Como as desigualdades afetam o Brasil?
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Ilustração de Isabela Durão

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Reportagem

Como abordar a desigualdade com as crianças nas escolas

Especialistas explicam como tratar questões complexas, como racismo, sexismo, capacitismo e diferenças de classes com os pequenos e promover uma educação inclusiva desde a primeira infância

Ana Elisa Faria 27 de Abril de 2025

Como abordar a desigualdade com as crianças nas escolas

Ana Elisa Faria 27 de Abril de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Especialistas explicam como tratar questões complexas, como racismo, sexismo, capacitismo e diferenças de classes com os pequenos e promover uma educação inclusiva desde a primeira infância

Uma das principais mazelas do Brasil, a desigualdade se apresenta na sociedade desde cedo, lá no jardim da infância, com bebês e crianças que sofrem com exclusões e preconceitos causados pela diferença — seja ela racial, econômica, cultural ou de gênero. O tema, de cara, pode parecer árido para os pequenos, mas essa conversa não precisa ser difícil nem desconfortável.

Ao contrário, o assunto deve ser tratado com naturalidade, curiosidade e empatia a partir dos primeiros anos de vida. Por isso, práticas educativas — na escola e em casa — que promovem a inclusão e o respeito, desafiando estereótipos, são essenciais para que esses seres em desenvolvimento cresçam com uma visão mais justa e menos discriminatória do mundo.

Falar no dia a dia, de forma lúdica e por meio de ações e experimentações, sobre racismo, sexismo, pobreza, capacitismo e falta de oportunidades é um ponto de partida para a formação de cidadãos mais críticos e empáticos no futuro.

Mas como fazer isso? Gama ouviu especialistas que compartilharam abordagens e experiências na hora de introduzir meninas e meninos a esses debates complexos.

Focar no que nos faz iguais

Antes de focar nas diferenças, é preciso pensar com as crianças naquilo que nos torna iguais. Essa é a primeira dica da psicanalista Maria Inês Tassinari, doutora em psicologia clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), uma das coordenadoras do grupo Faces do Traumático e membro do GTEP (Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise), ambos do Instituto Sedes Sapientiae. Segundo ela, o que faz as pessoas semelhantes é pertencer.

“Todos precisamos de pertencimento, de nos saber tendo um lugar, primeiro dentro do outro, depois um lugar fora. A confirmação de que somos importantes é essencial para que a nossa vida continue fazendo sentido, para sabermos que a gente faz a diferença, que fazemos falta”, afirma.

A partir desse entendimento, desenvolve Tassinari, é imprescindível olhar para a diferença como virtude. “Riquezas são diferenças, como diz a música dos Titãs. O que nos enriquece é a possibilidade da diferença, é o encontro com o outro, e o outro é o que nós não somos.”

O melhor jeito, fala a psicanalista, é a criança encontrar a semelhança, gerando identificações, empatia e possibilidades de estar na pele do outro. “E isso ocorre com rodas de conversas, com muita atividade coletiva, que é como a palavra circula e como a palavra ganha potência.”

Quando as situações de preconceito acontecem, no geral, as crianças estão acompanhadas pelos adultos, que devem mediar esses conflitos. “É papel dos adultos auxiliá-las naquilo que elas não têm recurso nem repertório para dar conta.”

Apadrinhar para empoderar

A primeira infância é o período em que as crianças começam a construir a própria identidade e a compreender o mundo, processo que se inicia com a observação atenta e a interação com tudo ao redor. Nessa faixa etária, que vai até os seis anos, elas percebem as desigualdades de maneira bastante sensível.

Para lidar com isso, o Centro de Educação Infantil Coração de Maria, localizado na Santa Cecília, região central de São Paulo, adota práticas que visam a equidade, como o apadrinhamento de alunos mais vulneráveis por famílias com maior renda.

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Conforme explica a pedagoga e mestre em educação Roberta Theodossiou, diretora do CEI, quando a instituição foi inaugurada, em 1985, o objetivo era apoiar bebês e crianças em situação de vulnerabilidade extrema. Porém, de lá para cá, o contexto do bairro mudou. “Em 2024, fizemos o perfil diagnóstico da comunidade [escolar] e percebemos que mais de 80% das famílias têm poder aquisitivo de médio para alto e, por consequência, são formadas por pessoas brancas, o que nos fez ter outra concepção”, diz.

Theodossiou fala que a ação de apadrinhar é um exercício de cidadania que tem tido resultados positivos. Ela pode ser anônima ou não e, em vários casos, não é apenas financeira, mas traz a criança vulnerável e os familiares para perto desse outro núcleo de pessoas, realizando atividades, passeios e trocas. “Isso diminuiu muito a desigualdade na escola. E essas novas relações empoderaram as crianças e deram a elas um senso enorme de pertencimento.”

Igualdade e equidade

A diretora do CEI Coração de Maria conta ainda que o uso de fantasias na escola, de princesas a super-heróis, assim como a utilização de mochilas de rodinhas de marcas famosas ou com a estampa de personagens de desenhos animados, também estavam trazendo as desigualdades à tona, gerando conflitos em sala, entristecendo e excluindo os alunos mais pobres, sobretudo os das turmas de três anos.

As sacolinhas ecológicas ajudaram em duas questões: na sustentabilidade e na promoção nem só da igualdade, mas principalmente da equidade

Em 2025, após estudos e conversas, o centro comprou ecobags iguais para todos, com crachá identificador, distribuídos já no primeiro dia de aula. “As sacolinhas ecológicas ajudaram em duas questões: na sustentabilidade, com a redução da utilização de materiais como o plástico, e na promoção nem só da igualdade, mas principalmente da equidade”, analisa Roberta Theodossiou.

Outro exercício para amenizar as diferenças e, consequentemente, as competições entre os pequeninos é a pintura de roupas com o logo do CEI. “Incentivamos as famílias a trazerem camisetas brancas ou escuras, calças lisas, e a gente pinta aqui gratuitamente, com esse objetivo de estarem todos iguais. Essa ideia promoveu mais empoderamento. Quando eu passo nas salas, as crianças querem me mostrar as roupas que estão vestindo”, divide a pedagoga.

Roberta Theodossiou sinaliza a importância de trazer as crianças para posições de destaque, elogiando os cabelos, as roupas, promovendo feiras culturais, para um conhecer a cultura do outro. “Para que a conversa sobre a desigualdade seja bem-sucedida, é crucial garantir que todos se sintam vistos e ouvidos. Isso não é só simbólico, mas também é uma forma de dar voz e senso de pertencimento.”

O debate introjetado na realidade da criança

No Colégio Equipe, em Higienópolis, centro da capital paulista, onde a professora polivalente Daniela de Amorim leciona, a abordagem da temática é integrada ao currículo e misturada à realidade dos estudantes, sempre a partir da capacidade de compreensão de cada faixa etária. “Pautas importantes para a sociedade, como desigualdade, machismo, racismo e capacitismo não têm que ficar concentradas em uma única matéria. Elas têm que passar por tudo. Tudo tem que ser permeado”, avalia.

Ao planejar as aulas, Amorim pensa em como incluir temas importantes como esses, seja direta ou indiretamente. Ela exemplifica: em história, o trabalho do quinto ano do fundamental 1 é sobre cidadania, e um dos momentos históricos abordados é a Revolução Francesa, que leva a um debate sobre o que é ser cidadão, direitos e deveres; clero, nobreza, classe trabalhadora e impostos.

Pautas importantes, como desigualdade, machismo, racismo e capacitismo, não têm que ficar concentradas em uma única matéria. Elas têm que passar por tudo

“Para que essas contribuições serviam? Como é hoje em dia? São perguntas que surgem em classe. Daí chegamos em um papo a respeito do SUS [Sistema Único de Saúde], por exemplo. Essa é uma maneira bem direta de tratar a desigualdade. Mas, às vezes, assistimos a filmes em que ela aparece, lemos livros em que um personagem tenha certas características, mas não seja essa a questão principal trazida no enredo”, desenvolve a docente.

As conversas sobre desigualdades não se limitam à sala de aula nem ao trabalho docente. Pais e responsáveis criaram uma comissão antirracista do Equipe para organizar eventos de contação de histórias, bate-papos e até um fórum etno-racial para que toda a comunidade equipana participe.

Juliana de Paula Costa, coordenadora pedagógica do infantil da escola Vera Cruz, na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, comenta que a criança é um sujeito de direitos que deve pertencer ativamente ao meio. “Elas não estão nas escolas para introjetar o que os professores ensinam, pelo contrário, as crianças precisam de trocas e interações com as diferentes realidades, que são complexas. Nessa complexidade, vão se formando novos pensamentos e novas visões de mundo.”

Conforme explana, a inclusão não deve estar apartada das vivências. “Os seres humanos são diferentes por essência. Para uma educação inclusiva, a criança não pode apenas estar em um grupo; o grupo é que tem de estar com a criança e interagir com ela, a partir do princípio da heterogeneidade.”

A profissional lembra que o Vera tem um programa afirmativo, com bolsas para crianças negras e indígenas. “É um viés transformador, de oportunidade e de ampliação das relações etno-raciais”, pontua.

A criança não pode apenas estar em um grupo; o grupo é que tem de interagir com ela, a partir do princípio da heterogeneidade

Costa defende também o letramento racial dos educadores para lidar com questões do dia a dia porque, mesmo convivendo com a diversidade, as crianças não vão deixar de reproduzir o racismo automaticamente. É necessário um processo para mudar preconceitos enraizados no imaginário. “As crianças vivem fazendo associações do tipo: ‘A maioria das pessoas negras moram na rua e são pobres’. Elas reproduzem comentários do tipo, e os professores precisam de uma formação atualizada para ler as relações etno-raciais e transformar situações como essas em cuidado, proteção e fortalecimento para as crianças negras e em consciência racial para as brancas.”

Além dessas estratégias, Costa diz que outra medida essencial é colocar pessoas pretas em todos os espaços de poder da escola, da docência à gestão. De acordo com ela, as mudanças passam pelo ensino e pela aprendizagem, pela experiência e pela contratação de funcionários negros. “A diversidade é um princípio vivido na prática e no currículo”, finaliza.

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Esse conteúdo é parte de uma série produzida com apoio da Fundação Tide Setubal, uma instituição que fomenta iniciativas que promovem a justiça social e o desenvolvimento sustentável de periferias urbanas e contribuem para o enfrentamento das desigualdades socioespaciais das grandes cidades, em articulação com diversos agentes da sociedade civil, de instituições de pesquisa, do Estado e do mercado. Para saber mais, visite o site.

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