”Olha, eu não tenho nenhuma preocupação em atender, mas me diga quais
palavras o senhor acha que são inadequadas?”
-“A palavra pênis, por exemplo, ser falada assim de manhã…”
-“Bom, tudo bem, mas qual a palavra que o sr. sugere?”
-”Membro”
-”Não, membro pode ser braço, perna, o nome correto é pênis. Não vejo por que não se possa falar para qualquer pessoa, criança, adolescente, para explicar o corpo humano.”
Em uma das vezes que foi à censura Marta perguntou quem estava reclamando. “É a mulher de um general, ela está muito incomodada com o programa”, ouviu como resposta. Havia também as chamadas Senhoras de Santana, um grupo de mulheres conservadoras que mandavam cartas, acampavam em frente ao estúdio e pediam a cabeça daquela turma. “Era muito tabu que a gente quebrava, era muito fora da casinha. Tenho clareza de que a história da mulher brasileira é antes e depois do TV Mulher”, diz Marta.
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Marta Suplicy tocava o quadro Comportamento Sexual, em que tirava dúvidas e defendia o “direito ao prazer”
Histórico e importante na trajetória da mulher brasileira, o programa também rendia picuinhas internas. “Quando a gente trabalha na televisão, no cinema ou no teatro, o trabalho não cansa, mas administrar o ego das pessoas é a coisa mais difícil. Elas vão se desequilibrando emocionalmente e a soberba às vezes é tão grande que passam a não te ouvir mais. Esse é o grande perigo para depois vir a queda. Quando a vaidade supera a inteligência, você não tem como conversar, como administrar”, diz Travesso.
Ele e outros ex-integrantes contam que Marília e Clodovil não se davam nada bem. “Ela abria o jornal para ler quando Clodovil entrava no ar. Ele tinha ciúmes e ficava louco da vida porque ela não estava prestando atenção no quadro dele. Aí dava umas indiretas”, diz Travesso. Embora o dia a dia ficasse com Travesso, Boni teve que sair algumas vezes de seu posto de executivo para equilibrar humores: “Clodovil era a principal atração do programa, mas ele queria comandar o TV Mulher. Ele me dizia: ‘Eu trabalho como costureiro, mas eu sou um pensador!’.” Procurada pela reportagem, Marilia Gabriela não falou a Gama.
Quando a gente trabalha na televisão, no cinema ou no teatro, o trabalho não cansa, mas administrar o ego das pessoas é a coisa mais difícil
Nos primeiros seis meses de exibição, o TV Mulher foi ganhando corpo, identidade e acumulando telespectadores — mulheres e homens. Além de entrevistas históricas com personalidades — como Ayrton Senna, Tony Ramos, Fernanda Montenegro, Fábio Jr., Luis Fernando Veríssimo –, era basicamente um programa de serviços e entretenimento. No dia a dia, tratava de questões do cotidiano da cidade, como enchentes, pragas urbanas, a enorme variação de preço dos supermercados, resultado da inflação da época. E também informava a mulher de seus direitos, como previdência, pensão alimentícia e trazia notícias como a criação da primeira delegacia da mulher do país, em São Paulo, no ano de 1985. “A imprensa na verdade acompanhava o que nós feministas estávamos fazendo”, pontua a Gama a socióloga Eva Blay, co-organizadora do livro “50 Anos de Feminismo – Argentina, Brasil e Chile” (Edusp, 2017).
“Foi realmente um programa que prestou um serviço na transformação na dona de casa brasileira. Considero que, em seis anos, mexeu muito na cabeça das mulheres sem fazer nenhum tipo de revolução. Ele apenas as conscientizou de seus problemas, das suas dificuldades, abriu o assunto sexo, o assunto político, o assunto dos direitos”, diz Boni.
Sempre falei para não levantarmos bandeiras do feminismo. Nós vamos fazer um programa que transforme a dona de casa em uma pessoa mais informada, mas não transformá-la em uma feminista
Apesar disso, Boni não acredita que o TV Mulher tenha sido um programa feminista: “Eu sempre falei para não levantarmos bandeiras do feminismo. Nós vamos fazer um programa que transforme a dona de casa em uma pessoa mais informada, mas não transformá-la em uma feminista. O programa não induzia a pessoa de casa a nenhuma ação”.
Todas as mulheres ouvidas para esta reportagem e que participaram do TV Mulher concordam que o programa era claramente feminista. “É que na época se fazia uma caricatura, ser feminista era uma desqualificação. Então claro que um programa de televisão não podia e nem achava que era mesmo feminista”, diz a Gama a socióloga Blay.
O fenômeno Xuxa e o fim de uma era
Após seis anos de sucesso, as causas do fim do programa, em 26 de junho de 1986 , reunem um certo desgaste em relação a equipe, a transformação do telespectador da Globo e um fenômeno midiático chamado Xuxa Meneghel.
Marta acredita que a extinção tenha a ver com a atração “ter ido longe demais” nas questões feministas. “Acho que a Globo já tinha uma ideia de ter ido longe demais na emancipação da mulher”, diz. “Penso que foi uma uma estratégia comercial, junto com a coisa menos consciente de que a mulher já tinha tido a emancipação no teto que eles gostariam.”
Depois nós encontramos a Xuxa e achamos que ela podia atender os dois públicos, o público feminino adulto e as crianças
De fato a questão comercial pesou, mas não só. “O programa ficou desgastado porque nem sempre as pessoas que foram substituídas ao longo dos anos foram tão bem”, diz Boni. E havia no mercado o fator Xuxa. “Fui fazer um estudo da audiência e nós vimos que a Manchete, onde ela tinha um programa inicialmente infantil, estava crescendo porque foram adicionando convidados adultos ao programa, pegando assim um público feminino.”
Quem assistia ao TV Mulher tinha na faixa dos 15 aos 55 anos. Enquanto a audiência de Xuxa era mais ampla, ia dos 3 até 45 anos. “Encontramos a Xuxa e achamos que ela podia atender os dois públicos, o feminino adulto e as crianças.” Aumentando também o espectro para a publicidade capitalizar.
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Marilia Gabriela entrevista Hebe Camargo
Boni conta que a Globo promovia discussões com telespectadores e essas mesmas mulheres que assistiam ao TV Mulher achavam que “a Xuxa fazia com que as crianças ficassem mais calmas, mais obedientes, mais atentas ao programa. Todas as mulheres reportavam uma grande melhora de comportamento das crianças que assistiam a Xuxa. Ao contrário de uma queixa frequente em relação ao desenho animado, de que as crianças ficavam rebeldes ao assistir”.
Boni não titubeou. Depois de seis anos do ar, chegava ao fim o TV Mulher. “O programa também foi ficando desgastado, resistiu a essas trocas, foi indo, foi indo, mas depois entrou em declínio”, diz. “Além disso, a audiência da televisão é rotativa. O público vai mudando porque muda a idade, os afazeres, os casamentos, etc. Está sempre havendo essa troca de pessoas.” A solução costuma ser mudar a programação, técnica que a Globo usa desde o início de sua história — sempre com muita cautela no caso dos programas longevos, como acompanhamos até hoje.
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A cantora Clara Nunes é uma das muitas personalidades convidadas do programa